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Cidade Marina – a miragem de Oscar Niemeyer para o sertão mineiro

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Controvérsias e queda de popularidade da cidade Marina

por Gabriel Oliveira
Se mensagens de progresso e desenvolvimento econômico eram repetidamente transmitidas nos periódicos brasileiros sobre a “Operação Marina”, algumas controvérsias e polêmicas relativas ao projeto também ocuparam espaço na opinião pública, especialmente a partir do ano de 1957. Visões contrárias ao projeto eram alimentados tanto pelo caráter especulativo do empreendimento, quanto pelo envolvimento de deputados como acionistas e sócios da CAUSA. Mesmo que essas narrativas tenham sido minoritárias em um contexto geral sobre cidade Marina, a circulação de posicionamentos divergentes pode ter acarretado efeitos importantes para a visibilidade do projeto.

Ainda no auge da repercussão da iniciativa na imprensa, em 1956, uma matéria publicada pelo Correio da Manhã enunciava seu caráter crítico em seus subtítulos – “Especulação imobiliária atinge noroeste do Estado”; “Marina – a cidade fantasia do Urucuia” (Correio da Manhã, 1956c). O periódico vinculava o resultado das notícias sobre “a transferência da Capital Federal” a uma repercussão econômica na região do Noroeste de Minas e regiões vizinhas de Goiás, “provocando uma valorização de terrenos surpreendente” e motivando “elevado preço de terras numa região até então fora da ação dos especuladores imobiliários” (Correio da Manhã, 1956c)[1].

Já no ano de 1957, o teor das notícias sobre Cidade Marina ganhava caráter mais contestatório, a partir de uma matéria da Tribuna da Imprensa e de algumas reportagens veiculadas pela revista Maquis. É importante pontuar, entretanto, que ambos os veículos de comunicação eram ligados ao Clube da Lanterna, organização civil fundada pelo jornalista Carlos Lacerda, feroz crítico ao governo do presidente Getúlio Vargas – principalmente em seu segundo mandato (1951-1954) – e também à gestão Juscelino Kubitschek. O Clube da Lanterna congregava diversos parlamentares, principalmente integrantes da União Democrática Nacional (UDN), maior partido da oposição, e contava com colaboradores tanto na Maquis quanto na Tribuna da Imprensa, de propriedade de Lacerda.

Mesmo com esse perfil, das seis matérias sobre a Cidade Marina entre 1955 e 1957 que a Tribuna apresentou, apenas uma era claramente desfavorável ao projeto. Nela, era focalizada a participação de deputados aliados à base governista de Juscelino como membros da Colonizadora CAUSA, especialmente do líder da Câmara dos Deputados, Vieira de Melo. Com o título “Vieira patrocina ‘Brasília-caçula’”, a reportagem elencava diversos elementos controversos para a venda de terrenos e para a construção da cidade Marina, descrevendo as origens do empreendimento e o aumento do valor das terras após a instituição da Colonizadora:
 

O negócio começou quando d. Marina Romana Martins Gomes, em 1955, adquiriu as glebas da “Fazenda do Menino", do espólio de Trajano Viriato Sabóia de Medeiros pela quantia de um milhão e duzentos mil cruzeiros (Cr$ 1200000.00). Logo apos, quando se inventou fundar a CAUSA, peritos avaliaram as terras de D. Marina por dezesseis milhões, que demonstra o seguinte: em meses, a fazenda teve o seu preço aumentado em treze vezes (Tribuna da Imprensa, 1957).



Figura 1 - A Colônia Agrícola Urbanizadora S.A. (CAUSA) publica uma nota de felicitações ao jornal A Noite pelos 45 anos de existência. Enquanto a CAUSA centralizava a gestão do empreendimento, incluindo o loteamento e o plano de urbanização da Cidade Marina, as empresas “Intersul de Investimentos” e “Confiance” eram responsáveis por operacionalizar as vendas das propriedades.

Além disso, na mesma ocasião, na Tribuna, era possível perceber a posição contrária do jornal à mudança da capital federal para Brasília, e, por consequência, sua tendência a desqualificar “aventuras” semelhantes, como outra cidade construída no “deserto”. Contudo, o que sustenta a crítica do periódico estava relacionado menos ao “desejo de construir uma cidade” – até porque, segundo comentário irônico do jornalista responsável pelo texto, “fundar cidade é mania hoje em dia” – e mais ao suspeito sistema de envolvimento de congressistas. O jornal levantava desconfiança pela coincidência de estarem envolvidos no negócio personagens conhecidos do meio político brasileiro daquele momento, figuras que, segundo o periódico, estariam “sem dúvida, se valendo de seus cargos para melhor consecução do negócio” (ibidem). Assim, listando os nomes dos congressistas já apontados anteriormente como membros da CAUSA[2], o “sentido do negócio” estaria intrinsecamente ligado aos políticos com boa relação com o “Catete”, sede da Presidência da República no Rio de Janeiro até a transferência da capital para Brasília.

Os argumento e as narrativas apresentadas pela Tribuna eram semelhantes em quatro matérias veiculadas pela Maquis no mês de agosto de 1957. Esta, por seu turno, mantendo um viés mais incendiário e sensacionalista, característico de seu editorial, vinha com verdadeiro discurso de denúncia contra o empreendimento[3]. Nela, a matéria abordava o tema de forma mais direta e expressava uma caracterização polêmica sobre a empreitada de cidade Marina. Assim, termos como “grossa negociata”, “escândalo” e “marmelada” pautavam os objetivos tanto da construção da cidade quanto da venda dos terrenos, revelando os nomes daqueles que, segundo a revista, se “envolveram com intuitos de enriquecer” com o negócio[4]. Assim como a Tribuna, a Maquis revela sua posição contrária à transferência da capital, ao afirmar que a escolha da região para construção de Marina, “de saída, já nos cheira a coisa de Brasília”, além de revelar a orientação ideológica e partidária de seu editorial, reiterando que nenhum dos parlamentares envolvidos fazia parte do quadro da União Democrática Nacional (UDN).



Figura 2 - O líder da maioria na Câmara, deputado Vieira de Melo foi um dos alvos principais da Maquis.



Figura 3 - Aziz Maron e Vitor Issler também tiveram suas fotografias estampadas na revista.

Apesar do levantamento realizado, do trabalho de reconstituição de diversos aspectos do empreendimento e da pertinência de alguns argumentos debatidos pela revista para compreensão das origens e encadeamentos sobre o projeto da cidade Marina, não houve comoção suficiente para que tais fatos ganhassem repercussão em outros veículos, com a apresentação de conteúdos mais elaborados e demais evidências. Dessa forma, as matérias, isoladas de um contexto geral sobre a relevância do projeto, sugeriam também superficialidade e certo grau de parcialidade, como já afirmamos, quanto à contemplação de figuras de oposição ao governo federal, em face aos deputados que faziam parte de sua base política envolvidos no projeto. De toda forma, as críticas da Tribuna da Imprensa e de Maquis, a partir de uma abordagem completamente distinta das demais publicações durante todo o período em foco neste trabalho, lançam luz sobre novas perspectivas de análise para compreender e decifrar lacunas no que diz respeito ao fracasso sobre a concretização da edificação da cidade e das colônias agropecuárias no Vale do Urucuia.

Com os dados que apreendemos até então, quanto às matérias aqui apresentadas, é difícil certificar o grau de impacto junto à opinião pública, à época. Teriam repercussões negativas afetado a imagem do empreendimento, da colonizadora e dos congressistas envolvidos? O fato é que, a partir de 1957, as menções, notícias e publicidades referentes a cidade Marina perderam intensidade. Nos próximos módulos deste dossiê evidenciaremos, contudo, as duas últimas tentativas, por parte dos idealizadores do projeto, de desenhar novas estratégias de divulgação de cidade Marina, a partir de uma conexão direta com a inauguração de Brasília em abril de 1960, por um lado, e da atmosfera das reformas de base vinculadas ao governo de João Goulart em 1962 e 1963, por outro.



[1] Contabilizando o aumento de preço naquela região, o texto expunha que um alqueire de terra antes comprado por 5 mil cruzeiros passava naquele momento a custar de 30 a 40 mil. Além do destaque para a cidade Marina como indutora dessa valorização recente das terras daquela porção do estado de Minas Gerais, um conjunto de outros empreendimentos concretos e potenciais eram elencados: a construção da barragem de Três Marias, com potencial hidrelétrico que provocaria “um desenvolvimento não suspeitado de vastas zonas sertanejas, repercutindo também na navegação do Rio São Francisco”; a descoberta de “ricos depósitos de zinco” em uma região próxima a Paracatu; e o interesse de um grupo norte-americano na aquisição de 50 mil alqueires, para o desenvolvimento de agricultura e pecuária na região de Patos de Minas (Correio da Manhã, 1956c).

[2] O nome dos congressistas estão listados na nota 2 do Módulo 5 (Operação Marina) deste Dossiê.

[3] Ocupando duas páginas inteiras da revista, a publicação, além do texto, também estampava a fotografia de alguns dos congressistas envolvidos na “Operação Marina”, seguida de legendas negativas para o já citado Vieira de Melo (“conseguimos surpreendê-lo em mais uma negociata”), Aziz Maron (“transportou o seu gênio comercial da Bahia para a Fazenda Menino, em Minas”) e Vitor Issler (“Amigo de Galdeano a Alkmin. Plutocatra do PTB. Quer avançar nas terras de ‘Marina’”).

[4] A revista pormenorizava as diversas cifras envolvidas no projeto, desde o valor das terras vistoriadas ao custo do trabalho dos levantamentos topográficos, planimétricos e aerofotogramétricos, além dos planos de colonização da fazenda e de urbanização da Cidade Marina. Assim como a Tribuna da Imprensa, mostrava que os 90 mil hectares comprados por Marina Ramona em meados de 1955, na importância de 1 milhão e 200 mil cruzeiros, passariam a ser avaliados em 16 milhões e 330 mil menos de um ano depois, já com a institucionalização da CAUSA e dos levantamentos técnicos e planos urbanísticos do projeto.

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