BNDigital

Lorenzo Perosi e o Brasil

< Voltar para Dossiês

De Carissimi a Perosi: o Oratório italiano

por Thiago Plaça Teixeira
Na contribuição musical de Lorenzo Perosi há lugar de destaque para o gênero musical do oratório. Juntamente com as composições estritamente litúrgicas, os oratórios expressam a íntima conexão entre Fé e Arte na vida do sacerdote compositor. Também representam um ponto de restauração dessa forma musical dentro do universo musical italiano, que, então, era dominado amplamente pela ópera.

A seguir apresentamos uma breve síntese da história do oratório musical italiano, desde suas origens no século XVII até as obras de Lorenzo Perosi. Utilizamos como referência sempre a grande pesquisa de Howard E. Smither, A History of the Oratorio.

1. Definição. O oratório enquanto gênero musical é uma composição feita sobre um texto religioso (histórias bíblicas, vidas de santos etc.) de dimensões relativamente grandes, sem encenação, com cantores solistas e coro acompanhados por um conjunto instrumental. É basicamente uma obra musical composta sobre um texto dramático (diálogos entre os personagens) ou narrativo-dramático (narrador e diálogos dramáticos) de cunho religioso, sem cena ou figurino. Há, portanto, certa proximidade com a ópera, em razão da narratividade intrínseca do libreto, das formas musicais em si (números instrumentais, recitativos, árias, conjuntos vocais etc.) e do fato de que cantores líricos interpretam personagens da história que é contada. Mas difere da ópera devido a seu caráter eminentemente religioso, estritamente musical e não-teatral.

2. São Filipe Néri e o início do oratório[1]. Ainda que na Idade Média e na Renascença já se cultivasse música sacra dramática dentro e fora da igreja, encenada ou não (drama litúrgico, moteto e lauda, diálogos dramáticos etc.), pode-se dizer que o oratório musical tem seu berço nas reuniões promovidas por São Filipe Néri (1515-1595) em Roma no século XVI. Visando uma melhor formação dos fiéis que o procuravam, São Filipe, já sacerdote católico, passou a reuni-los para tratar de temas espirituais. Davam-se conselhos, faziam-se leituras piedosas, discorria-se sobre episódios da história da Igreja ou da vida dos santos, sobre questões de virtude ou de doutrina e executavam-se músicas religiosas. Por volta de 1557, os encontros precisaram ser transferidos para uma capela lateral – de igreja – adaptada a esse fim e nascia, então, o “oratório”, nome que designaria também a futura Congregação religiosa que ali surgia. Desses encontros vieram a participar importantes personalidades da época, incluindo intelectuais, bispos e cardeais.



Fig. 16 – Gravura de Cornelis Galli (1576-1650) retratando São Filipe Néri (1515-1595), fundador da Congregação do Oratório, de onde derivariam diferentes usos do termo “oratório”, dentro os quais, aquele que desembocaria no oratório musical. Biblioteca Nacional.

A palavra “oratório” era usada por São Filipe e seus seguidores em três sentidos: para se referir (1) à instituição (associação de padres e irmãos constituíam o “oratório”), (2) ao salão de oração (realizavam-se os exercícios espirituais “no oratório”) e (3) às reuniões propriamente ditas, que ocorriam no espaço (“realizava-se o oratório” em determinado dia). Posteriormente, a instituição veio a ser chamada oficialmente de Congregação do Oratório, uma vez que o “oratório” era seu trabalho principal. Seus membros, principalmente padres, são ainda hoje chamados de “oratorianos”.

Tendo consciência do grande poder da música, São Filipe previa na regra para sua congregação, “que seus padres, juntamente com os fiéis, deveriam despertar para a contemplação das coisas celestiais por meio da harmonia musical”.[2] Inicialmente a música era empregada dentro dos exercícios espirituais alternando-se entre orações, leituras e sermões.

Em termos musicais, serão amplamente utilizadas no século XVI nessas reuniões do Oratório as chamadas laudi spirituali. Eram poemas religiosos escritos em vernáculo e musicados em estilo simples e claro para três ou quatro vozes. Sabe-se que São Filipe era familiar à lauda renascentista e medieval, muito cultivadas em sua terra natal, Florença. Compositores importantes da época, tais como Giovanni Animuccia (1514-1571), Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), Tomás Luis de Victoria (1548-1611) e Francesco Soto de Langa (1534-1619), chegaram também a colaborar musicalmente com o Oratório de São Filipe.

3. Estabelecimento do oratório musical[3]. Até 1640 já havia diálogos não encenados executados em oratórios italianos, tais como atesta a obra Teatro Armonico spirituale di madrigali (1619) de Giovanni Francesco Anerio (1567-1630), mas ainda não havia uma uniformidade quanto ao uso musical do termo oratorio, utilizando-se também títulos como cantata, dialogus, dialogo, drama sacro, drama tragicum ou componimento sacro. Entre 1640 e 1650 já se encontra especificamente em Roma o termo oratório definindo um gênero musical caracterizados por diálogos sacros não encenados. A partir de 1660, torna-se firmemente estabelecido o termo para designar a música feita sobre um texto sacro italiano ou latino, narrativo-dramático, escrito em versos, muito próximo estilisticamente dos libretos de ópera da época. Já desde essa época o oratório musical se caracteriza pelas suas duas partes estruturais (originado do costume de haver um sermão na pausa da música nas reuniões do oratório) e seu estilo musical será praticamente o mesmo da ópera.

Tanto em Roma como em outras cidades italianas nota-se um crescente interesse pelos oratórios musicais, tanto por ação dos oratorianos, que se expandem pela Itália, quanto pela função social que o oratório assume, a saber, a de um entretenimento piedoso que servia também como substituto da ópera nos tempos em que os teatros ficavam fechados (ex: Quaresma).

Durante o século XVII, os oratorianos da Chiesa Nuova e os padres da Igreja de San Girolamo della Carità, ambas em Roma, estabeleceram a tradição de executar oratório dentro de um exercício espiritual conduzido à noite todo domingo ou dia festivo durante os meses de inverno, desde a festa de Todos os Santos (1º de novembro) até o Domingo de Ramos. Provavelmente ocorriam mais de trinta apresentações por ano. Além dessa temporada anual, faziam-se também apresentações em dias especiais, tais como as festas dos Santos Nereus e Achilleus (12 de maio), de S. Filipe Néri (26 de maio), da Natividade e Assunção de Nossa Senhora (8 de setembro e 15 de agosto). As apresentações eram abertas ao público e patrocinadas pelos próprios oratorianos ou por patronos privados, cardeais e príncipes, confraternidades de leigos ou instituições de ensino.

O contexto para apresentação de oratórios na Chiesa Nuova era o exercício espiritual originado com S. Filipe Néri no final do século XVI. O serviço consistia em uma ou mais orações iniciais (no século XVIII: uma ladainha, a Salve Regina e o Pater noster), um sermão recitado de memória por um menino, música, um sermão de um padre e mais música. Em 1640 é finalizado o oratório da Chiesa Nuova em Roma, próximo à igreja. Era um espaço para aproximadamente quinhentas pessoas, além de uma loggia para cardeais. Foi lá que a Congregação do Oratório patrocinou apresentações de oratórios musicais por mais de duzentos e cinquenta anos. Antes de finalizada a obra, utilizavam-se como outros locais nas imediações da igreja.

Desenvolveu-se na Itália o chamado oratório volgare, em italiano, e o latino, em latim. Do ponto de vista musical, eram como dois idiomas de um mesmo gênero. Do ponto de vista literário, o oratório volgare caracterizava-se pelo texto poético em italiano (como nas laude, nos madrigais, nas cantatas e nas óperas), enquanto o latino empregava o texto em latim e em prosa (como nos motetos com texto narrativo e dramático). O uso do latim nos libretos subentendia uma audiência mais seleta e foi mantido principalmente no Oratorio del Santissimo Crocifisso, ligado à Igreja de San Marcello em Roma.

4. Carissimi[4]. Giacomo Carissimi é o mais famoso compositor de oratórios de meados do século XVII. A sua reputação ultrapassou Roma e a Itália e chegou ao norte da Europa e a maioria dos oratórios latinos que se conhece até hoje são os de Carissimi. Nasceu em Marino (próximo de Roma), tornou-se cantor na Catedral de Tivoli e lá foi também organista. Entre 1628 e 29 foi maestro di cappella na igreja de São Rufino em Assis. A partir de 1629 tomou posse do cargo de professor e de maestro di cappella no Colégio Germânico de Roma e na igreja do colégio, Sant’Apollinare, cargos mantidos até sua morte. Também teve o cargo de maestro di cappella del concerto di camera da Rainha Cristina da Suécia, em 1656.

Não há um consenso quanto ao número exato de oratórios compostos por Carissimi, já que ainda não havia na época plena uniformidade quanto à terminologia empregada no nome do gênero musical. Smither considera que seriam treze as obras enquadradas na definição clássica de oratório: (1) Baltazar, (2) Ezechia, (3) Diluvium universale, (4) Dives malus, (5) Jephte, (6) Jonas, (7) Judicium extremum, (8) Judicium Salomonis, (9) Abraham et Isaac, (10) Duo ex discipulis, (11) Job, (12) Martyres e (13) Vir frugi et pater famílias. Os oratórios latinos de Carissimi geralmente tinham uma única parte e duração de aproximadamente 10 a 30 minutos.

Os textos dos oratórios de Carissimi são anônimos, provavelmente escritos pelos padres do Colégio Germânico ou pelo próprio compositor. Oito deles são baseados no Antigo Testamento; dois, no Novo Testamento; um, misturando Antigo e Novo Testamento; e dois não são bíblicos. Os que são baseados na Bíblia geralmente empregam textos narrativos e com diálogos, com passagens narrativas reservadas para um ou mais solistas, um conjunto, ou um coro com os personagens no drama.

Quanto à música, já se nota nos oratórios de Carissimi o emprego de figuras musicais concebidas como análogas às figuras retóricas usadas no texto: repetições, progressões musicais como expressão de pathos, perfis melódicos representando determinadas palavras etc. Carissimi emprega muitas vezes a repetição de uma mesma música ou texto (ritornello instrumental, coro ou ária) com propósito de unificação formal.

As passagens solos geralmente são atribuídas aos personagens do drama ou ao historicus (narrador) e o estilo de tais trechos varia desde o puro recitativo simples até o estilo de ária, geralmente em forma ABB’. Os coros, geralmente homofônicos (como narração ou reflexão sobre a ação), têm papel mais proeminente nos oratórios de Carissimi quando comparados aos seus contemporâneos. Quanto à instrumentação, além do baixo contínuo, geralmente não se indicam os instrumentos, apenas dois no âmbito da soprano (violino) e um instrumento baixo separado do contínuo.

5. Barroco tardio[5]. Os centros principais de execução de oratórios em um contexto devocional em Roma no século XVIII seguiam sendo San Girolamo della Carità, Chiesa Nuova e Crocifisso. Nos dois primeiros, os concertos eram em domingos e dias festivos dos meses de inverno; no Crocifisso, eram nas sextas-feiras da Quaresma e em latim. Os oratórios eram vistos como uma mescla de instrução espiritual, mantendo-se o uso do sermão, com entretenimento. Em um contexto essencialmente secular, isto é, como substituto da ópera, sem orações ou sermões, com coquetéis servidos ao público, executavam-se oratórios em espaços como os palácios da Rainha Cristina da Suécia, dos Cardeais Pamphilj (patrono e também poeta) e Pietro Ottoboni, e do Príncipe Ruspoli.

Os oratórios eram financiados por diferentes indivíduos e grupos em Roma, tais como a Venerabile Compagnia della Pietà della Natione Fiorentina, a Rainha Cristina da Suécia, o Cardeal Pietro Ottoboni e o Papa Clemente XI. Instituições educacionais também apresentavam oratórios financiados pela nobreza, tais como o Colégio Clementino e o Seminário Romano (dos Jesuítas).

Os principais compositores ativos de oratório em Roma durante esse período eram Bernardo Pasquini (1637-1710), Alessandro Stradella (1643-1682), Alessandro Scarlatti (1660-1725), Antonio Caldara (1670-1736) e Georg Friederich Händel (1684-1759). Os compositores eram já ilustres, mas os libretistas dos oratórios eram comumente poetas menores, com exceção de nomes célebres da época, tais como os Cardeais Pamphilj e Ottoboni, Sebastiano Lazarini e Archangelo Spagna.



Fig. 17 – Gravura do compositor Georg Friederich Händel (1684-1759), reproduzida em catálogo da exposição comemorativa do bicentenário de sua morte, organizada pela Biblioteca Nacional (1959). Biblioteca Nacional.

Além de Roma, outros centros italianos possuíam importante produção de oratórios musicais nesse no século XVIII: Bolonha, Modena, Florença e Veneza, onde atuam compositores como Antonio Caldara (1670-1736), Francesco Gasparini (1661-1727), Antonio Lotti (1667-1740) e Antonio Vivaldi (1678-1741).

6. Estilo musical entre 1660-1680[6]. Os principais compositores de oratórios italianos desse período são Giovanni Legrenzi (1626-1690), Alessandro Stradella (1643-1682) e Giovanni Paolo Colonna (1637-1695). Desde meados do século XVII até o final do Barroco são três as fontes para os textos dos oratórios italianos: (1) a Bíblia, principalmente histórias do Antigo Testamento; (2) hagiografia (vida dos santos); e (3) virtudes cristãs apresentadas de forma alegórica. Ocorre nos libretos de oratório algo semelhante às óperas: tende-se a substituir-se a estrutura flexível por uma alternância rígida de unidades poéticas destinadas a recitativos (carrega os elementos narrativos e dramáticos) e árias (caráter lírico, estilização do afeto fundamental a ser expresso: vingança, raiva, amor etc.).

Em termos estritamente musicais, os oratórios eram escritos para um grupo de três a cinco vozes solistas, as quais formavam também os conjuntos vocais e o coro. A instrumentação consistia no baixo contínuo acrescido de dois ou três instrumentos de cordas (violinos e viola). Misturavam-se passagens solos em recitativo, arioso ou árias – geralmente em forma ABB’ e acompanhadas por baixo contínuo –, que eram inicialmente breves e com suaves linhas melódicas de bel canto, ritmos de marcha ou dança, melismas para expressão do texto. Os conjuntos vocais tendem a se estruturar de forma semelhante às árias, enquanto as peças instrumentais mais extensas são as sinfonias introdutórias, frases breves ou ritornellos entre passagens vocais ou eventualmente elaborados acompanhamentos. O estilo harmônico é claramente tonal com modulações a tonalidades vizinhas, sexta napolitana encontrada ocasionalmente, cromatismo raro e restrito a poucas modulações ou à expressão de palavras emotivas.

7. Estilo musical entre 1680 e 1720[7]. Os compositores mais representativos dessa época são Alessandro Scarlatti, Georg Friederich Händel, Antonio Vivaldi e Antonio Caldara. Nesse período há uma estreita conexão do oratório com a ópera da época. Continua-se com um pequeno número de vozes (personagens), de três a cinco. Mas há a característica especial de um interesse crescente no colorido orquestral, por meio de maior variedade de instrumentos, concerto grosso e passagens solos instrumentais. Consolida-se a alternância de recitativos (geralmente simples, com baixo contínuo somente) e árias (quase sempre da capo, forma ABA e mais longas), às vezes acompanhadas de passagens em arioso. As árias, acompanhadas agora por orquestra, tendem a ser facilmente classificadas conforme os afetos expressos: ira, vingança ou ciúme em passagens de coloratura elaborada; conotação militar em motivos de fanfarra; sentimentos alegres e leves em danças (minuto, gavotte ou giga); lamentos em sarabandas ou sicilianas etc. A instrumentação mais frequente é a de baixo contínuo com três partes de cordas e eventualmente outros instrumentos (flauta, oboé, trompete e tímpano). Os conjuntos vocais e os coros, geralmente breves e homofônicos, são relativamente raros e tendem a usar a forma da capo das árias. Os números puramente instrumentais independentes passam a ser mais longos e numerosos.

8. Classicismo[8]. O termo oratorio quando aplicado a uma obra com texto latino ou italiano no período entre 1720 e 1820 geralmente indica a mesma coisa que nas primeiras décadas do século XVIII. O oratório clássico é uma obra dramática, semelhante à ópera, mas não encenada e com texto religioso.

Nesse período, predominam como arquétipo os libretos de Pietro Metastasio (1698-1782). Tende-se a menos recitativos simples e a maior emprego de coros e conjuntos vocais, acompanhando-se basicamente o que também ocorre com a ópera. Os oratórios são executados nessa época em oratórios ou igrejas (mas não durante ofícios litúrgicos), em palácios privados e até em palcos de teatros. Via de regra, sempre a modo de concerto, ainda que em determinados locais também tenham sido apresentados como óperas (ex.: Nápoles no período entre 1780 e 1820).

Roma segue sendo nesse período do Classicismo um importante centro de produção de oratórios, ao lado de outras cidades italianas, como Veneza, Bologna e Florença. Fora da Itália, o oratório italiano era cultivado em cortes católicas e em cidades onde a ópera italiana era culturalmente importante. Geralmente eram ouvidos durante a Quaresma, quando os teatros eram fechados para obras seculares e os cantores de ópera ficavam disponíveis, mas dificilmente em outras estações. Em Portugal, especificamente, o entusiasmo com a ópera italiana (especialmente a napolitana) começa com D. João V (1706-50), mas os oratórios na corte começam somente com D. José I (1750-77) e D. Maria I (1777-1816), época em que se sabe terem sido apresentados oratórios de Jommelli, Haydn e Paisiello.

9. O libreto metastasiano[9]. Os libretos de Metastasio, modelo seguido no Classicismo, apresentavam uma estrutura clara e simples com linguagem elegante de versos polidos e melífluos, muito adaptáveis à música da época. Em 1729, Metastasio foi convidado a Viena pelo Imperador Carlos VI para substituir Apostolo Zeno (1668-1750) como poeta da corte dos Habsburgo e entre 1730-40 escreveu para Semana Santa sete libretos de oratórios: La passione di Gesù Cristo; Sant’Elena al Calvario; La morte d’Abel; Giuseppe riconosciuto; Betulia liberata; Gioas, re di Giuda; Isacco, figura del Redentore.



Fig. 18 – Frontispício de edição do libreto de Pietro Metastasio (1698-1782) de Gioas, re di Giuda, para representação em Portugal, em 1778, em versão musicada por António da Silva, em comemoração do natalício de D. Maria I. Biblioteca Nacional.

Em tais libretos, cujos temas na maioria das vezes provinha do Antigo Testamento, o número de personagens era em torno de quatro a seis e a estrutura do oratório continuava sendo em duas partes, mantendo-se a alternância entre recitativos (em versi sciolti – versos com sete e onze sílabas com ritmo irregular) e árias (com duas estrofes, da capo). Havia poucos conjuntos vocais e coros, os quais encontravam-se geralmente ao final de cada parte com função moral ou de síntese da história. O conflito dramático era baseado em aspectos morais derivados da doutrina e da história religiosa, sempre com um final feliz (lieto fine) para a história.

Metastasio respeitava as três unidades dramáticas em seus libretos: (1) tempo (drama se desenvolve em um período de um dia), (2) lugar (o drama não alterna o local) e (3) ação (somente uma ação dramática ocorre). As árias classificavam-se em quatro tipos: (1) dramática, (2) religiosa (oração, sermão etc.), (3) comparação (relação de uma situação dramática com uma imagem da natureza) e (4) sentenciosa (uma máxima ou provérbio). Também se distinguiam conforme os diferentes afetos representados: alegria, paz, lamento, fúria etc.

A partir da década de 1780, aproximadamente, os libretos de oratórios vão se afastando deste modelo metastasiano e seguem as inovações que ocorrem na ópera: recitativos mais curtos, menos árias, maior número de conjuntos vocais, outras peças no lugar das árias (ex.: a cavatina, com uma única estrofe) e maior predomínio de peças dramáticas.

10. Oratório clássico e romântico[10]. Com relação ao Barroco há continuidades no Classicismo, tais como: a divisão em duas partes; o padrão de alternância recitativo-ária (ou conjunto vocal ou coro); a interpretação musical dos afetos e imagens do texto; a relação entre estilo musical e importância dramática, condição social ou significado religioso do personagem que canta; e a unidade tonal geral das obras. Por outro lado, o século XVIII representa importantes mudanças estilísticas na música europeia. Smither classifica os oratórios desse período em três fases:

(1) De 1720 a 1760 – Barroco tardio e Galante. Representado por compositores como Johann Joseph Fux (1660-1741), Antonio Caldara (1670-1736), Giuseppe Porsile (1680-1750) e Georg Reutter (1708-1772), ativos na corte Habsburgo; Nicola Porpora (1686-1768), em Dresden; Benedetto Marcello, (1686-1739) em Veneza. As árias, os conjuntos e os coros têm uma linha de baixo linear com textura contrapontística, ritmo harmônico rápido, rico vocabulário harmônico e melodias construídas por sequência de motivos.

No estilo Clássico inicial encontra-se uma linha melódica simples organizada em frases regulares, a textura simples e homofônica, linha de baixo não linear e eventualmente baixo Alberti, com ritmo harmônico lento, conferindo um caráter mais leve à música. Nomes importantes na composição de oratórios nesse estilo são: Francisco Feo (1691-1761), Leonardo Leo (1694-1744), Johann Adolph Hasse (1699-1783), Baldassare Galuppi (1706-85), Giuseppe Bonno (1711-88), Ignaz Holzbauer (1711-83) e Niccolò Jommelli (1714-74).

(2) De 1760 a 1780 – Clássico. No estilo clássico propriamente dito a textura homofônica é realizada por linhas de acompanhamento de maior interesse melódico e contrapontístico, aumentando o número de partes em uma orquestra mais robusta. A harmonia é mais rica, com modulações além da área tonal principal e as árias passam a ser predominantemente dal segno, às vezes substituídas por cavatinas. Aumenta o número de recitativos acompanhados e os coros são mais numerosos, homofônicos ou polifônicos.  As aberturas tendem a ter três movimentos ou um único movimento em forma sonata, com introdução lenta. Os compositores principais são: Ferdinando Bertoni (1725-1813), mais prolífico compositor de oratórios no século XVIII, com cerca de cinquenta oratórios, a maioria para Veneza; Pasquale Anfossi (1727-97), com vinte e dois oratórios, a maioria para os oratorianos de Roma; Antonio Sacchini (1730-86), com oito oratórios latinos e italianos para Bologna, Veneza e Roma; Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), com um só oratório italiano, La Betulia liberata, encomendado para Pádua (1771); Josef Mysliveček (1737-81), da Boêmia, com quatro oratórios, ativo na Itália; e Joseph Haydn (1732-1809), com um só oratório italiano, Il ritorno di Tobia (1775).



Fig. 19 – Frontispício de edição do libreto de Il ritorno di Tobia, de autoria de Giovanni Gastone Boccherini (1742-1798), quando da execução da versão musicada por Joseph Haydn (1732-1809) no Real Palácio da Ajuda, em Portugal, pelas comemorações do onomástico do príncipe D. José, em 1784. Biblioteca Nacional.

(3) De 1780 a 1820 – Clássico tardio. Na virada do século XVIII para o XIX há uma série de mudanças musicais e sociais que tornam obsoleto o antigo modelo de oratório italiano tradicional, não encenado. A atenção dos compositores e do público voltava-se para a ópera e para as obras sacras apresentadas como teatrais.

Os conjuntos e coros se tornam mais numerosos e concebidos dramaticamente, tornam-se mais frequentes os números solo-coral e conjunto-coral nos inícios e finais de partes e os números finais revelam influência do finale de ópera cômica. Os recitativos ficam mais curtos e tendem a ser em estilo acompanhado. A oposição recitativo-ária mantém-se, mas inclui outros estilos de solo (arioso, cavatina), abandonando-se a ária da capo e dando lugar a novas formas, como a de rondó ou a ária em dois movimentos (cantabile-cabaletta). O estilo melódico torna-se mais simples, com algumas passagens em coloratura, e a orquestração é mais explorada para colorir o efeito dramático, com metais e madeiras mais proeminentes.

Representantes do clássico tardio e romântico inicial são Pietro Alessandro Guglielmi (1728-1804), Giovanni Paisiello (1740-1816), Domenico Cimarosa (1749-1801), Niccolò Antonio Zingarelli (1752-1837), Simon Mayr (1763-1845), Ferdinando Paer (1771-1839), Francesco Morlacchi (1784-1841) e Gioacchino Rossini (1792-1868). Eram célebres e muito apresentados nessa época os oratórios Debora e Sisara, de Guglielmi; La passione, de Paisiello; Gerusalemme distrutta, de Zingarelli, Isacco, figura del Redentore, de Morlacchi, Mosè in Egitto, de Rossini.

Ao longo do século XIX, marcado pelo Romantismo e pela ópera, alguns outros compositores também se dedicarão a eventuais oratórios, ainda que musicalmente modelados no estilo operístico em voga: Saverio Mercadante (1795-1870), Giovanni Pacini (1796-1867), Pietro Raimondi (1786-1853), Teodulo Mabellini (1817-1897), Enrico Bossi (1861-1925) e Ermanno Wolf-Ferrari (1876-1948). Será somente com Perosi no final do século XIX que haverá uma mudança de direção no oratório italiano.

11. Lorenzo Perosi[11]. Segundo Smither, “os quatorze oratórios de Perosi (1872-1956) são as obras italianas mais importantes desse gênero do final do século XIX e início do XX.” Os oratórios mais célebres de Perosi foram compostos na última década do século XIX e no início do século XX:
Seu primeiro oratório, La passione di Cristo secondo San Marco: trilogia sacra, estreou em 9 de agosto de 1897 em Veneza, na Igreja de S. S. Giovanni e Paolo, por ocasião do V Congresso Eucarístico Italiano. No ano seguinte, compôs La risurrezione di Lazzaro (apresentada pela primeira vez em 27 de julho de 1898 em Veneza) e La risurrezione di Cristo (13 de dezembro de 1898, Roma). Esses primeiros trabalhos foram aclamados pelo público e pela crítica, e seu próximo oratório, Natale del Redentore: oratorio in due parti, foi apresentado em Como, em 13 de setembro de 1899, na presença do rei e da rainha da Itália, Umberto I e Margherita de Saboia. Os oratórios da década de 1890 foram os mais populares e os mais realizados em toda a Itália e Europa. Seus oito oratórios datados de 1900 a 1912 e os dois posteriores, de 1917 e 1937, também receberam grandes elogios da crítica. A maioria dos oratórios de Perosi foi publicada, o que era bastante incomum para os oratórios italianos da época.[12]

Os oratórios de Perosi rompem, de certa forma, com a tradição do oratório italiano clássico e romântico, que seguiam de perto o estilo operístico, retomando elementos característicos das origens históricas do oratório musical, sobretudo o seu caráter profundamente religioso, o emprego do latim, o respeito às fontes bíblicas e litúrgicas na composição dos libretos e a utilização do narrador (storico). Sob o ponto de vista harmônico e orquestral, Perosi alinha-se à música de sua época, ainda que com certo ecletismo, misturando a linguagem musical romântica com referências ao cantochão medieval e à polifonia clássica renascentista:
Os oratórios de Perosi representam um afastamento decisivo da tradição do oratório italiano que seguia de perto o estilo operístico e até mesmo a forma operística de performance. A maioria de seus oratórios tem textos em latim (da Vulgata e da liturgia), e nesse aspecto ele segue o exemplo de Liszt em Christus. A maioria dos oratórios de Perosi inclui um narrador (chamado Storico) ou texto narrativo definido para coro. Assim, os oratórios não foram concebidos para serem representados como óperas nem são adequados para encenação. Obras relativamente breves, profundamente espirituais e completamente católicas romanas, esses oratórios parecem ser modelados mais nos oratórios de Carissimi do que na ópera italiana ou nos oratórios de Handel, Bach ou Mendelssohn. Mosè (1901) é excepcional entre os oratórios de Perosi por seu texto italiano e pela ausência de um narrador em favor de um libreto dramático. Mas quando o compositor foi abordado com a ideia de encenar Mosè, ele rejeitou a ideia com o comentário: “Eu não fiz uma obra para o teatro, mas escrevi um oratório, ou, se você quiser, um poema sacro, un'azione biblica, que é mais bem aproveitada sem a distração do cenário.”

Estruturalmente, os oratórios de Perosi seguem certas tendências da época: são contínuos, fluem continuamente sem números fechados seguidos de pausas, e são unificados por motivos recorrentes tratados mais como motivos de lembrança do que como leitmotiv. O estilo melódico tanto no solo vocal quanto na escrita coral é lírico. Os estilos recitativo e arioso são equilibrados. As texturas corais tendem a ser homofônicas, mas incluem passagens imitativas ocasionais e até fugati. O estilo harmônico é eclético, sugerindo uma mistura do Wagner de Lohengrin, Brahms do Réquiem Alemão, o mundo pós-wagneriano de Dream of Gerontius (1900) de Elgar, ou mesmo às vezes o estilo harmônico de Richard Strauss. Ele também se baseia em música de períodos históricos anteriores: citações do canto gregoriano, os estilos de polifonia e falsbordone da Renascença, elaboração barroca e variação de melodias de hinos e os procedimentos de fuga de J. S. Bach – especialmente em passagens orquestrais. Mas ele integra esses elementos variados de uma maneira eminentemente agradável que ressalta o significado espiritual de seus textos. De especial interesse nos oratórios é o papel significativo da orquestra, ora simplesmente acompanhando as vozes, ora indo além do acompanhamento, de maneira wagneriana, para expressar as emoções ou representar o desenvolvimento dramático da situação. Os numerosos interlúdios orquestrais programáticos e movimentos independentes, sugerindo a influência de Liszt, incluem descrições de milagres, cenas pastorais e expressões de tristeza, entre muitos outros.[13]

Devido a esse novo formato que Perosi dava aos seus oratórios, foi aclamado em sua época como um grande reformador. Infelizmente, o caminho que a música moderna e contemporânea tomou, relegou muitas das obras de Perosi ao esquecimento.

 

[1] Cf. SMITHER, 1977, p. 39-76.

[2] OTTEN, 1911.

[3] Cf. SMITHER, 1977, p. 117-141; 145-205.

[4] Cf. SMITHER, 1977, p. 207-246.

[5] Cf. SMITHER, 1977, p. 258-291.

[6] Cf. SMITHER, 1977, p. 306-333.

[7] Cf. SMITHER, 1977, p. 333-361.

[8] Cf. SMITHER, 1987, p. 3-50.

[9] Cf. SMITHER, 1987, p. 51-66.

[10] Cf. SMITHER, 1987, p. 67-86; 2000, p. 613-614.

[11] Cf. SMITHER, 2000, p. 621-624.

[12] SMITHER, 2000, p. 621-623, tradução nossa.

[13] SMITHER, 2000, p. 623, tradução nossa.

Parceiros