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Tradução de Cantos e Narrativas dos Povos Originários para o português…

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Cuidado com o Jabuti*

Como escreveu o antropólogo francês Lévi-Strauss, animais são “bons para pensar”. Lendas e mitos envolvendo bichos parecem ser um dos traços mais universais da contação de histórias entre os homens. E se por muito tempo essas narrativas foram transmitidas oralmente, ao longo dos últimos séculos ganharam também registros impressos: muitos pesquisadores, escritores ou apenas curiosos compilaram mitos de várias partes do mundo.

Durante o século XIX, o gênero se tornou um verdadeiro filão literário. Foi quando surgiram as primeiras obras reunindo mitos indígenas brasileiros. Entre eles, Amazonian tortoise myths (1875), um livro produzido em inglês pelo geólogo canadense Charles Frederick Hartt, com várias histórias que têm como protagonista o aparente pacato jabuti – e que hoje está guardado na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional.

 

Figura 1 - Amazonian tortoise myths

Fonte: Hartt (1875). Imagem do exemplar da Biblioteca Digital de Obras Raras da UFRJ.


O que mais chama a atenção no livro é o contraste entre as características físicas do animal e seus traços morais. Conhecido por sua lentidão, timidez e relativa fragilidade, o quelônio terrestre aparece nas narrativas indígenas como um bicho extremamente astuto, com pensamento rápido em situações adversas. Além disso, é rancoroso, maldoso e vingativo. Chamá-lo de lento ou debochar de suas pernas curtas é atiçar o que há de pior nele. “É verdade!”, diz relato colhido por Hartt de um indígena em Itaituba, Pará, “é o diabo; e tem feito estrago!”. Em vários contos, a consequência da zombaria é a morte.

É o que acontece na lenda denominada “Como o jabuti correu mais que o cervo”. O jabuti está passeando pela floresta quando encontra o cervo, com quem puxa conversa inocente. Pergunta o que está procurando. “Algo para comer”, diz o cervo, que devolve a pergunta. “Água para beber”, responde o jabuti. O problema começa em seguida, quando o cervo provoca: “E quando você espera chegar lá? (...) Suas pernas são tão curtas”. O jabuti então lança um desafio para ver quem corre mais rápido, marcado para a manhã seguinte num “campo” aberto. Na noite anterior, porém, reúne seus parentes e trama com eles a morte do adversário: “Vamos, matemos o cervo!”. O jabuti pede para que seus familiares fiquem escondidos ao longo do caminho, à beira do campo que seria percorrido. A corrida se inicia e, toda vez que o cervo ganha distância, chama pelo jabuti na certeza de que estaria bem atrás. Toda vez, o jabuti que se encontra à frente responde ao chamado. O cervo corre cada vez mais até que, já cansado e em desespero, bate em uma árvore e cai morto.

Histórias assim, de astúcia e maldade, se repetem ao longo da compilação feita por Charles Hartt. E o comportamento do protagonista fica evidente logo nos títulos: “O jabuti que enganou o homem”, “Como o jabuti matou duas onças”, “Como o jabuti provocou uma disputa de força entre a anta e a baleia”. Ao final de cada narrativa, o autor apresenta uma curiosa chave interpretativa comum a todos os mitos: eles estariam fazendo uma permanente alusão aos ciclos do sol e da lua. Na história da corrida entre o jabuti e o cervo, por exemplo, o jabuti seria o sol – lento, porém constante – e o cervo, a lua – rápida, mas que morre ao final, como o ciclo lunar. No mito em que o jabuti engana o homem, o animal escapa de ser comido entrando em sua toca por um buraco e saindo pelo outro lado, assim como parece fazer o sol.

Reunir os mitos indígenas não foi tarefa fácil para o geólogo canadense. Segundo ele, talvez tais mitos jamais tenham sido narrados em português. Foi preciso aprender a “Língua Geral, ou “Tupi moderno”, conforme falado na região do rio Tapajós, para ter acesso àquele universo. Hartt chegou a escrever um pequeno tratado sobre o tupi moderno.

A relutância dos nativos foi outro obstáculo: “Por muito tempo fiquei perplexo, pois os brancos, em regra geral, desconheciam o folclore indígena; e nem bajulando, tampouco oferecendo dinheiro fui capaz de convencer um índio a me narrar um mito”, conta ele. Para conhecer as histórias e conseguir fazer os registros, ele precisou partilhar momentos específicos com os indígenas, como reuniões à noite em volta da fogueira. Ele próprio narrava algum mito que memorizara, buscando incitar os nativos, mas “cuidando de não mostrar curiosidade demais”. Tal prática de imersão na cultura a ser estudada lembra o método etnográfico que seria adotado futuramente pelos antropólogos do século XX.

Para os geólogos com planos de trabalhar na Amazônia, Hartt aconselha que se dediquem também a outro ramo das ciências, pois perderiam muito de seu tempo devido às enormes distâncias que separam pontos de interesse geológico. Pelo visto, seus interesses extrapolavam os limites científicos convencionais.

*Artigo publicado originalmente em: LAPA E SILVA, Iuri A. Cuidado com o jabuti. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 10, edição 112, p. 90-91, 01 jan. 2015.

Referências

HARTT, Charles Frederick. Amazonian tortoise myths. Rio de Janeiro: William Scully, 1875. Disponível em: https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/1277/1/192642.pdf. Acesso em: 27 dez. 2023.

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