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Introdução

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Introdução

“A curiosidade é um vício que foi sendo, sucessivamente, estigmatizado pelo cristianismo, pela filosofia e mesmo por certa concepção da ciência. Curiosidade, futilidade. Contudo, a palavra me agrada, ela me sugere uma outra coisa: ela evoca a ‘inquietação’, o cuidado que temos com o que existe e poderia existir, um sentido agudo do real, mas que jamais se imobiliza diante dele, uma perspicácia por achar estranho e singular o que nos rodeia, certa obstinação por abrir mão do que é familiar e por olhar as mesmas coisas de outra maneira, um ardor por apreender o que se passa e o que passa, uma desenvoltura em relação às hierarquias tradicionais entre o importante e o essencial.” 1


Michel Foucault


No século XVI, a Europa descobriu as terras distantes onde a natureza era exuberante e estranha, a luz dilatava a visão, e o homem vivia nu. Terras que pertenciam a tudo e todos que nelas viviam. Para os colonizadores europeus, terras de ninguém a serem circunscritas pelo esquadro da posse e do controle. O século XVI foi palco de amputações indiscriminadas de mundos físicos e mentais do Novo Mundo e de seus consequentes transplantes para a Europa. Os gabinetes de curiosidades conheceram seu esplendor nesse período, quando o desenho do mundo ainda estava por ser definitivamente concluído. Momento em que a “inquietação frente ao que existe e poderia existir” lançava o homem no coração da vertigem do incerto e desconhecido, de onde ele voltava com o espírito impregnado de impressões intraduzíveis e as mãos cheias de objetos estranhos e admiráveis. Grande parte desses objetos, poeticamente chamados peregrinos, tornaram-se fontes de espanto e deslumbramento nos variados compartimentos dos gabinetes de curiosidades. Organizados por eruditos, apoticários, naturalistas, botânicos, médicos, profissionais liberais de todos os matizes e príncipes europeus, interessados pela ciência e pela arte, os gabinetes de curiosidades eram originariamente locais de estudos, periodicamente abertos para que o público conhecesse e aprecias- se uma profusão de itens criados por Deus e pelo homem. Uma nomenclatura latina organizava tudo o que fosse da lavra de Deus como naturalia – plantas, sementes, insetos, minerais, fósseis, conchas, animais empalhados, cascas, órgãos conservados em frascos, e exotica – plantas e animais exóticos. O que erada lavra do homem era ordenado como artificialia – obras de arte, antiguidades, ar­tefatos, objetos etnográficos, e scientifica – instrumentos científicos, autômatos, etc.


Refletindo a nova configuração do mundo desenhada pela colonização europeia, essas coleções constituíam a afirmação de poder e riqueza intelectual e econômica de seus patronos. Cada gabinete guardava em suas prateleiras, ga­vetas e espaços onde se poderia dependurar, afixar, acomodar ou sobrepor os itens que correspondiam aos gostos e inclinações daquele que o idealizara e constituíra, ou seja, à curiosidade que o movia.


Representações da vertigem


A iniciativa de acumular e usufruir de tudo que atrai e instiga por sua estranhe­za, beleza, e singularidade, e fazer disto uma atividade, está na raiz da cultura da curiosidade e do espírito enciclopédico, que vicejaram na Europa dos séculos XVI a XVIII, quando a claridade, a transparência, a austeridade, a medida do hu­manismo renascentista iam dando lugar ao exagero, à exuberância aos contras­tes e à saturação do barroco. O gabinete de curiosidades se materializava como a “forma acabada”2 de um traço dessa cultura, cuja ambição estava na vertigem de ombrear com o divino ao pretender, tal como em uma Arca de Noé, reunir em um espaço finito, exemplares das coisas criadas por Deus e pelo homem.


Também chamados Quartos das Maravilhas, os gabinetes transformavam en­tão essa vertigem3 em representação perturbadora, obtida pela correspondên­cia ou sincretismo entre os itens dos reinos opostos, naturalia e artificialia, que dispunha, lado a lado, incunábulos e um leão empalhado, membros de animais conservados e instrumentos musicais, conchas e esculturas, autômatos e chi­fres de unicórnios, surpreendendo e capturando, avassaladoramente, o olhar.


Tudo estava reunido por um parentesco insuspeito. E, tal como em um caleidos­cópio, a maneira como cada objeto era visto desencadeava inúmeras associa­ções e parentescos. Cada objeto ou conjunto de objetos desvelava novas facetas pela empatia, feita de ignorância e espanto, com que era olhado. Os gabinetes de curiosidades reverberavam um tipo de cosmovisão, vizinha à de Tales de Mile­to, o primeiro filósofo grego, em que tudo é um.


 


Um caos indistinto


No espaço do gabinete de curiosidades, acumulavam-se itens raros – por serem os últimos de uma série ou por serem oriundos do distante no tempo e no espaço – itens exóticos, itens singulares, os casos únicos levados ao extremo. A aberra­ção nos dois reinos4 tinha livre entrada neste cenário em que o real e o fabuloso, o natural e o religioso, andavam de mãos dadas: desde, por exemplo, objetos da lavra humana, que desafiavam o senso de proporção, aos seres anômalos, monstruosos e imaginários. Estes últimos, como os demais, eram também exemplos da Criação: a de Deus, e a do homem possibilitada por Deus. Quando o Novo Mun­do desvelou seu “reservatório de maravilhas”5 à Europa, as ciências ainda não estavam preocupadas em sistematizar séries e leis naturais6, mas em acumular itens recolhidos acidentalmente, exemplares que confirmavam o poder infinito da Criação. Porém, embora consideradas arbitrárias pelo juízo dos tempos, a co­leta e a classificação realizadas por apoticários, botânicos, cientistas, médicos, eruditos dos gabinetes, concorreram significativamente para o avanço dos co­nhecimentos em História Natural, e sua consequente legitimação como ciência.


Aos olhos do século das luzes, a curiosidade, que erguia gabinetes e registrava em alentados catálogos seus espantosos acervos, era futilidade7 a ser defini­tivamente extinta. É de maneira enfática que o verbete “Gabinete de História Natural” da Encyclopédie Française descrevia os naturalistas, patronos de ga­binetes de curiosidades, como homens desprovidos “de gosto e de genialidade”. Convocava-os a devolver à natureza “a multidão de cadáveres, de pássaros, de peixes e de insetos”, amontoados e espalhados no espaço caótico e ininteligível do gabinete, no qual não se podia distinguir nada de preciso e claro. E, ao final, o arrazoado em forma de verbete relegava aqueles homens ao fundo da pedreira “onde deveriam se ocupar em talhar pedras, deixando a outros o cuidado de organizar o edifício”.8


Um interessante exemplo dessa mudança de paradigmas do pensamento eru­dito europeu pode ser encontrado em estudo dos historiadores Lorelai Brilhante Kury e Carlos Ziller Camenietzki9 sobre a coleção do Museu da Companhia de Jesus em Roma10. Organizada pelo jesuíta alemão Athanasius Kircher (1601-1680), a coleção desse gabinete foi uma das mais célebres da Europa e das pou­cas que conseguiram se manter até meados do século XVIII. Ela foi descrita, pela primeira vez, por Giorgio de Sepi no catálogo publicado em 1678, com o título Museu Celebérrimo. Nele está “orgulhosamente” registrado um de seus itens mais curiosos: a cauda syrenis, ou seja, parte do esqueleto da porção peixe de uma sereia encontrada nas Ilhas Molucas. Já no segundo catálogo da coleção, escrito por Filippo Bonnani e publicado em 1709, não há nenhuma referência a ela. E os autores concluem: “O que efetivamente mudou de um catálogo a outro foi a concepção do mundo do curador”.11


É importante notar que, desta exposição que ora se inaugura, consta um exem­plar do catálogo do Museu Celebérrimo12 e também uma ilustração da sereia, cuja legenda informa:


Monstro parecido com uma sereia, capturado na costa do departamento da Ilha de Amboina [Arquipélago das Molucas]. Com 59 polegadas de comprimento, era proporcional a uma enguia gigante. Sobreviveu em terra dentro de um tanque cheio de água, por quatro dias e sete horas. De vez em quando, soltava pequenos gritos como os de um rato. Recusou os alimentos, mesmo que lhe oferecessem peixes, mariscos, camarões, lagostins, etc. Após sua morte, foram encontra­dos, dentro do tanque, excrementos parecidos com os dos gatos.13


Juntamente com a sereia da Ilhas Molucas, desapareceu a cosmovisão que alicer­çou o florescimento dos gabinetes de curiosidades. A partir do século XVIII, a cres­cente afirmação da cultura científica moderna desfez progressivamente o sonho de síntese entre a natureza e a arte, o real e o fabuloso. Se, antes, classificar significava buscar uma unidade entre objetos, agora, significa separá-los, isolá-los, reduzi-los a abstrações quantificáveis para, em seguida, nomeá-los. Os recursos de classificação deixavam de ser os de correspondência, analogia e simpatia entre objetos únicos e raros: despojados dessas qualidades, eles passaram a ser apenas uma peça, um item que comprovava a eficácia de um sistema. Assim, o universo mental dos homens referidos como desprovidos “de gosto e de genialidade” no verbete da Encyclopé­die française, bíblia do racionalismo triunfante, vai sendo gradativamente relegado ao fundo das pedreiras. Verdadeiros polímatas, termo mais apropriado para definir aqueles que dominam vários campos do saber e transitam com desenvoltura entre eles, os construtores de Teatros do Mundo foram, em primeira e última instâncias, enciclopedistas que registraram, em minúcia, nos catálogos de suas coleções, o co­nhecimento de uma era.


Topografia da vertigem


Nessa atmosfera barroca em que presidia o anseio impossível de construir um Teatro do Mundo, torna-se oportuno mencionar a etimologia do topos que o sedia, o gabinete. O termo deriva do francês cabinet, que remete sempre a um lugar reservado: pequeno cômodo separado e dependente de um maior, espaço à sombra de um jardim cercado de arbustos, lugar onde se estuda ou trabalha, lugar onde se guardam objetos preciosos. Desse sentido resultam as denomina­ções gabinete de pinturas, de quadros e de antiguidades, gabinete de leitura ou biblioteca, gabinete ministerial e, no sentido concreto, móvel com gavetas onde se guardam objetos preciosos. Gabinete designa portanto um continente pas­sível de guardar conteúdos simbólicos e concretos ou ambos ao mesmo tempo, podendo ser desde uma gaveta a um móvel ou cômodo vasto.


No primeiro plano de uma rara representação de um gabinete de curiosidades, no caso o do cientista alemão Michael Bernhard Valentini(1657-1729)14, prate­leiras e nichos, que vão do chão ao teto, abrigam livros e objetos. Em segundo plano, uma arcada desvela uma galeria, em cuja única parede visível para o observador estão dispostos gaveteiros que parecem se estender em direção ao infinito. Na parede acima deles, estão afixados itens como animais empalha­dos, armas, escudos e objetos de difícil identificação. Disposição esta que, como os gaveteiros, parece prolongar-se infinitamente. Olhando à esquerda, o obser­vador descortina mais uma galeria e mais outra, dando a vislumbrar, em uma perspectiva já esmaecida, um desdobramento de arcadas de longo alcance, que insinuam a abertura de caminho para uma sucessão de galerias.


Podemos encontrar na Matriosca, boneca russa que se desdobra vertigino­samente em uma quantidade estonteante de bonequinhas, um providencial exemplo para ilustrar o infinito de um dentro, portanto, o gabinete de curiosi­dades como continente de um sem número de gabinetes materiais e simbólicos, que compõem um Teatro do Mundo destinado a causar espanto e admiração.


Biblioteca nacional – teatro do mundo


Os critérios de disposição de obras e a topologia dos gabinetes de curiosidades inspiram a narrativa e a topologia desta exposição, composta por 507 itens do acervo da Biblioteca Nacional. Além dos parâmetros de correspondência e sin­cretismo de praxe, tidos como arbitrários na organização dos gabinetes, esta narrativa, reflete, mais do que se possa admitir ou crer, a vontade das peças do acervo de eleger os temas que as conduzem, garantindo assim o seu lugar como exemplar único e indispensável. Cada uma delas, rara em sua singularidade ou singular em sua raridade, em si mesma anunciou o espaço ou os espaços onde poderia se inscrever, indicando, assim, que a raridade e a singularidade estão também na qualidade de multissêmicas, ou seja, de sugerir muitos sentidos.


Guiada por esses indícios, a narrativa estrutura-se em dezenove temas, dis­tribuídos em dezoito vitrines e uma sala. Cada um desses espaços sendo um pequeno gabinete em que cada item sugere, aponta, lembra a correspondência que pode, ou não, ser imaginada ou sonhada entre todos. Ocorre que, neste uni­verso, correspondência e unidade são categorias subjetivas, o que faz com que cada observador possa, como em um caleidoscópio, vislumbrar outras configu­rações, que não as sugeridas pelo arranjo proposto, inclusive podendo ver nele nada além de uma reunião caótica de objetos feita “sem gosto e genialidade”. Assim, se decidido a entrar no jogo inesgotável da imaginação, o observador poderá transportar os itens de uma vitrine para a outra, confirmando o supos­tamente arbitrário – onde cabem non sense, contradição e despropósito – como um meio de fruição e descoberta.


Também por seus temas, ditados pelo que o acervo escolheu, esta narrativa se ins­pira no universo mental e existencial em que os gabinetes foram constituídos. Mes­mo tendo sido ele o território onde se esboça a terrível passagem do valor de enigma do objeto que, de máximo, palpável, e único em sua singularidade, torna-se um va­lor de mercado, descarnado, cifra abstrata ao sabor das flutuações comandadas por uma mão invisível, não mais a da Criação, mas a das multiplicações. Embora tenha ganho outros nomes e tenha sido descrito de outras formas, este universo permane­ce sendo o único solo onde se vive e de onde se parte.


Diante disso, essa narrativa é atravessada pelos temas do tempo, da fé, do an­seio, da ambição, da desmesura e do despropósito, da admiração, da surpresa, da contradição, do horror, da alegria. Cumpre ressalvar: temas apenas lembrados, insinuados, levantados, mas jamais esgotados. E, a reafirmar sua pertinência, estão reunidos ou acumulados, como se queira, obras, opúsculos, indícios, sinais daquilo que o homem vem registrando ao longo de sua passagem pela Terra.


Os dezenove gabinetes temáticos formam, então, um Gabinete de Obras Má­ximas e Singulares. Máximas, por serem superlativas em significado, e singu­lares por serem, em si mesmas, únicas, o que as qualifica, todas, como raras. Também raras pelo fato de estarem sendo exibidas pela primeira vez, desta­cando-se dentre muitas, os catálogos de gabinetes de curiosidades, que, a partir de 1808, juntamente com cerca de 60.000 itens oriundos de Lisboa, fizeram o roteiro inverso ao da peregrinação das maravilhas do Novo Mundo para a Euro­pa, atravessando o Atlântico em direção ao Rio de Janeiro, para constituir aqui o que é hoje a Biblioteca Nacional.


Considerando que as obras expostas são exemplares de um precioso e ainda desconhecido universo guardado nas prateleiras, armários e cofres da institui­ção, este Gabinete de Obras Máximas e Singulares, que ora se constitui, é ga­binete e também uma arcada que, tal como uma das arcadas do gabinete de Valentini, deixa entrever a Biblioteca Nacional como um Teatro do Mundo.


CLÁUDIA FARES


Curadora


1 Michel Foucault. “Le philo- sophe masqué” (entretien avec C. Delacampagne, février 1980), Le Monde, no 10945, 6 avril 1980, Le Monde Diman- che, pp. I et XVII. Dits Ecrits tome IV, texte n°285.


2 SCHANAPPER, Antoine. Le géant, la licorne et la tulipe, les cabinets de curiosités en France au XVIIe siècle. Paris, Flamarion, 1988, 2012. p.19-21


3 Para o estudioso de gabi-netes de curiosidades Patrick Mauriès, a cultura da curiosi­dade se revela como a “verti­gem borgeana do cartógrafo que buscaria recobrir termo a termo os menores relevos e acidentes do que pretendesse representar”. Cf. MAURIES, Patrick. Cabinets de curiosités. Paris, Gallimard, 2012. p.43. O autor se refere ao conto “Sobre o rigor na ciência”, do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986)


4 MAURIES, Patrick. Op.cit. p.73.


5 MAURIES, Patrick. Idem.


6 SCHANAPPER, Antoine. Op.cit. p.18.


7 FOUCAULT, Michel. Op.cit.


8 Cabinet d’Histoire Natu­relle. In: ENCYCLOPÉDIE, ou, Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers... Mis en ordre publié par m. Diderot... quant à la partie mathématique, par m. d’Alembert... Paris: Briasson, 1751-1772, t.2 p.489.


9 KURY, L. B., CAMENIETZKCI, Z. Ordem e Natureza: coleções e cultura científica na Europa Mo­derna. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.29, 1997. p.78-79 .


10 Grande número de gabinetes de curiosidades se autointitulavam museus.


11 KURY, L. B., CAMENIETZKCI, Z. Op.cit.


12 SEPIBUS, Georgius de. Romani Colegii Societatus Jesu Musaeum celeberrimum, cujus magnum antiquariae rei, statuarum ima­ginum, picturarumque partem ex legato... Amstelodami [Holanda]: Ex Officina Jonssonio-Waesber­giana, 1678.


13 RENARD, Louis [1678-1746]. Poissons ecrevisses et crabes, de diverses couleurs et figures extraordinaires, que l’on trouve autour des isles Moluques, et sur les cotes des Terres Australes... Amsterdam: Chez Reinier et Josue Ottens, 1754. [Planche Dixième]


14 VALENTINI, Michael Ber­nhard [1657-1729]. Museum Museorum oder vollstandige Schau-Buhne aller Materialien und specereyen nebst deren naturlichen Beschrei bungen... aus andern men, oost-und vestindischen uisz - bes­chreinbungen... 2.ed. Franckfurt am Mayn: Verlegt von Johann David Funners sel Erbin und Johann Adam Jungen, 1714. [Tab. XXXVIII].