BNDigital

Rede da Memória Virtual Brasileira

< Voltar para Dossiês

A Companhia de Jesus

Patrícia Souza de Faria*


“Minha vontade é conquistar toda terra de infiéis”, proclamava Inácio de Loyola (1491-1556), fundador da Companhia de Jesus, assim denominada para indicar quem seria o verdadeiro líder desta ordem religiosa de espírito militante. Os padres da Companhia passaram a ser chamados jesuítas, termo associado ao nome de Jesus, apresentando-se como responsáveis pela conquista espiritual dos “infiéis”, adversários do credo católico.

A Companhia de Jesus sofreu sua gestação após ruir a convivência tolerada entre as três religiões monoteístas na Europa: muçulmanos estiveram sob o fogo das cruzadas religiosas, judeus submetidos a forçadas conversões. Em 2 de janeiro de 1492, o último reino muçulmano da Península Ibérica, Granada, foi reconquistado das mãos dos seguidores do islã pelos reis católicos, Isabel e Fernando, que assinaram o decreto de expulsão dos judeus da Espanha em 31 de março do mesmo ano. A luta contra os “adversários” do catolicismo estender-se-ia para outras regiões: as terras recém-descobertas da América, os domínios de impérios europeus na Ásia e na África.

Em 1534, Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Simão Rodrigues, Pedro Favre, Diogo Laínez, Afonso Salmerón e Nicolau Bobadilha fizeram votos em 15 de agosto na capela dedicada à Nossa Senhora em uma igreja em Montmartre, em Paris. A este grupo inicial de homens que se conheceram na Universidade de Paris, uniram-se Cláudio Jay, Paschase Broët e João Codure. Loyola idealizou a partida com seus companheiros em direção à Jerusálem, esperando libertá-la do controle dos turcos, mas seguiram para a Cidade Eterna, Roma, onde a Companhia de Jesus foi aprovada oficialmente pelo Papa Paulo III em 27 de setembro de 1540, através da bula Regimini militantis Ecclesiae.

Os membros da Companhia de Jesus comprometiam-se à obediência dos três votos regulares professados pelas demais ordens religiosas (pobreza, castidade e obediência), contudo, dispunham-se a uma total obediência ao Sumo Pontífice através do chamado quarto voto, que consistia em voto especial a Deus, na aceitação de partir para missões em qualquer parte do mundo quando designados pelo Papa. Cabe recordar que na primeira metade do século XVI a cristandade européia sofreu o cisma provocado pelos movimentos de renovação espiritual que conduziram à Reforma Protestante, quando grupos de cristãos rejeitaram a hierarquia eclesiástica da Igreja Católica, seus dogmas e negaram os poderes legislativos do Papa. O compromisso dos jesuítas, contudo, era a defesa dos princípios do catolicismo e obediência ao Sumo Pontífice.

A respeito da organização da Companhia de Jesus, tinha como unidade administrativa a Província, conduzida pelo Superior ou Provincial. Cada grupo de Províncias forma uma Assistência, de modo que existiram seis: na Itália, Portugal, Espanha, Alemanha, França e Polônia. Sob a Assistência de Portugal encontrava-se a Província da Índia (que se desdobrou em Goa e Malabar), do Japão, a Vice-Província da China, a Província do Brasil e a Vice-Província do Maranhão, assim como missões (que não tinham status de Província) em Angola, Moçambique e Etiópia. O supremo poder legislativo da Companhia de Jesus encontra-se na Congregação Geral, que possui delegados de diversas Províncias.

Os textos fundadores da Companhia de Jesus, ethos da ordem religiosa, consistiam na Fórmula do Instituto, nas Constituições e nos Exercícios Espirituais. A Fórmula do Instituto significa para os jesuítas o que a Regra representa para as outras ordens religiosas; estava incluída na Bula de Aprovação e determinava que todo aquele que “quiser militar como soldado de Deus” na Companhia “que desejamos seja assinalada com o nome de Jesus” deveria servir ao único Senhor celestial e ao Papa, “Vigário seu na terra”. A Fórmula do Instituto prescrevia as obrigações dos jesuítas no que concerne à propagação da fé, através das obras de caridade, do ensino, dos exercícios espirituais, mas não obrigava a recitar ou cantar as horas litúrgicas em conjunto (desvinculando os jesuítas do interior dos monastérios), nem penitências obrigatórias ou jejuns, ao contrário das outras ordens religiosas.

As Constituições começaram a ser escritas em 1547 e não deixaram de sofrer correções até 1556, quando Inácio de Loyola faleceu. Além da importância de Loyola, destaca-se o papel do jesuíta João Alfonso Polanco na elaboração das Constituições, onde estavam os princípios gerais para que a Companhia de Jesus conquistasse suas metas.

Os Exercícios Espirituais estão associados à própria experiência mística vivida por Inácio de Loyola, que foi um cavaleiro basco, mas que após ter sido ferido na batalha de Pamplona, capital de Navarra, dedicou-se à intensa reflexão durante seu longo período de convalescença, quando leu fervorosamente obras como a Vida dos Santos e a Vida de Cristo de Ludolfo da Saxônia. Assim que pôde manter-se de pé, Loyola teria visitado ermidas dedicadas à Nossa Senhora; sua passagem pela abadia beneditina de Montserrate na Catalunha reforçaria o contato de Loyola com os ventos da reforma espiritual a partir dos princípios da Devotio Moderna, que preconizava experiências religiosas pessoais, íntimas, de enlace do divino. Diz-se que Loyola sentiu o impulso para escrever os Exercícios após seu retiro seguido de jejuns e meditações em Manresa, em torno de 1521. Quando surgiu a primeira edição dos Exercícios Espirituais em 1548, já existia um número considerável de manuscritos de outros autores cujo título sugeria a idéia de exercícios religiosos, porém a originalidade dos Exercícios de Loyola explica-se pelo gênero literário e pela estrutura pedagógica adotada a fim de conduzir através do exame da consciência, da meditação, da oração, a efetiva união do devoto com Deus.

A Companhia de Jesus destacou-se no empreendimento da Reforma Católica tanto através da ação pastoral quanto da educação, dupla prioridade honrada mediante o modelo institucional dos colégios, espaço que fornecia o ensino além de base apostólica onde residiam os padres consagrados ao ministério espiritual. Os colégios jesuíticos consistiram em organizações que reuniam religiosos com habilidades variadas (para o ensino, pesquisa, erudição ou trabalhos apostólicos), respondendo a duas necessidades da época em que surgiram: atendiam à busca por educação e cultura em uma sociedade marcada pelo humanismo, pela necessidade de formação de oficiais para o Estado moderno, além de responder à vontade de cristianizar as regiões inexploradas suficientemente, como áreas rurais ou espaços coloniais.

A Companhia de Jesus pregava a eficácia de um plano de estudos bem definido (Ratio Studiorum) e valorizava a expressão em todas as suas modalidades: o teatro, as festas, as disputas ou debates para provar a verdadeira fé. A originalidade do sistema educativo dos jesuítas explica-se, igualmente, pela associação entre finalidades religiosas e finalidades práticas, de modo que formar bons cristãos significava formar também homens úteis, sábios, de bom julgamento.

Equipados com um aparato teológico, intelectual e mesmo científico, os jesuítas elaboraram tratados, proferiram entusiásticos sermões, sensibilizaram através da pregação, do teatro e da música a fim de cumprirem o papel de apóstolos, o que fora efetuado nas mais diversas línguas, produzindo cartilhas, manuais de confissão, textos hagiográficos em dialetos variados, contemplando desde a língua de índios brasileiros e da América Espanhola, até vocabulário utilizado por habitantes do Congo africano, da Índia, da China. As missões jesuíticas espalharam-se por vastas regiões do globo: Francisco Xavier chegou à Índia em 1542 e sete anos depois se encontrava no Japão, ano em que chegava a primeira missão jesuítica ao Brasil, liderada pelo padre Manoel da Nóbrega.

A Companhia de Jesus surgiu quando o poder dos reis afirmava-se diante dos particularismos locais e de duas figuras simbólicas da antiga cristandade: o Papa e o Imperador. A autoridade dos reis reforçava-se, de modo que nos variados Estados modernos, o caráter internacional da Companhia de Jesus e sua ligação ao Papa levantavam suspeitas naqueles legisladores, parlamentares e demais defensores de uma soberania real, absoluta e indivisível. Os jesuítas suscitaram desconfianças, especialmente pela influência que passaram a exercer no âmbito político.

Diante da ascensão no século XVIII de idéias liberais, racionalistas e seculares, de cunho notadamente regalista, a Companhia de Jesus experimentou situações desfavoráveis. Os jesuítas foram expulsos de Portugal, do Brasil e demais espaços coloniais lusitanos em 1759, sob determinação de Marquês de Pombal, Primeiro Ministro do reinado D. José I. Aos jesuítas foi imputada a culpa pela tentativa de assassinato fracassado do rei da monarquia portuguesa. O Papa Clemente XIV determinou a supressão da Companhia de Jesus em todo um mundo através da Bula Dominus ac Redemptor de 1773, situação mantida por mais 41 anos quando foi restaurada mediante a Bula Solicitudo omnium ecclesiarum.

A Companhia de Jesus foi tema de profusos e eruditos estudos devido à importância de sua participação na história européia, latino-americana e mesmo afro-asiática. Contudo, os jesuítas foram, no passado, responsáveis pela produção de grande massa de informações sobre a sua atuação, isto é, a Companhia de Jesus tornou-se uma grande produtora de registros sobre a sua própria história. Deste modo, não podemos negligenciar que certos temas cristalizaram-se e foram exaltados em parte das narrativas sobre a Companhia, onde as ações de Loyola ou Francisco Xavier eram tratadas como inspiradas pelo Espírito de Deus, além de passos conscientes de um punhado de homens religiosos que conduziriam à transformação da Companhia em uma das instituições mais influentes do período moderno. O que pode conduzir a uma apreciação equivocada: imaginar que, desde os primeiros momentos de sua existência, a Companhia de Jesus já desfrutasse de aguda inserção em todas as esferas da vida social onde seus membros atuavam, ou seja, anacronicamente atribuir aos anos iniciais a influência e o aparato institucional conquistado apenas nas décadas seguintes.

A propaganda sobre a ação dos jesuítas era utilizada para corroborar a importância da Companhia de Jesus, conferindo-lhe prestígio, assim como justificava pleitear mais auxílios financeiros para manter o trabalho missionário em “vinhas” estéreis, refratárias à mensagem católica. As grandes iniciativas editoriais dos jesuítas culminaram, por exemplo, na canonização de São Francisco Xavier em 1622, evidenciando como a propaganda sobre os feitos do passado, transformados em heróicos, pode-se traduzir em glórias e conquistas no presente.

Os jesuítas recebiam como incumbência não deixar que o passado fosse tragado pelo esquecimento, pois eram exortados a relatar a seus superiores o que vivenciavam nas missões. Precoce entendimento do significado do registro dos acontecimentos do passado não apenas para o conhecimento e controle das informações, mas enquanto reconhecimento do papel da construção da memória como instrumento a favor dos propósitos da Companhia de Jesus.

*Doutoranda em História Moderna pela Universidade Federal Fluminense.

Parceiros