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Avenida Central

Avenida Central: Contrastes do Tempo

Beatriz Kushnir*
Sandra Horta*


“De uma hora para a outra, a antiga cidade
desapareceu e outra surgiu como se
fosse obtida por uma mutação de teatro.
Havia mesmo na cousa muito de cenografia.”


Este sentimento expressado pelo escritor Lima Barreto em “Os Bruzundungas” era compartilhado por muitos cariocas que, estupefatos, viam, como peças de dominó, os prédios derrubados, um a um, numa faina incessante, que suprimia rapidamente a cidade de feitio colonial e a substituía por outra, construída à imagem dos boulevards franceses.

Rasgar o traçado da cidade e desenhar a Avenida na Capital Federal acarretou profundas transformações no tecido urbano e nos hábitos e costumes da população, destronando a rua do Ouvidor que fôra, até pouco tempo atrás, o centro da moda e ponto de encontro de personalidades cariocas, habitués de seus cafés e livrarias.

A busca de soluções para a cidade febril, carente de ser saneada, arejada, ventilada, iluminada, era uma demanda ainda do Império, motivo pelo qual, em 1874, instalou-se a Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. O engenheiro Francisco Pereira Passos integrava a Comissão cujas propostas, duramente criticadas pelo engenheiro Luiz Rafael Vieira Souto, foram então engavetadas.

Na primeira década do século XX era flagrante a incompatibilidade econômica, social e, principalmente, simbólica da velha cidade com as novas aspirações que a República representava. Ao esculpir pela força da caneta e da picareta a nova face da cidade, expunha-se uma preocupação muito maior com a aparência urbana do que com a solução dos problemas de seus moradores. O Rio possuía uma população de cerca de 600 mil habitantes, cujo perfil majoritário era de ex-escravos, imigrantes nacionais e estrangeiros. Vivendo em cortiços e cabeças de porco, muitos eram desempregados ou se ocupavam de biscates, estando mais expostos às epidemias de febre amarela e de varíola que grassavam de tempos em tempos. Uma obra do porte da que foi empreendida pelos republicanos, nas condições existentes à época, trouxe inúmeros transtornos à população e, principalmente, aos moradores da área. Também os comerciantes se viram constrangidos a procurar novo endereço, como veiculava o anúncio publicado por Antonio Alves Barbosa, na revista O Malho, de 12/03/1904.

“Ladrilhos, mosaicos, azulejos, mármores.
Tendo de mudar-se devido a seu depósito estar incluído nas desapropriações para as obras
da Avenida, vende com grande redução nos preços todos os seus artigos,
sendo os seus ladrilhos os mais bem fabricados no Rio de Janeiro.
Rua da Ajuda 26 e 37 .”

A necessidade de mudança deveu-se ao fato de que a rua da Ajuda, aonde se situava este estabelecimento, e que prosseguia até ao convento de mesmo nome, situado na atual praça Floriano Peixoto, foi suprimida com a abertura da Avenida, restando hoje apenas um pequeno trecho entre a avenida Rio Branco e a rua Nilo Peçanha.

Cerca de 600 prédios foram demolidos em curto prazo, provocando o despejo de centenas de famílias. A construção de vilas operárias mostrou-se insuficiente para atender à demanda dos desabrigados. Por sua vez, as indenizações não corresponderam às expectativas dos moradores desalojados, e o Centro, então valorizado, já não podia ser o endereço da população de baixa renda. Preocupados em se manterem próximos aos seus lugares de trabalho, diminuindo as despesas com transporte, os “sem-teto” daquele tempo ergueram moradias nas encostas dos morros próximos. Porém, nem todos estavam atentos aos problemas suscitados pelas obras. Existiam aqueles que pensavam como o jornal O Commentário, que publicou, no exemplar de janeiro de 1904, o seguinte trecho:

“A cidade é torta; a cidade é feia; a cidade é velha; toda gente lastima que os nossos
antepassados nos tenham legado um monstrengo assim, toda a gente maldisse
dos administradores contemporâneos que nada endireitaram, antes continuaram as obras
de entortamento; pois agora não seria justo reconhecer unanimemente o extraordinário
benefício das demolições com que tiramos à geração por vir o direito de se queixar de nós,
como nós nos queixamos do passado? “

Financiadas por empréstimos tomados a banqueiros internacionais, as reformas foram conduzidas pelo Ministro da Viação, Indústria e Obras Públicas, Lauro Severiano Muller, e pelo prefeito Pereira Passos, nomeado pelo presidente Rodrigues Alves com amplos poderes. Juntaram-se a eles técnicos de reconhecida capacidade como Paulo de Frontin, chefe da Comissão Construtora da Avenida Central, e Oswaldo Cruz, incumbido das questões de saúde pública.

Completando duas obras importantes realizadas pelo governo federal – o novo cais do Porto e a Avenida Beira Mar -, a Avenida Central estendeu-se de mar-a-mar – da Prainha atual Praça Mauá – até a Praia de Santa Luzia, no local em que está atualmente o Obelisco, de forma a facilitar o acesso e o trânsito de mercadorias e viajantes.

A nova via foi solenemente inaugurada em 15 de novembro de 1905, apesar da chuva inclemente que desabou sobre a cidade desde a véspera e das duras críticas que parte da imprensa fazia ao tratamento conferido às questões sociais. Porém, nem toda a imprensa se posicionou de forma questionadora. A abertura da Avenida Central foi saudada pelo jornal Gazeta de Notícias que, naquele mesmo dia, publicou a seguinte manchete “Hoje deve ser entregue ao trânsito público a primeira avenida construída no Rio de Janeiro, que recebeu o nome de Central.”

Concluída em apenas 20 meses e 7 dias, ao ser inaugurada, tinha 30 prédios prontos, 85 em andamento e somente 4 terrenos a venda. Toda pavimentada, arborizada, iluminada e com calçadas em pedra portuguesa formando artísticos desenhos, obra de 32 mestres calceteiros cedidos pela Câmara de Lisboa, a Avenida recebeu 53 paus-brasil e 358 jambeiros, com o propósito de torná-la mais bela e fresca. Planejada para ter 1.800 metros de extensão e 33 metros de largura, com calçadas de sete metros e um refúgio para pedestres entre as duas pistas, encontrou obstáculos nas condições topográficas, exigindo um corte nos morros do Castelo e de São Bento. Para orgulho de seus idealizadores e construtores pôde, assim, superar a largura da Avenida de Mayo, em Buenos Aires.

Envoltas pelo discurso saneador, essas amplas intervenções contribuíram, contudo para propagar doenças. As constantes demolições favoreciam o surgimento de inúmeras poças de água, agravando as condições de insalubridade que há séculos atormentavam os cariocas. Ao que parece, o mais importante era transformar a face da cidade seguindo o padrão estético europeu em detrimento das questões estruturais. Tal intenção se expressou, visivelmente, no Concurso de Fachadas promovido pela Comissão Construtora da Avenida Central. Seu regulamento estipulava fachadas de 10 a 35 metros de largura além de, no mínimo, três pavimentos. O júri foi composto pelo prefeito Pereira Passos; pelo diretor da Escola Politécnica, o engenheiro Aarão Reis; pelo diretor da Faculdade de Medicina, o médico Feijó Junior; pelo presidente da Academia de Medicina, o médico sanitarista Oswaldo Cruz e pelo diretor da Escola Nacional de Belas Artes, escultor Rodolfo Bernardelli. Venceu o arquiteto Raphael Rebecchi e o segundo lugar coube ao arquiteto Adolpho Morales de los Rios.

Porém, o resultado do concurso não foi unânime, como bem o demonstram as opiniões sobre o assunto expressas por Olavo Bilac, em 1904, e por Lima Barreto, em 15/11/1905. O primeiro elogiou a iniciativa dizendo:

“ O meu medo, o meu grande medo, quando vi que se ia rasgar a Avenida, foi que a nova e imensa área desapropriada fosse entregue ao mau gosto e à incompetência dos mestre-de-obras. (…) Graças sejam dadas a todos os deuses! O governo interveio nesse descalabro – e os chalés, as platibandas com compoteiras, as casas com alcovas, os sotãozinhos de cocoruto, os telhados em bico, as vidraças de guilhotina, as escadinhas empinadas, os beliquetes escuros, os quintais imundos, os porões baixos – tudo isso recebeu um golpe de morte.”

Já Lima Barreto dizia dos prédios da Avenida:

“Ontem se inaugurou a Avenida. Está bonita, cheia de canteirinhos, candelabros, etc. Mas os edifícios são hediondos, não que sejam feios. Ao contrário, são garridos, pintadinhos, catitas, mas lhes falta, para uma rua característica da nossa pátria, a majestade, a grandeza, o acordo com o local. Com a nossa paisagem solene e mística. Calculas tu que na cidade do granito, na cidade dos imensos monólitos do Corcovado, Pão-de-Açúcar, Pico do Andaraí, não há na tal Avenida-montra, um edifício construído com esse material!”

Imaginando “acertar os ponteiros com o progresso”, o governo iniciou as demolições, em fevereiro de 1904, em três frentes simultâneas de trabalho, tornando o processo irreversível, em uma clara estratégia política de neutralizar quaisquer manifestações contrárias.

O primeiro trecho ia do largo da Prainha (atual Praça Mauá) até a rua General Câmara (destruída com a abertura da Av. Presidente Vargas). Por sua proximidade com o porto, foi ocupado principalmente pelo empresariado ligado ao comércio de importação e exportação e pelos bancos atrelados a estas atividades. O segundo, que se estendia até a rua São José, tornou-se o espaço do footing, já que concentrava as atividades comerciais: as grandes confeitarias, lojas de vestuários, magazines, estabelecimentos bancários e os jornais, como o do Brasil, do Commercio e o Paiz. O trecho final, composto por grandes lotes oriundos do desmonte de parte do Morro do Castelo e de áreas remanescentes junto a praça Ferreira Viana, se estendia até a Av. Beira Mar. Adquirindo um caráter institucional, era composto por edifícios públicos – o Teatro Municipal, a Escola Nacional de Belas Artes e o Palácio Monroe.

Inaugurada a Avenida, as contradições sociais estavam igualmente expostas. De um lado, a modernidade que nela transitava e se erguia, com seus automóveis e lojas chiques. De outro, os resquícios da cidade colonial no seu entorno, a permanência do velho casario e das ruas estreitas. Baniu-se do centro da cidade a presença dos populares, permitiu-se que a emergente burguesia caminhasse, sem constrangimentos, por um Rio de Janeiro que queria ser Paris. Para muitos, a Avenida era uma “mulata apertada em um vestido francês”, com prédios de belas fachadas e o interior simples e funcional.

Aos olhos das autoridades e do saber médico havia um grande descompasso entre a cidade real e a cidade ideal. A urbe problemática e enferma, seja pela instabilidade social alimentada por conflitos de toda ordem e origem, seja pela continuidade das epidemias que horrorizavam os estrangeiros e traziam em alvoroço a população, deveria ser substituída por outra moderna e salubre, capaz de atrair capitais, técnicas e braços que a inserção no sistema capitalista exigia. Por outro lado, não bastava alterar a paisagem, abrir amplas avenidas, demolir cortiços, era preciso forjar um novo povo para habitar a cidade “renascida”. Inúmeras medidas foram tomadas para coibir algumas atitudes e regular outras. Práticas antigas foram banidas, tais como vender miúdos de animais em tabuleiros, ordenhar vacas em vias públicas, reunir-se em torno dos quiosques. Mercados foram erguidos para substituir o comércio ambulante, assim como foram construídos inúmeros mictórios públicos para evitar que as ruas fossem usadas para fins a que não se destinavam.

Segundo conceito emitido à época, a “cidade chiqueiro” fora transformada em “cidade maravilhosa”, “numa apoteose de jardins floridos, de grandes monumentos, com avenidas de esplêndida largura e a massa altiva e monumental dos arranha-céus.” Quadro contraditório! De uma lado a cidade “limpa”, as epidemias controladas, os boulevards à moda parisiense; de outro, a massa indesejada de “pés-descalços”, o lado cruel dessa moeda cunhada pelos “homens de visão” . Expulsa repentinamente de seus lares, impedida de manter hábitos e tradições, foi excluída da faceta melhor dessas transformações: o viver e transitar pela cidade saneada e remodelada.

Após a morte do Barão de Rio Branco, em 10 de fevereiro de 1912, a Avenida Central foi renomeada, homenageando o Barão da República, tornando-se Avenida Rio Branco. Assim como seu nome original durou pouco, ela sofreu igualmente alterações profundas na sua fisionomia, acompanhando o acelerar dos tempos.

Em 1954, Brasil Gerson afirmava:

“ Se Rodrigues Alves, Lauro Muller, Passos e Frontin voltassem à vida e a vissem hoje, por certo que não a reconheceriam mais, tão inumana que ela haveria de se tornar por obra do que se chama progresso. Pois de tudo que nela convidava o pedestre a percorrê-la, com a sombra de suas árvores no meio do seu asfalto, nada mais encontrariam senão uma desordenada via de escoamento de um tráfego alucinado, poluída pelos gases, por altíssimos e monstruosos espigões”, concluía Brasil Gerson, em 1954.“

Cem anos depois da inauguração, imperam os pós-modernos arranha-céus de vidro, na quinta geração de prédios. Dos originais, escaparam da especulação imobiliária a Biblioteca Nacional, o Teatro Municipal e o Clube Naval. Outras edificações permaneceram, mantendo o aspecto arquitetônico antigo. Seus usos, contudo, são distintos do original, como a Escola Nacional de Belas-Artes, atual Museu de Belas-Artes, a Mitra Episcopal, recentemente Centro Cultural da Justiça Federal, a Companhia Docas de Santos, sede do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a Caixa de Amortização, ocupada pelo Banco Central.

Devido ao fluxo contínuo e intenso de pedestres, ao trânsito caótico e à publicidade indiscriminada, os detalhes primorosos e as linhas caprichosas das fachadas com figuras alegóricas, colunas, frisos, florões, guirlandas, torreões e cúpulas das edificações que sobreviveram só são perceptíveis ao observador atento e minucioso. A cidade colonial foi destruída para que prédios de arquitetura eclética ocupassem seu espaço. Aqueles, por sua vez, foram, em diferentes momentos, também demolidos, para que a arquitetura moderna tomasse o seu lugar. Um constante construir, desconstruir, de acordo com a veleidade dos administradores da cidade, da ânsia de lucro de uns e do descaso de outros. Esqueceram-se de que “a rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento”, como nos advertira João do Rio. A rua é mais do que uma via destinada a escoar o trânsito, a ligar lugares. É ponto de encontro, sítio de vivências, de práticas ancestrais. É a testemunha do passar do tempo, das tradições, das festas, é referência na complexa e caótica vida urbana.

*Beatriz Kushnir – Diretora do Arquivo Geral da Cidade do RJ. Doutora em História/Unicamp.

*Sandra Horta – Gerente de Pesquisa do Arquivo Geral da Cidade do RJ. Mestre em História/UFF.

Veja aqui fotos da Avenida Central de autoria de Augusto Malta, pertencentes ao Arquivo Geral da Cidade.

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