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A Poesia Romântica

De 1836, ano da publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, de Domingos Gonçalves de Magalhães, a 1870, quando se editaram as Espumas Flutuantes de Castro Alves, pode-se dizer que evoluiu em suas linhas principais a poesia romântica brasileira e que três gerações de poetas se sucederam.

Uma primeira geração, a de Gonçalves de Magalhães e de Araújo Porto Alegre, é a geração da transição do neo-classicismo pré-romântico ao romantismo. Essa geração é marcada pelo propósito de iniciar, no Brasil, a modernização romântica e nacionalista.

A segunda geração, a de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, atuantes nos anos 40 e 50 do século XIX, foi, na realidade a primeira geração dos grandes poetas românticos.
Na década de 60, quando o romantismo começava a esgotar-se, tem-se a geração de Fagundes Varela e Castro Alves, que é a terceira geração romântica.

A 10 de agosto de 1823 nascia no Sítio Boa Vista, a 14 léguas da Vila de Caxias, no Maranhão, Antonio Gonçalves Dias , filho do negociante português João Manuel Gonçalves Dias e de uma cafuza maranhense, Vicência Ferreira. Aos 10 anos começa a trabalhar na casa comercial do pai como caixeiro e encarregado da escrituração. De São Luiz segue para Portugal a fim de estudar em Coimbra. Forma-se em Direito em 1844 e no ano seguinte volta para o Brasil, inicialmente para o Maranhão e, em 1846, vem para o Rio de Janeiro. É nomeado professor de Latim e História do Brasil do Colégio Pedro II. Em 1854 parte para a Europa em missão oficial de estudos. De 1859 a 1861 trabalha para a Comissão Científica de Exploração no interior das províncias do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pará e Amazonas. Em 1862 parte para o Maranhão. Em Recife depois de consultar um médico resolve embarcar para a Europa, onde freqüenta várias estações de cura. Em Bruxelas é operado, sendo-lhe amputada a úvula. No dia 10 de setembro de 1864 embarca no Havre no navio Ville de Boulogne. Sua saúde é precária, e piora durante a viagem. No dia 3 de novembro, nas costas do Maranhão, naufraga o “Ville de Boulogne” e com ele desaparece o poeta.

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

No céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossas flores têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar –sozinho- à noite –
Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.
Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores
que não encontro por cá;
em qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o sabiá.


Este poema, de 1843, quando o poeta estudava em Coimbra, é, sem dúvida, uma das páginas mais conhecidas da Literatura Brasileira. A ausência de adjetivos reforça a carga significativa dos substantivos de grande conteúdo sugestivo: terra, palmeiras, sabiá, céu, estrelas, várzea, flores, vida, amores. Uma admirável técnica de repetição paralelística cria um clima de tranqüila e quase religiosa nostalgia. As rimas tônicas em A, de, lá e sabiá reforçam a musicalidade da composição.

Os três gêneros – lírico, épico e dramático – integram a poesia de Gonçalves Dias. Nos Primeiros Cantos, de 1846, o poeta revela, através das palavras do Prólogo, o seu conceito de poesia:

“Gosto de afastar os olhos de sobre nossa arena política para ler em minha alma, reduzindo à linguagem harmoniosa e cadente o pensamento que me vem de improviso, e as idéias que em mim desperta a vista de uma paisagem ou do oceano – o aspecto enfim da natureza. Casar assim o pensamento com o sentimento, a idéia com a paixão, colorir tudo isto com a imaginação, fundir tudo isto com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia – a Poesia grande e santa – a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto, sem a poder traduzir.”

É isso que se encontra efetivamente na poesia gonçalvina: a nostalgia profunda, a dor dos amores contrariados, a consolação que oferece a natureza, a força que se encontra na crença religiosa; nos Primeiros Cantos já surge o primeiro poema indianista de Gonçalves Dias, O Canto do Piaga. Eram os piagas homens de vida austera que exerciam as funções de sacerdote, médico e profeta. Constituíam eles uma espécie de ponte entre a ciência exígua dos índios e dos domínios do sobrenatural. Eram os deuses que falavam pela boca dos piagas. No poema se transmite a visão de um deles: a chegada das naus dos brancos, trazendo a morte e a escravidão. Vejamos a 3a parte do Canto do Piaga.

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
-Brenha espessa de vário cipó.
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; e só.

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando – lá vão.

Oh! Quem foi das entranhas das águas.
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja…
Esse monstro …- o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade –
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar manitôs, maracás.


Observe-se uma mostra do gosto arcaizante de Gonçalves Dias no emprego da forma i por aí no verso “Basta selva, se folha, i vem”. No plano da criação, é de se notar a transmutação da esquadra lusitana em termos do mundo conhecido do índio. Os monstros formam na visão do Piaga uma: “basta selva sem folhas”, o cordame da embarcação é “brenha espessa de vário cipó”; o casco das naus é “negro monstro”; as velas são “bando de cândidas garças”.

Em 1848 aparecem os Segundos Cantos e as Sextilhas de Frei Antão. Os poemas narrativos das Sextilhas de Frei Antão foram escritos num português arcaico que a rigor não se enquadra em nenhuma fase determinada da história da língua. O autor classifica as sextilhas como um “ensaio filosófico”. Quis o autor mostrar que a língua arcaica era perfeitamente dúctil à poesia e que nela havia grande robustez e concisão. Nas sextilhas pode o poeta exercitar seu gosto pelos arcaísmos da língua, criando uma obra que unisse ainda mais as duas literaturas de língua portuguesa.

Nos Últimos Cantos , editados em 1851, saiu o mais importante dos poemas indianistas de Gonçalves Dias, o I Juca Pirama. A obra se distingue pelo conteúdo épico–dramático sustentado pelo vigor da linguagem e do ritmo. Um índio tupi é preso pelos timbiras e deverá ser morto numa cerimônia festiva.

No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos – cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d´altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!


O guerreiro tupi apresenta-se e conta a história, em estrofes rápidas de redondilha menor. Fala de seu pai, velho e cego, de quem ele é arrimo. Embora não tenha medo da morte, o guerreiro pede, em lágrimas, que poupem-lhe a vida por causa de seu pai.

Meu canto de morte, Guerreiros ouvi Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi.
Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi.

Le Signal du combat, (Coroados).
J. B. Debret del. Lit. de Ch. Motte
Planche 11 – T. I


Os biógrafos de Gonçalves Dias falam de seus numerosos amores. É grande a galeria das amadas do poeta: Engrácia, filha da dona da pensão em que viveu em Portugal, Leontina, uma alemã, a francesa Eugénie, a belga Céline e, acima de todas,a brasileira Ana Amélia. Este foi o amor de juventude. Ana Amélia era de família rica e aristocrática, e o poeta não tinha fortuna, não era nobre e, nem ao menos era filho legítimo. Repelido pela família da moça, ele chora, em silêncio, sua dor. É acusado de não a ter raptado como era de se esperar de um grande amor contrariado, que teria de ser cego a todas as exigências. Não houve rapto nem casamento. Cada qual seguiu sua vida, até que um dia dá-se o reencontro dos dois em Lisboa. Ana Amélia está casada com outro. O mesmo aconteceu com o poeta que já se tinha casado com Olímpia, matrimônio, aliás, muito pouco feliz. Do impacto do reencontro surgiram os versos “Ainda uma vez – adeus !”

Conheces ?
De mim afastas o teu rosto ?
Pois tanto pode o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura…
Olha-me bem, que sou eu


Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar !


Adeus, qu´eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus !


Lerás porém algum dia
Meus versos, d´alma arrancados,
D´amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; – e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiede,
Que choras, não de saudades,
Nem de dor, – de compaixão

Enfim te vejo: – enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei. Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado,
A não lembrar-me de ti !


Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz !
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz !


Louco, aflito, a saciar-me
D`agravar minha ferida,
Tomou-me tédio de vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esp`rança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi !


Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora !
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido
E este pranto dolorido
Deixar correr a te


Os Timbiras seriam uma espécie de Ilíada americana. Os 4 primeiros cantos foram publicados em 1857. Sabe-se que o autor prosseguiu na composição do poema e o tinha acabado quando voltava da Europa em 1864. Os manuscritos se perderam no naufrágio em que morreu o poeta. Em 5 de julho de 1847, escrevia a Antonio Henrique Leal sobre a idéia do poema: “Imaginei um poema como nunca ouviste falar de outro. Passa-se a ação no Maranhão e vai terminar no Amazonas com a dispersão dos Timbiras, guerra entre eles e depois com os portugueses. O primeiro canto já pronto e o segundo começado.” Em outubro do mesmo ano já tem os 6 primeiros cantos. Em 1853 já havia passado a limpo 12 dos 16 cantos de que se comporia o poema. Todavia, como vimos, somente os 4 primeiros foram publicados, perdendo-se o restante no naufrágio. A posição de Gonçalves Dias na História das Letras Brasileirasé ímpar. O grande mestre Alceu Amoroso Lima assim o situa:


“Houve poetas no Brasil, sem dúvida,antes de Gonçalves Dias. Mas não houve poesia autenticamente brasileira. Gregório de Matos ou Caldas Barbosa foram, possivelmente, o precursores desse quid novo, que só o grande maranhense, entretanto, iria trazer tanto à nossa lírica como à nossa épica. Foi, assim Gonçalves Dias o verdadeiro iniciador da poesia brasileira. O nosso Homero”.


Entre os poetas românticos da Segunda geração, aqueles cuja poesia reflete um universo de incertezas e testemunham uma influência facilmente captável de Lord Byron, avulta a figura de um jovem paulistano que morreu com menos de 21 anos: Manuel Antonio Álvares de Azevedo. Levando-se em conta sua pouca idade, pode-se dizer que em algumas de suas páginas deu provas de superior e incontestável talento.

Nasceu Álvares de Azevedo na cidade de São Paulo em 1831. Dois anos depois a família se transfere para o Rio de Janeiro. A morte de seu irmão mais novo, em 1836, deixa-o tão abalado que adoece gravemente. Com seis anos é matriculado num colégio de Niterói, onde o declaram incapaz de aprendizagem. No colégio do Prof. Stoll, também em Niterói, que cursa de 1840 a 1844, é o primeiro aluno da classe, exceto em ginástica. Em carta a seus pais, o Prof. Stoll afirma que o aluno é a mais ampla capacidade intelectual que encontrou na América em um menino de sua idade. De 1845 a 1847 cursa o Imperial Colégio de D.Pedro II, onde teve por professores figuras influentes como Domingos José Gonçalves de Magalhães e Santiago Nunes Ribeiro. Terminados os estudos secundários, volta para São Paulo a fim de cursar Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, foco de efervescência e cultural, com associações e publicações estudantis, das quais participa ativamente. Entre seus amigos contam-se Bernardo Guimarães, o romancista da Escrava Isaura e Aureliano Lessa, também poeta da segunda geração romântica. É como estudante que Álvares de Azevedo escreve toda a sua obra. Ao passar para o 5o ano na Faculdade vai para Itaboraí em companhia de seu primo Domingos Jaci Monteiro para descansar e ver se melhora de saúde na casa do Barão de Itapacará. Dessas férias não voltará mais para São Paulo. Em março de 1852 depois de voltar de Itaboraí queixa-se de dor e tem febre. Agravam-se os sintomas de tuberculose. Uma queda de cavalo causa ou revela um tumor na fossa ilíaca. É operado mas vem a morrer no dia 25 de abril de 1852, num domingo de Páscoa. Contava com a idade de 20 anos, 7 meses e 13 dias. Há dois aspectos predominantes na poesia de Álvares de Azevedo. Como duas faces que se voltam para lados diferentes. De um lado a fantasia e a imaginação idealista.

É a cabeça do poeta mergulhada nas nuvens, sonhando com virgens angelicais, com magníficos crepúsculos, com as cores da Itália e com os temas ideais. A outra face contempla a realidade. São as penas cortadas de suas asas de fantasia. As grandes tensões do idealismo resolve o poeta com um senso finíssimo de humor. Ao colocar os pés no chão, o poeta não os fere, defende-os apelando para o realismo humorístico.
No prefácio da Lira dos Vinte Anos diz o poeta:

“A unidade deste livro funda-se numa binômia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces… O poema não começa pelos últimos crepúsculos do misticismo brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia puríssima banha com seu reflexo ideal a beleza sensível e nua. Depois a doença da vida que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.”

O sonho da Itália que se tornou um modismo entre os poetas românticos passou de Álvares de Azevedo para Fagundes Varela e Castro Alves e deve ter origem em Byron e suas aventuras, através do Child Harold e dos poemas dramáticos do vate britânico.

Lá na terra da vida e dos amores
Eu podia viver inda um momento;
Adormecer ao sol da primavera
Sobre o colo das virgens de Sorrento !

Eu podia viver – e porventura
Nos luares do amor amar a vida;
Dilatar-se minh´alma como o seio
Do pálido Romeu na despedida !

Eu podia na sombra dos amores
Tremer num beijo o coração sedento:
Nos seios da donzela delirante
Eu podia viver inda um momento !


Ou a viagem dos sonhos ou os caminhos que enveredam por si adentro. Álvares de Azevedo é um poeta interior. Quando se volta para fora, é para falar das coisas que o cercam, as suas coisas: o quarto, os livros, o cachimbo, o candeeiro, seus quadros. É o mais individualista dos nossos românticos.


Era ali que eu podia no silêncio
Junto de um anjo…Além o romantismo !
Borra adiante folgaz caricatura
Com tintas de escrever e pó vermelho
A gorda face, o volumoso abdômen,
E a grossa penca do nariz purpúreo
Do alegre vendilhão entre botelhas
Metido num tonel …Na minha cômoda
Meio encetado o copo inda verbera
As águas d´oiro do “ Cognac “ fogoso.
Negreja ao pé narcótico botelha
Que da essência de flores de laranja
Guarda o licor que nectariza os nervos.
Ali mistura-se o charuto havano
Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo.
A mesa escura cambaleia ao peso
Do titâneo “Digesto”, e ao lado dele
“Childe Harold” entreaberto ou Lamartine
Mostra que o romantismo se descuida
E que a poesia sobrenada sempre
Ao pesadelo clássico de estudo.


Reina a desordem pela sala antiga,
Desce a teia de aranha as bambinelas
À estante pulverulenta. A roupa, os livros
Sobre as cadeiras poucas se confundem.
Marca a folha do Faust um colarinho
E Alfredo de Musset encobre às vezes
De Guerreiro ou Velasco um texto obscuro.
Como outrora do mundo os elementos
Pela treva jogando cambalhotas,
Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat



Amor e morte são temas de todos os tempos mas são os essencialmente caros aos românticos. Em Álvares de Azevedo, a morte é uma presença constante. Ele a conheceu muito cedo. A perda de seu irmão marcou-o de maneira indelével e o prostrou gravemente enfermo.

Recuperou-se e pode ser ainda uma criança viva e inteligente, capaz nos estudos, exceto na ginástica. Simbolicamente essa relação permanece durante toda sua vida. À presença da morte se une a do mundo–ginástica.

Não chorem ! que não morreu !
Era um anjinho do céu !
Que outro anjinho chamou !
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou !


Pobre criança ! dormia:
A beleza reluzia
No carmim da face dela !
Tinha uns olhos que choravam,
Tinha uns risos que encantavam !
Ai, meu Deus ! era tão bela !



O pressentimento da morte, de que ela poderia vir a qualquer hora e levá-lo como fez a seu irmão faz crescer nele o apego à existência, a ânsia de viver e a pressa em realizar-se. O temor do fim próximo e das contradições e dores do mundo-ginástica levam-no ao apego à mãe, ao desejo de proteção no seio da mãe, como mulher, símbolo de vida, de fecundidade, de força criadora. Daí a freqüência com que o poeta sonha ou deseja ser acalentado ao seio da amada.


Meu podre coração que estremecias,
Suspira a desmaiar no peito meu:
Para enchê-lo de amor, tu bem sabias
Bastava um beijo teu !


Se abriu tremendo os íntimos refolhos,
Se junto de teu seio ele tremia,
É que lia a ventura nos teus olhos,
E que deles vivia !


Como o vale nas brisas se acalenta,
O triste coração no amor dormia;
Na saudade, na lua macilenta
Sequioso ar bebia !


Via o futuro em mágicos espelhos,
Tua bela visão o enfeitiçava,
Sonhava adormecer nos teus joelhos …
Tanto enlevo sonhava !


Se nos sonhos da noite se embalava
Sem um gemido, sem um ai sequer,
É que o leite da vida ele sonhava
Num seio de mulher !



Na refrega entre as tensões dos apelos da vida e da morte, há também o desejo de se refugiar no sono e no sonho que liberta do mundo exterior e nos restitui a nós mesmos. Daí a insistência no emprego de verbos como dormir, sonhar, adormecer, desmaiar e o que resume todos esses – morrer. É com freqüência que a amada está dormindo também. O tema da “bela adormecida” é constante. Ela não é só uma gravura na parede de seu quarto de estudante. Enquanto adormecida ela não ouvirá seus apelos e não corresponderá as suas ânsias. A amada é colocada também como elemento do mundo exterior, do mundo-ginástica que o menino-poeta não ousa enfrentar. Vejamos uma estrofe do poema Idéias Íntimas


Em frente do meu leito, em negro quadro,
A minha amante dorme. É uma estampa
De bela adormecida. A rósea face
Parece em visos de um amor lascivo
De fogos vagabundos acender-se …
E com a nívea mão recata o seio …
Oh ! quantas vezes, ideal mimoso,
Não encheste minh’alma de ventura,
Quando louco, sedento e arquejante,
Meus tristes lábios imprimi ardentes
No poente vidro que te guarda o sono



Álvares de Azevedo, talvez o mais romântico de nossos poetas, traz em si também, em seus poemas de humorismo realista os germens do anti-romantismo. No poema “Namoro a Cavalo”, como em outros, em lugar da atmosfera tensa do conflito amor e morte, da ânsia de viver ou do desejo de dormir e morrer, o poeta mostra sua outra face, em versos prosaicos e divertidos que mostram o ridículo de certas posturas românticas.

Observem-se também em “Namoro a Cavalo” as referências a D. Quixote, que salientam a intenção de ridicularizar a cena descrita.


Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo trote (que esparrela !)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela …

Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito … mas furtado.

Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento …
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia–em casamento …

Ontem tinha chovido…Que desgraça !
Eu ia a trote inglês ardendo em chamas
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama …

Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada …

Mais eis que no passar pelo sobrado,
Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela …

O cavalo ignorante de namoros
Entre os dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada …

Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode,
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio ! …



A obra de Álvares de Azevedo é constituída das seguintes unidades: Lira dos Vinte Anos, Poesias Diversas, Poemas irônicos, venenosos e sarcásticos, Poema do Frade, Conde Lopo, Noite na Taverna (Contos Fantásticos) e Macário. O primeiro volume foi publicado em 1853, no Rio de Janeiro pela Tipografia Americana. O segundo é de 1855, e saiu pela Tipografia Universal Laemmert. Sobre o poeta escreveu Machado de Assis.

“Em tão curta idade, o poeta da
Lira dos Vinte Anos deixou documentos
valiosíssimos de um talento robusto e
de uma imaginação vigorosa.
Avalie-se por aí o que viria a ser
quando tivesse desenvolvido
todos os seus recursos."



A campanha pela maioridade de D. Pedro II, vitoriosa em 1840, quando o imperador contava apenas 15 anos de idade, foi motivada pelo anseio de paz e de estabilidade política dos setores participantes da vida pública brasileira.

De fato, a obra política do jovem imperador representa a consolidação do Império, a vitória do Parlamentarismo, a ordem interna e o progresso em vários setores da vida nacional. Se a época da Regência e os primeiros anos do II Império foram perturbados por lutas e rebeliões em várias províncias, cessadas essas dificuldades, criou-se no Brasil um clima favorável a toda espécie de desenvolvimento. O imperador, magnânimo, filosófico e amante dos estudos, era ele próprio, um incentivo ao progresso das artes, das ciências e das letras. Um ano antes da proclamação da maioridade de D. Pedro II, nasceu em Barra de São João, na Província do Rio de Janeiro, Casimiro José Marques de Abreu, filho de um comerciante português e de uma fazendeira viúva. Seu pai, que nunca se casou, perfilhou o menino e suas irmãs, Maria e Sabina, somente em 1850. Em 1852 vem para o Rio de Janeiro e no ano seguinte embarca para Portugal. Em Lisboa, no ano de 1856, vê montar-se seu ato dramático Camões e o Jau. Retorna ao Brasil em 1857 e, em obediência às imposições do pai, começa a praticar no comércio. O jovem fluminense, porém, sente mais atração pela vida literária e boêmia. Em carta ao pai, ele confessa: “Espero poder vencer a espécie de repugnância instintiva que até hoje tenho tido ao comércio.” Seu livro de poesia, As Primaveras, é publicado em 1859. Vítima de tuberculose pulmonar, falece o jovem poeta a 18 de outubro de 1860, com apenas 21 anos de idade. Um dos interesses principais para o estudo da obra poética de Casimiro de Abreu reside na ressonância que ela obteve na alma popular. A linguagem simples e direta, de tom coloquial, a expressão do sentimento do homem comum e do adolescente são elementos da poética de Casimiro que atingem amplamente o gosto popular. Ele é o poeta que existe em todo adolescente que faz versos; ele realizou a tentativa frustrada de tantos jovens em todas as épocas, a busca de uma expressão poética para o sentimentalismo dessa fase da vida. Muitas de suas composições, de tanto correrem de boca em boca, tornaram-se anônimas ou quase anônimas, recitadas ou cantadas, aqui e além-mar.


Oh ! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !

Como são belos os dias
Do despontar da existência !
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d´amor !

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar !
O céu bordado d´estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar !

Oh ! dias da minha infância !
Oh! Meu céu de primavera !
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã !
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijo de minha irmã !

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberto o peito,
- Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis !

Naquelas tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecida sorrindo
e despertava a cantar !

Oh ! que saudades que tenho
da Aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !



A partir de palavras-chaves como primavera, amor, saudade, podem-se destacar os temas da poética de Casimiro de Abreu.
Percebe-se no poeta ânsia constante de viver na primavera; a primavera é a mocidade e, para a quase criança exilada, é a pátria, e natureza tropical. O que é bom é belo é sempre associado à idéia de primavera.

E é nessa quadra do ano que ele, adolescente, coloca todos os momentos felizes que já se tinham passado.


Não era belo, Maria,
Aquele tempo de amores,
Quando o mundo nos sorria,
Quando a terra era só flores
Da vida na primavera ?
- Era !

Não tinha o prado mais rosas,
O sabiá mais gorjeios,
O céu mais nuvens formosas,
E mais puros devaneios
A tua alma inocentinha ?
Tinha !

E como achavas, Maria,
Aqueles doces instantes
De poética harmonia
Em que as brisas doudejantes
Folgavam nos teus cabelos ?
- Belos !

Como tremias oh ! vida,
Se em mim os olhos fitavas !
Como eras linda, querida,
Quando d´amor suspiravas
Naquela encantada aurora !
- Ora ! >

E diz me: não te recordas
- Debaixo do cajueiro –
Lá da lagoa nas bordas
Aquele beijo primeiro ?
Ia o dia já findando …
- Quando !



A carência de dados biográficos deixam-nos em dúvida sobre a realidade concreta dos amores de Casimiro de Abreu. José Veríssimo levanta a possibilidade de “um amor infeliz que lhe deixou a alma ferida e para sempre dolorosa.” Há em cartas suas, confissões como esta: “Vivo como um monge, e com meu gênio esquisito não acho pequena que goste de mim.” O que importa porém é que, ao criar a sua imagem do amor, ele é um poeta verdadeiro. Vividos ou imaginados, os amores motivaram poemas de fundas ressonâncias em seus leitores. Além disso a autenticidade de seus sentimentos é a de todos os adolescentes que sonham com um ideal de amor, tenha eu não a correspondência física de um amor real. No poema “Amor e Medo”, o poeta confessa sua timidez e seus desejos de adolescente romântico. O grande conflito é o medo de transformar o sonho de amor à virgem idealizada em prazer sensual. É essa situação que Mário de Andrade chamou de “complexo do amor e do medo”.


Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh ! bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
“ – Meus Deus ! que gelo, que frieza aquela ! “

Como te enganas ! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco …
És bela – eu moço; tens amor – eu medo ! …

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.



As manifestações da temática do amor estão ligadas freqüentemente à necessidade de amparo e proteção que o poeta sentia. Essa necessidade faz com que ele se volte para a imagem da mãe. O desejo de voltar ao berço-útero e gozar de todo o conforto que lhe assegure o amor materno é que se revela no poema “Minha Mãe”, escrito em Lisboa, em 1855, quando o poeta contava 16 anos de idade.


Da pátria formosa distante e saudoso,
Chorando e gemendo meus cantos de dor,
Eu guardo no peito a imagem querida
Do mais verdadeiro, do mais santo amor:
- Minha Mãe! -

Nas horas caladas das noites d´estio
Sentado sozinho co´a face na mão,
Eu choro e soluço por quem me chamava
- “ Oh filho querido do meu coração ! “ -
- Minha Mãe! -

No berço, pendente dos ramos floridos,
Em que eu pequenino feliz dormitava:
Quem é que esse berço com todo o cuidado
Cantando cantigas alegre embalava -Minha Mãe-


De noite, alta noite, quando eu já dormia
Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,
Quem é que meus lábios dormentes roçava,
Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus ?
- Minha Mãe! –

Feliz o bom filho que pode contente
Na casa paterna de noite e de dia
Sentir as carícias do anjo de amores,
Da estrela brilhante que a vida nos guia !
- Uma Mãe !

Por isso eu agora na terra do exílio,
Sentado sozinho co´a face na mão,
Suspiro e soluço por quem me chamava:
- “ Oh filho querido do meu coração ! “ -
- Minha Mãe! –


Casimiro de Abreu se refere sempre ao período que passou em Lisboa como um exílio. Em Portugal, para onde fora mandado por seu pai, na esperança de que o filho abandonasse a disparatada idéia de se dedicar às letras, ele chora suas saudades e canta sua terra . Nas “Canções do Exílio“ é a ânsia pela volta à pátria, à terra das mangueiras e das palmeiras, com todo o seu viço tropical de belas cores. Cruzam-se aqui os temas da primavera e da saudade. De longe, a terra natal afigura-se uma eterna primavera.


Eu nasci além dos mares:
Os meus lares
Meus amores ficam lá !
- Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá !

Oh ! que céu, que terra aquela,
Rica e bela
Como o céu de claro anil !
Que seiva, que luz, que galas,
Não exalas,
Não exalas, meu Brasil !

Oh ! que saudades tamanhas
Das montanhas,
Daqueles campos natais !
Daquele céu de safira
Que se mira,
Que se mira nos cristais !

Não amo a terra do exílio,
Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país,
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras,
E as palmeiras tão gentis !

Como a ave dos palmares
Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho,
Sem carinho,
Sem carinho e sem amor !

Debalde eu olho e procuro …
Tudo escuro
Só vejo em roda de mim !
Falta a luz do lar paterno
Doce e terno,
Doce e terno para mim.

Distante do solo amado,
- Desterrado -
A vida não é feliz.
Nessa eterna primavera
Quem me dera,
Quem me dera o meu país


Na poesia de Casimiro de Abreu, a saudade é outro dos temas fundamentais. Na introdução às Primaveras,revela que sua vocação de poeta havia decorrido da saudade, a quem ele chama sua primeira Musa.

“Um dia – além dos Órgãos, na poética Friburgo – isolado dos meus companheiros de estudo, tive saudade da casa paterna e chorei.
Era de tarde: o crepúsculo descia sobre a crista das montanhas e a natureza como que se recolhia para entoar o cântico da noite; as sombras estendiam-se pelo leito dos vales e o silêncio tornava mais solene a voz melancólica do cair das cachoeiras. Era a hora da merenda em nossa casa e pareceu-me ouvir o eco das risadas infantis de minha mana pequena ! As lágrimas correram, e fiz os primeiros versos da minha primeira musa “.

Um aspecto a ser destacado em Casimiro de Abreu é seu ruralismo poético. A abundante freqüência de termos de nossa flora e de nossa fauna não se impõe apenas por curiosidade ou pela sonoridade das palavras, mas esse vocabulário se integra num cenário real conhecido e por tantos brasileiros, o quadro natural de nosso campo e das pequenas cidades do interior, dos quintais com árvores frutíferas e das campinas, bosques e fontes.

O uso de elementos da vida rural para a expressão de sentimentos, através de imagens singelas e, apesar disso, ou mesmo por causa disso, profundamente tocantes é uma característica da poesia de Casimiro. No poema “Juriti”, além das imagens construídas a partir da ave, de intensa expressividade, observe-se a riqueza de variedade de metros, que nem sempre respeitando a ordem e a simetria, formam um todo agradável, em que ritmos e sons se combinam para maior beleza da expressão.


Na minha terra, ao bulir do mato,
A juriti suspira.
E como o arrulho dos gentis amores
São os meus cantos de secretas dores
No chorar da lira.

De tarde a pomba vem gemer sentida
À beira do caminho:

Talvez perdida na floresta ingente –
A triste geme nessa voz plangente
Saudades do seu ninho.

Sou como a pomba e como as vozes dela
É triste o meu cantar;
- Flor dos trópicos – cá na Europa fria
Eu definho, chorando noite e dia
Saudades do meu lar.

A juriti suspira sobre as folhas secas
Seu canto de saudade;
Hino de angústia, férvido lamento,
Um poema de amor e sentimento
Um grito d’orfandade !

À pomba faz o tiro…
A bala acerta e ela cai de bruços,
E a voz lhe morre nos gentis soluços, No final suspiro. /p>

E como o caçador, a morte em breve Levar-me-á consigo;
E descuidado, no sorrir da vida,
Irei sozinho, a voz desfalecida,
Dormir meu jazigo.

E – morta – a pomba nunca mais suspira
À beira do caminho;
E como a juriti, – longe dos lares –
Nunca mais chorarei nos meus cantares
Saudades do meu ninho !



A segunda metade do século XIX abre-se com um fato que pode ser considerado como ponto de partida de toda a nossa evolução econômica posterior: a abolição do tráfico de escravos pela lei promulgada em 4 de setembro de 1850. O comércio negreiro, que se havia incrementado consideravelmente depois de 1845, é estancado pela lei e pelas providências enérgicas do Ministro Eusébio de Queirós. Infelizmente, tal conquista libertária não foi obtida apenas pela pressão das forças humanitárias da Nação; agiram mais sobre os homens do governo as medidas adotadas pela Inglaterra, cujos interesses nas colônias das Índias Ocidentais, produtoras de açúcar como o Brasil, sofriam nossa concorrência. Os ingleses escondiam sob a máscara do humanitarismo suas preocupações com a economia açucareira de suas colônias. O efeito imediato da supressão do tráfico de escravos foi liberar consideráveis capitais que nele eram investidos. Esses capitais afluíram à praça; as ações de quase todas as empresas brasileiras tiveram uma subida extraordinária. Inicia-se uma intensa atividade nos primeiros grandes empreendimentos materiais do País. Em 1854 começa a trafegar a primeira estrada de ferro, a Leopoldina Railway. No ano seguinte inicia-se a construção da Estrada de Ferro Pedro II (Central do Brasil).

Inaugura-se o telégrafo e fazem-se as primeiras concessões para linhas de navegação. A supressão do tráfico veio encarecer consideravelmente o preço do escravo. Só podiam suportar o elevado custo da mão-de-obra servil as culturas altamente lucrativas como a do café que, localizada no centro-sul (Rio de Janeiro e partes limítrofes de Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo) atravessa uma fase de expansão considerável. Entram em decadência as outras lavouras tradicionais: cana-de-açúcar e tabaco. As grandes populações de escravos deslocam-se para as regiões produtoras de café. As províncias do Norte antecipam a abolição, alforriando seus escravos em massa como fizeram o Ceará e o Amazonas.

Três anos antes da abolição do tráfico negreiro, nasce na fazenda Cabaceiras, da então freguesia de Muritiba, Comarca de Cachoeira, Província da Bahia, Antonio de Castro Alves, filho do Dr. Antônio José Alves e de Clélia Brasília de Castro Alves. Aprende as primeiras letras em Muritiba e Cachoeira e, mudando-se com a família para Salvador, aí cursa o Colégio Sebrão e, depois, o ginásio Baiano, dirigido pelo famoso educador Abílio César Borges, depois Barão de Macaúbas. Em 1864 matricula-se na Faculdade de Direito do Recife, mas no mesmo ano, sentindo-se doente, volta à Bahia. Em março de 1865 retorna ao Recife em companhia de Fagundes Varela. Com alguns companheiros de estudos, cria, na capital pernambucana, a primeira sociedade abolicionista. Integrado na atmosfera de efervescência político-social onde se destacava a figura de Tobias Barreto, toma parte em comícios populares com grande evidência. É sob o impulso desses movimentos que começa a escrever Os Escravos. Nessa época, conhece a atriz Eugênia Câmara, a quem se liga por uma grande paixão. É com ela que deixa definitivamente o Recife e volta para a Bahia em 1867. Nesse mesmo ano, a 7 de setembro, representa-se no Teatro São João, de Salvador, sua peça Gonzaga ou a Revolução de Minas. No ano seguinte, ainda em companhia de Eugênia Câmara chega ao Rio, onde, após a leitura de sua peça, é homenageado com um banquete pelos intelectuais. Em março de 1868, juntamente com a atriz, parte para São Paulo, matriculando-se no 3o ano da Faculdade de Direito. Em outubro é representado com estrondoso sucesso O Gonzaga no Teatro de São José. Durante uma caçada nos arredores de São Paulo recebe um tiro acidental no pé, disparado pela arma que trazia a tiracolo. Em junho no ano seguinte, 1869, no Rio de Janeiro sofre amputação do pé e retorna à Província natal, em novembro de 1870. Na Bahia, recolhe-se à Fazenda Santa Izabel, perto de Curralinho de onde volta a Salvador em setembro para o lançamento das Espumas Flutuantes. No dia 6 de junho, no palacete do Sodré, junto a uma janela banhada de sol, para onde fora levado, de acordo com seu último desejo, expira o poeta, com 24 anos de idade.

O amor é um dos temas mais importantes da poesia de Castro Alves. Nesse aspecto há que se considerar a grande característica pessoal de seus poemas em confronto com outros poetas românticos, os da segunda geração principalmente. É a existência predominante de poemas sobre o amor realizado, enquanto nos outros (lembremo-nos sobretudo de Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Junqueira Freire) era o amor-medo, o amor não correspondido, o amor não realizado, o tema da bela adormecida. Castro Alves, tratando do amor em vários graus de realização, trás notas de sensualidade bem mais concretas que as de seus antecessores. Amou várias mulheres e deixou delas uma galeria na série intitulada “Anjos da Meia Noite”. No entanto, em sua agitada vida sentimental, deu mostras de paixão por duas mulheres: a atriz portuguesa Eugênia Câmara e a cantora italiana Agnese Trinci Murri. Com Eugênia, viveu durante algum tempo, mas Agnese, que o poeta conheceu em 1870, já no final de sua vida, apenas deixou-se cortejar sem maiores correspondências. Para Mário de Andrade, crítico que fazia sérias restrições a Castro Alves, poemas como “A Hebréia”, “Boa Noite”, “O Adeus de Teresa”, “O Tonel das Danaides”, os “Anjos da Meia Noite”, são provas decisivas de uma mudança profunda na concepção temática do amor na poesia brasileira.

O poema “Boa Noite” tem como fonte de inspiração a cena do Jardim dos Capuletos da tragédia Romeu e Julieta, de Shakespeare.

Boa noite, Maria ! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio.
Boa Noite, Maria ! É tarde … é tarde …
Não me apertes assim contra teu seio.

Boa noite ! … E tu dizes – Boa noite.
Mas não digas assim por entre beijos…
Mas não digas descobrindo o peito,
- Mar de amor onde vagam meus desejos.

Julieta do céu ! Ouve … a calhandra
Já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti ? … pois foi mentira…
… Quem cantou foi teu hálito, divina !

Se a estrela d’alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo d’alvorada:
“ É noite ainda em teu cabelo preto…”

É noite ainda ! Brilha na cambraia
- Desmanchado o roupão, a espádua nua-
O globo de teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua…

É noite, pois: Durmamos, Julieta !
Recende a alcova ao trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas cortinas …
- São as asas do arcanjo dos amores.

A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos …
Oh ! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.

Mulher do meu amor ! Quando aos meus beijos
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento !

Ai ! Canta a cavatina do delírio,
Ri, suspira, soluça, anseia e chora …
Marion! Marion ! … É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora ? ! …

Como um negro e sombrio firmamento,
Sobre mim desenrola teu cabelo …
E deixa-me dormir balbuciando:
- Boa note ! – , formosa Consuelo ! ..



Em 1870, já em Curralinho, Castro Alves escreve “O Hóspede” Leonídia Fraga é quem o inspira. Companheira de infância e namoradinha de adolescência na Bahia, antes de suas viagens para completar os estudos. O poeta se encontra em casa, doente, repousando o fim de seus dias. Segundo os biógrafos, Leonídia nunca deixou de amar o poeta e, nesse período final, é ela quem lhe traz todo o carinho e conforto. Em “O Hóspede” não é o amante quem fala a sua amada, é ela quem se dirige a ele, àquele que volta temporariamente depois de ter tido fora toda uma experiência da qual ela não participou. É Leonídia, a serrana que quer manter junto dela o viajante.

Ao lado do lirismo de feição, confidencial ou lírica amorosa, avulta na obra de Castro Alves sua lírica social, moldada quase sempre em pequenas epopéias à maneira de Vitor Hugo. A grande potencialidade amorosa do poeta estende-se para além de suas amadas, abrangendo a sociedade, a nação, a humanidade. Mais do que poeta dos escravos, ele será o poeta da liberdade. Tem consciência de que o poeta deve ser um guia do povo, que sua missão é revelar o que sua inteligência e sua sensibilidade alcançaram. É o profeta que apregoa a liberdade e a redenção do povo, que defende seu direito de se manifestar.


Quando nas praças s’eleva
do povo a sublime voz …
Um raio ilumina a treva
O Cristo assombra o algoz …
Que o gigante da calçada
Com pé sobre a barricada
Desgrenhado, enorme, e nu,
Em Roma é Catão ou Mário,
É Jesus sobre o Calvário,
É Garibaldi ou Kossuth.

A praça ! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor.
Senhor ! … pois quereis a praça ?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu …
Ninguém vos rouba os castelos
Tendes palácios tão belos …
Deixai a terra ao Anteu.



A poesia abolicionista de Castro Alves tem em “O Navio Negreiro” e “Vozes d’África” suas principais expressões. Vale notar que eles estão mais diretamente ligados ao tráfico de escravos do que à escravidão propriamente dita, o que lhes tira a intenção circunstancial imediata. O problema do negro já tomara outros aspectos em 1868 quando ele os escreveu, mas o crime da escravidão, a concepção do escravo como objeto de mercancia e máquina de trabalho continuava. O ideal abolicionista propagava-se rapidamente às escolas e ao Parlamento. Vozes enérgicas exigiam a extinção do cativeiro e, mesmo o governo imperial achava justa a medida. No entanto, estava advertido por seus conselheiros de que seria desastrosa à economia nacional se fosse decretada de maneira radical. Era preciso esperar. O poeta não viu o 13 de maio, nem mesmo as leis do Ventre Livre e dos Sexagenários. O “Navio Negreiro” é um poemeto dividido em seis partes, ou poderíamos dizer seis quadros. Nele o poeta emprega versos de várias medidas: dodecassílabos, decassílabos, versos de redondilha maior e de seis sílabas, em estrofação também variada. Na primeira parte, em quartetos decassílabos, se apresenta o mar. “Estamos em pleno mar” . Um brigue veleiro corta as ondas sob a luz do luar e das estrelas. Desejando acompanhar a embarcação, o poeta pede ao albatroz que lhe empreste as asas. O condoreirismo se identifica como uma das linhas importantes de nosso romantismo. As grandes aves “nobres” como o condor, a águia, o albatroz servem de símbolo para o poeta, com seu vôo solitário e alto, donde a visão é ampla e a perspectiva privilegiada. Em “O Navio Negreiro”, o espectador se funde com o poeta e com o albatroz para, nessa primeira parte admirar a beleza pura e equilibrada da natureza.


Negres a fond de calle. Des. Rugendas, Del. Deroi, Lit. de Engelmann. In.: RUGENDAS, Johann Moritz. Voyage pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1835. Tradução de: Das merkwurdigste aus der malerischen reise in Brasilien. Division 4e., Planche 1.


Q‘Stamos em pleno mar …Doudo no espaço
Brinca o luar – doirada borboleta –
E as vagas após ele correm … cansam
Como turba de infantes inquieta.

‘Stamos em pleno mar… Do firmamento
Os astros saltam como espumas ouro …
O mar em troca acende as ardentias
Constelações do líquido tesouro …

‘Stamos em pleno mar … Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes …
Qual dos dois é o céu ? Qual o oceano ? …

‘Stamos em pleno mar … Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares
Como roçam nas vagas as andorinhas …

Donde vem ? … Onde vai ? … Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço ?
Neste Saara os córcéis o pó levantam,
Galopam , voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem alí pode nest’ hora
Sentir deste painel a majestade ! …
Embaixo – o mar … em cima – o firmamento …
E no mar e no céu – a imensidade



Quando apareceu, em 1861, seu primeiro livro, Noturnas, Fagundes Varela era praticamente a única grande voz da poesia brasileira. Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias, da 1a geração romântica não escreviam mais. Os jovens da 2a geração, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire e Casimiro de Abreu já estavam prematuramente emudecidos pela morte. Castro Alves contava apenas 14 anos e, só em 1870, publicaria seu primeiro livro Espumas Flutuantes. Assim avultava Fagundes Varela como um gigante – e ele o foi realmente – sustentando aos ombros a continuidade da poesia brasileira.

Nasceu Luís Nicolau Fagundes Varela na Fazenda Santa Rita, Município de Rio Claro, Província do Rio de Janeiro, a 17 de agosto de 1841. Os primeiros estudos foram feitos em Angra dos Reis e Petrópolis, cidades em que residiu sua família. Com 18 anos vai para São Paulo completar os preparatórios para ingressar na Faculdade de Direito, onde se matricula em 1862, freqüentando as aulas em março e abril, para logo abandoná-las e casar-se, em Sorocaba, com Alice Guilhermina Luande. O casamento com a filha do proprietário de um circo não pôs fim a sua vida boêmia. O filho, Emiliano, nasce em 1863 mas falece aos três meses de idade. Nesse mesmo ano publica Vozes da América, onde inclui o poema “Cântico do Calvário”, em memória do filho morto. O poeta vivia dias difíceis, em extrema dificuldade financeira, com a mulher doente e profundamente traumatizada pela morte do filho.

Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.
Eras a messe de um dourado estio.
Eras o idílio de um amor sublime.
Eras a glória, a inspiração, a pátria,
O porvir de teu pai ! – Ah ! no entanto,
Pomba, – varou-te a flecha do destino !
Astro, – engoliu-te o temporal do norte !
Teto, – caíste ! – Crença, já não vives !
Correi, correi, oh ! lágrimas saudosas, legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto !
Correi ! um dia vos verei mais belas
Que os diamantes de Ofir e de Golgonda
Fulgurar na coroa de martírios
Que me circunda a fronte cismadora !
São mortos para mim da noite os fachos,
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
E à nossa luz caminharei nos ermos !
Estrelas do sofrer, gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu ! .
Sede benditas !
Oh ! filho de minh’alma ! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava !
Minha esperança amargamente doce ! Quando as garças vierem do ocidente
Buscando um novo clima onde pousarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos !
Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que reflete os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram !
Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr-do-sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa e leda
Do caçador que aos lares se recolhe !
Não mais ! A areia tem corrido, e o livro
De minha infanda história
está completo !
Pouco tenho de andar ! Um passo ainda
E o fruto de meus dias, negro, podre,
Do galho eivado rolará por terra !
Ainda um treno, e o vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustenho !


Em 1865 segue para Recife por via marítima, a fim de continuar os estudos. Um naufrágio o deixa na Bahia onde permanece algum tempo antes de seguir viagem. Publica Contos e Fantasias.O falecimento de sua esposa o traz de volta a São Paulo, sem ter prestado exames na Faculdade do Recife. Os Cantos Meridionais e Cantos do Ermo e da Cidade são publicados em 1865. Nesse mesmo ano casa-se com Maria Belisária de Brito Lambert. Desse casamento nascem duas meninas e um menino, também chamado Emiliano e, como o primeiro, prematuramente falecido. Abandonados de vez os estudos, volta para a Fazenda Santa Rita e leva uma vida errante, perambulando embriagado por estradas e fazendas fluminenses. Em 1875, falece em Niterói, vítima de um insulto cerebral.

Tendo vivido mais do que os outros três grandes da 2a fase romântica: Casimiro, Junqueira e Azevedo, pôde Fagundes Varela deixar uma obra mais extensa e mais variada: são poesias de subjetivismo byroniano, bucólicas, místicas, narrativas e patrióticas. As cenas de roça e as descrições bucólicas aproximam-no de Casimiro de Abreu; seu pessimismo e desejo de morte lembram Álvares de Azevedo. Se por um lado o byronismo de Varela se reduz a uma temática já um tanto desgastada, com a solidão, o desejo da morte, o prazer em ostentar desprezo pela vida, esses temas se adaptavam perfeitamente bem à faceta boêmia e trágica de seu temperamento e de sua vida. De Byron, mais provavelmente através de Álvares de Azevedo, herdou o poeta fluminense o gosto da grandiloqüência subjetiva, que se manifesta desde seu primeiro livro Noturnas, de 1861. Nessa época, estudante que brilhava na vida estudantil, ainda não havia razões que justificassem os versos tão desesperançados da poesia “Tristeza”, por exemplo. Seria antes de mais nada uma concessão à moda romântica.

Minh’ alma é como deserto
De dúbia areia coberto,
Batido pelo tufão;
É como a rocha isolada
Pelas espumas banhada,
-Dos mares na solidão.
Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar !
Os invernos me despiram,
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar !

Roem-me atrozes idéias,
A febre me queima as veias,
A vertigem me tortura ! …
Oh ! por Deus ! quero dormir,
Deixem-me os braços abrir
Ao sono da sepultura !

Despem-se as matas frondosas,
Caem as flores mimosas
Da morte na palidez:
Tudo, tudo vai passando,
Mas eu pergunto chorando
-Quando virá minha vez ?


É sobretudo na obra Cantos e Fantasias, publicada em 1865, que se manifesta um outro aspecto, bem mais autêntico, pois mais livre da influência de modismos, da poesia de Varela: o tom elegíaco. Tendo sofrido tanto, o poeta já se acalma e numa linguagem comovida, mas sem os exageros às vezes tão freqüentes, o poeta lamenta a morte do filho ou a ausência da mulher amada. É em Cantos e Fantasias que nos dá sua medida de poeta lírico e elegíaco. Destacam-se nessa coletânea o “Cântico do Calvário” e a série de poemas intitulada “Juvenília” .


Lembras-te, Iná, dessas noites
Cheias de doce harmonia,
Quando a floresta gemia
Do vento aos brandos açoites?
Quando as estrelas sorriam,
Quando as campinas tremiam
Nas dobras de úmido véu ?
E nossas almas unidas,
Estreitavam-se sentidas,
Ao langor daquele céu ?

Lembras, Iná ? Belo e mago,
Da névoa por entre o manto,
Erguia-se ao longe o canto
Dos pescadores do lago.

Os regatos soluçavam,
Os pinheiros murmuravam
No viso das cordilheiras,
E a brisa lenta e tardia
O chão relvoso cobria
Das flores das trepadeiras.

Lembras-te Iná ? Eras bela,
Ainda no albor da vida,
Tinhas a fronte cingida
De uma inocente capela.

Teu seio era como a lira
Que chora, canta e suspira
Ao roçar de leve aragem;
Teus sonhos eram suaves
Como o gorjeio das aves
Por entre a escura folhagem.


A simplicidade e ingenuidade são as notas mais salientes da poesia narrativa e descritiva da poesia de Fagundes Varela. Aqui se aproxima ele de Casimiro de Abreu e seu lirismo rural.

O balanço da rede, o bom fogo
Sob um teto de humilde sapé;
A palestra, os lundus, a viola,
O cigarro, a modinha, o café;
Um robusto alazão, mais ligeiro
Do que o vento que vem do sertão,
Negras crinas, olhar de tormenta,
Pés que apenas rastejam no chão;

E depois um sorrir de roceira,
Meigos gestos, requebros de amor;
Seios nus, braços nus, tranças soltas,
Moles falas, idade de flor;

Beijos dados sem medo ao ar livre,
Risos francos, alegres serões,
Mil brinquedos no campo ao sol posto,
Ao surgir da manhã mil canções:

Eis a vida nas vastas planícies
Ou nos montes da terra da Cruz,
Sobre o solo só flores e glórias,
Sob o céu só magia e só luz.


Em 1875, ano da morte do poeta, publica-se o poema de dez cantos, Anchieta, ou O Evangelho nas Selvas. Na riqueza e variedade do talento de Varela há ainda a assinalar o aspecto religioso. O Evangelho nas Selvas mistura assuntos bíblicos e históricos e mostra o gosto do poeta pelas mais audazes fantasias. Nele se encontra como que uma síntese da poética de Varela e pode ser considerado um espelho de todas as suas possibilidades. Confirmam essa opinião as palavras de Alceu Amoroso Lima:

“ … uma grandiosa sinfonia, em que a poesia de destaca do poeta para viver uma vida própria, além de refletir os mais variados aspectos das próprias dores e alegrias, no ato final de sua vida atormentada. Mesmo assim, o talento descritivo e paisagístico do poeta encontra, nesse poema, mais talvez do que em qualquer outro, largo campo de expansão.”
Os Cantos Religiosos foram publicados em 1878. São poesias em colaboração com sua irmã, Ernestina Fagundes Varela, conforme se diz na folha de rosto da edição. Representam uma busca da paz e da certeza do eterno nesse poeta de vida atormentada e infeliz. A poesia “Ave Maria”, com seus versos eneassílabos de cesuras bem marcadas, cria toda uma atmosfera de hora do ângelus, com um ritmo que evoca o tanger dos sinos. A última estrofe é formada de invocações que lembram uma ladainha, reforçando no final todo o clima místico que o poeta quis dar ao poema.

A noite desce, lentas e tristes
Cobrem as sombras a serrania,
Calam-se as Aves, choram os ventos,
Dizem os gênios: – Ave ! Maria !
Na torre estreita de pobre templo
Ressoa o sino da freguesia,
Abrem-se as flores, Vésper desponta,
Cantam os anjos: – Ave ! Maria !

No tosco alvergue de seus maiores,
Onde só reinam paz e alegria,
Entre os filhinhos o bom colono
Repete as vozes: – Ave ! Maria !

E, longe, longe, na velha estrada,
Pára, e saudades à pátria envia,
Romeiro exausto, que o céu contempla,
E fala aos ermos: – Ave ! Maria !

Incerto nauta por feios mares,
Onde se estende névoa sombria,
Se encosta ao mastro, descobre a fronte,
Reza baixinho: Ave ! Maria !
Nas soledades, sem pão nem água,
Sem pouso e tendas, sem luz nem guia,
Triste mendigo, que as praças busca,
Curva-se e clama: Ave !

Maria !Só nas alcovas, nas salas dúbias,
Nas longas mesas de longa orgia
Não diz o ímpio, não diz o avaro,
Não diz o ingrato: Ave !

Maria !Ave ! Maria ! – No céu, na terra !
Luz da aliança ! – Doce harmonia !
Hora divina ! – Sublime estância !
Bendita sejas ! Ave ! Maria

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