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Dedicatórias impressas no Brasil joanino

Ana Carolina Delmas*


A prática das dedicatórias tomou forma no complexo contexto do Antigo Regime, que, apesar de ter suas estruturas abaladas pela Revolução Francesa, deixou permanências no ambiente da Europa e também do Brasil do século XIX. Nesse contexto, localizavam-se as relações entre soberanos e letrados, ligadas a um sofisticado sistema de mercês e concessões, característicos dos costumes e hábitos de corte. Estavam igualmente presentes os privilégios e as estruturas de manutenção do poder por parte do rei e dos indivíduos.

Nessa sociedade, o valor era determinado pelo reconhecimento social: a importância de um acontecimento ou indivíduo residia naquilo que significava para determinadas pessoas. A posse de um título constituía-se em algo mais valioso do que uma riqueza acumulada; e o pertencimento à corte do rei ou o benefício de comparecer à sua presença eram posições extraordinariamente importantes na escala de valores sociais. Uma “economia de privilégios” era a essência das sociedades do Antigo Regime, em que esse privilégio, ou dádiva, constituía a expressão de uma relação em que muitas vezes eram simulados a gratuidade e o desinteresse, mas em que, verdadeiramente, predominavam o interesse, a equivalência e a obrigação.

No âmbito dessas relações de poder e de troca, do oferecimento de dádivas e da esperança por gestos de recompensa, as benesses eram utilizadas como instrumento de dominação, e também como engrenagem de relações políticas e sociais. Nesse contexto, encontram-se os livros e impressos, que sempre exerceram grande poder de atração e foram utilizados para os mais diversos propósitos – assim como suas dedicatórias. Nunca perderam suas características de sinais e instrumentos de poder, ligados às elites políticas, culturais e econômicas, sendo símbolos de status social, disseminadores de idéias e cultura, formadores de opinião e parte do chamado processo civilizador.

O papel do autor, por sua vez, foi uma questão que percorreu todo o Antigo Regime, até alcançar uma conceituação mais precisa, em meados do século XIX. Os direitos sobre uma obra constituíam um privilégio que podia ser concedido a quem escreveu, a tradutores, editores ou livreiros, ser revogado ou mesmo ignorado. Essa instabilidade personificava o principal motivo da inconstância da vida dos homens de letras: não era possível viver da própria pena, e por isso os autores procuravam outras formas de obter rendimentos. Buscavam alguém que fosse capaz de lhes oferecer tanto um suporte financeiro quanto a estabilidade de que necessitavam para se dedicarem às suas obras. Nesse processo, encontram-se as dedicatórias impressas, procedimento carregado de simbologia, que podia abrir portas e garantir o futuro de muitos letrados. Os letrados almejavam sobretudo o amparo de um mecenas soberano, que ultrapassava a ajuda financeira, concedia prestígio e maior liberdade para seu pensamento.

A chegada da Família Real

A dedicatória personificava, no universo dos livros, a relação de patronato e proteção já existente nas relações sociais. No contexto do Antigo Regime, o oferecimento de um livro ao soberano, com o objetivo de elogiá-lo e homenageá-lo, constituiu um dos gestos mais tradicionais de submissão do autor e uma das melhores formas de atrair-lhe as boas graças. A valorização do ato de se dedicar uma obra e dos privilégios que poderiam ser adquiridos levou também livreiros e tradutores a se apropriarem de obras para dedicá-las. Em livros científicos, em geral anunciadores de novidades, era fato comum o autor colocar-se no papel secundário, como mero portador de idéias inspiradas pelo soberano. Atribuía ao homenageado os conhecimentos descritos, afirmando-o como uma espécie de autor primordial. Tal elogio era capaz de posicionar o súdito como realmente merecedor da proteção, pois afirmava o rei como autor, reconhecendo não somente sua autoridade e soberania, mas lisonjeando sua capacidade intelectual e de inspiração ao conhecimento.

As homenagens impressas funcionaram em sociedades nas quais circulavam poder, dinheiro e a vontade dos poderosos, estando portanto sujeitas às possibilidades de mudanças. Esse tipo de homenagem atuava para os dois lados da relação: quem a oferecia buscava proteção em troca da afirmação de submissão ao poder real e do prestígio que concedia ao prestar a homenagem. O homenageado recebia esses tributos simbólicos e podia conceder o apoio e a proteção requeridos. Quando bem-sucedido o tributo, quem homenageava garantia o apoio de um protetor, e o elogiado sentia-se louvado e demonstrava seu poder sobre os demais. Essa forma de troca de poder simbólico e afirmação pública de submissão ao poder do soberano também encontrou seu lugar nos trópicos. Na América Portuguesa, manifestavam-se, desde o fim do século XVIII, características político-sociais acolhedoras para esse tipo de trocas simbólicas. O sistema de mercês era prática antiga na sociedade lusa, forma de acumulação presente em todo o âmbito do Antigo Regime português, uma vez que produzia súditos para a Coroa, gerando laços de lealdade e interdependência. Concediam-se benefícios pelo Rei ou por suas autoridades, em troca de serviços prestados, como garantia de monopólios e apoio político.

O ato régio de concessão de honras e privilégios foi elemento que instituiu uma economia do dom ou da dádiva, em que os beneficiados passaram a estar ligados ao monarca por uma rede assimétrica de relações de trocas de favores e serviços. Os cargos públicos eram almejados como demarcação de prestígio social, além da recompensa financeira. A vinda da Família Real permitiu que essas relações fossem traduzidas em sua forma impressa, concedendo novas oportunidades, especialmente à elite de letrados. Em uma colônia que apenas começava a se estruturar em sede da monarquia, os letrados estavam sujeitos a um fraco mercado literário, o que os tornava, fundamentalmente, dependentes do poder da Coroa. Tal fato se perpetuou ao longo de quase todo o oitocentos; não havia espaço, assim, para a ruptura de vínculos com uma economia de mecenato.

A recriação do aparelho central do Estado português em terras americanas despertou a antiga colônia para uma modernização segundo padrões europeus. Inaugurava-se, em 1808, um novo cenário no Rio de Janeiro, no qual não estava ausente a necessidade básica de criação de uma sociedade culta e ilustrada ao seu redor. Entre as medidas tomadas para o estabelecimento da sede americana do Império Português, destacou-se a abertura da Impressão Régia, em 13 de maio de 1808 (data do aniversário do Príncipe Regente). Ficou a cargo da primeira tipografia oficial do Brasil a publicação de documentos oficiais, periódicos e folhetos políticos. Contribuiu ainda para a vida cultural da colônia ao imprimir obras de ciências, história, literatura e artes; divulgando poetas e autores; introduzindo o romance e a novela no Brasil; e editando manuais para os cursos superiores.

A produção de livros no Rio de Janeiro dependia quase exclusivamente dessa tipografia, e a leitura de livros continuava restrita a poucos. Foram publicadas, entre 1808 e 1822, 1428 obras. Destas, 229 foram oferecidas em homenagem, dividindo-se da seguinte forma:

Por meio das fontes e de obras de referência, foi possível estabelecer o número de obras oferecidas a diversos indivíduos, como por exemplo, aos membros da Família Real:

D. João: 96
D. João & D. Carlota: 1
D. João e Príncipes Reais: 1
D. Carlota Joaquina: 1
D. Maria I: 8
D. Pedro: 17
D. Pedro & D. Leopoldina: 1
D. Leopoldina: 1
D. Maria Teresa: 4
D. Maria Teresa e D. Pedro Carlos: 1
D. Pedro Carlos: 4
D. Maria Anna: 1

Os primeiros anos do governo joanino no Brasil foram marcados pela vinda da Família Real. Com ela vieram importantes quadros da corte e da máquina administrativa, além de boa parte do dinheiro de Portugal. Foi com o efetivo início do governo de D. João, enquanto regente ou rei, que se iniciou de fato o oferecimento das dedicatórias impressas em homenagem. Estas foram além dos elogios à figura do soberano e acompanharam a dinâmica política ao longo, ao menos, das primeiras duas décadas do século XIX.

D. João foi conhecido com um rei paternal e patriarcal, preocupado em promover cerimônias como o beija-mão para reafirmar os laços com seus fiéis vassalos. Para organização e afirmação de seu governo no Brasil, fez-se necessária uma distribuição de títulos, comendas, honras, mercês e cargos públicos em profusão. Foram ressuscitados Ordens militares e pagamentos com honrarias e distinções aos súditos que o auxiliaram – de nobres a comerciantes -, o que fez reviverem com novo fôlego, na corte americana, práticas do Antigo Regime que começavam a se extinguir na Europa, como a das dedicatórias impressas. Nesse momento, as elites luso-brasileiras, tanto uma elite política quanto uma elite letrada, caracterizavam-se sobretudo pela homogeneidade ideológica, conseguida por meio de uma educação de acesso restrito. Por conta disso, o próprio grupo de autores que ofereceram obras em homenagem não era constituído por indivíduos totalmente desconhecidos, uma vez que se destacavam pelo simples fato de terem tido acesso à educação.

Os elogios na Corte de D. João

Os textos produzidos por esses autores foram permeados por uma retórica do elogio. Utilizavam-na para fundamentar argumentações específicas para persuadir aqueles a quem se dirigiam, buscando seduzir o leitor. O tom laudatório visava a convencer o soberano da lealdade e do merecimento de algum favor ou mercê, além de buscar impressionar ao exibir erudição. Estavam presentes as citações de clássicos latinos ou de autores europeus em voga, utilizadas para fundamentar a argumentação e conceder credibilidade ao escrito. As frases bem escritas e a retórica do convencimento e do elogio assumiam grande importância nessa sociedade em que a educação era vista também como ornamento. A utilização da retórica oferecia diversas possibilidades no engendramento de homenagens, levando o leitor a tomar como verdade o que lia, e envolvendo-o para atingir o objetivo desejado. Além de elementos clássicos, latinos e, sobretudo, bíblicos e religiosos, encontram-se citações de fatos históricos; afirmações de submissão e lealdade; enaltecimento às características de temperamento e de caráter; além dos desejos de um futuro próspero e merecidas bênçãos. A grande maioria das dedicatórias termina em uma espécie de “expressão-padrão” – “o mais fiel e humilde vassalo” -, antecedendo a assinatura daquele que oferece a obra.

As dedicatórias no Brasil joanino não foram impressas apenas em obras literárias ou científicas, com suas primeiras páginas reservadas ao espaço da homenagem. Também figuraram obras de geometria; obras de utilidade pública que discutiam as doenças do gado, ou o perigo das sepulturas dentro das cidades; lições de química; dramas para se representar nos teatros; poesias; obras de medicina; de economia; de cunho militar; discursos e compêndios. Grande parte das obras elogiosas constitui-se de orações, sermões, odes, poesias e cantigas em louvor. As primeiras se destacam em número, oferecidas em ação de graças ou em louvor fúnebre, confirmando a importância do fervor religioso na corte portuguesa. Era comum, ao se publicar uma oração, que essa não fosse oferecida ao objeto de seu pronunciamento, mas a outra figura expressiva que guardasse relação com o elogio original. Também é possível observar que, independentemente de quem fosse o alvo das dedicatórias, estavam presentes os elogios ao soberano D. João.

Em um primeiro momento (1808 a 1814), a maior parte das homenagens impressas é direcionada a D. João, destacando sua representatividade enquanto figura política central. Os demais homenageados mostraram-se em maioria membros de sua órbita. Esse período foi marcado pela euforia daqueles que recebiam pela primeira vez seu soberano e pelas possibilidades decorrentes do fato. Também se gozava de uma certa estabilidade política, sem problemas sucessórios ou a necessidade de decisões acerca do destino da Corte e do Brasil.

O período entre 1815 e 1820 conheceu transtornos, como a Revolta de Pernambuco e a Revolução Liberal do Porto. Com a derrota de Napoleão e a paz na Europa, a permanência da Corte no Rio de Janeiro não era mais considerada necessária pela grande maioria dos portugueses. Entre 1815 e 1816 foram poucas as homenagens ao soberano; esse número só se eleva 1817 e 1818 – período próximo à aclamação, que trouxe a certeza da permanência do Brasil como capital do Império português. O ano de 1820 seria o último de governo absoluto de D. João VI no Brasil. Como na transmigração de 1808, a decisão da partida foi adiada ao ponto insustentável, deixando a elite letrada na mesma indecisão em que se encontrava o monarca: na incerteza acerca do poder vigente, não estava claro para quem deveriam se dirigir os elogios.

No ano de 1821, as atenções já se dividiam. As dedicatórias expandiram seu foco e mudaram rapidamente de D. João VI para D. Pedro. A instabilidade política permite observar uma expressão interessante das homenagens nos anos de 1821 e 1822: obras direcionadas a acontecimentos ou indiretamente oferecidas, como à nação portuguesa; aos triunfos da pátria e à organização social; e à prosperidade do Brasil.

Autores e sociabilidades

Observando-se o grupo daqueles que publicaram obras com homenagens pela Impressão Régia entre 1808 e 1822, contabilizam-se mais de 100 letrados – dentre eles o Visconde de Cairu. Ao se considerarem as possibilidades de acesso ao letramento, esse número torna-se expressivo. Esses autores encontraram possibilidades variadas para o uso as homenagens impressas, que em geral seguiam o propósito da homenagem, procurando chamar atenção para a requisição que faziam. Assumiam também a forma de agradecimento por algo já recebido, e procuravam ratificar a posição de súdito fiel e comprovar o merecimento de mais benesses. O espaço da dedicatória podia abrigar explicações sobre os motivos que levaram à publicação, e de que forma esta poderia ser útil às aspirações do homenageado e para o Brasil.

Ocorriam requerimentos de privilégios como a exclusividade dos direitos de impressão e a obrigatoriedade do pagamento por esses direitos. Alguns autores valiam-se do espaço aberto pela homenagem para comprovar suas habilidades intelectuais e sua importância, tentando se mostrar indispensáveis. Nesse ensejo, ainda que de forma incomum, observam-se sugestões para elaboração de novas publicações. Quaisquer que fossem os objetivos, estavam presentes as humildes afirmações de súditos e vassalos, prontos para utilizarem seus préstimos a fim de engrandecer e glorificar o soberano e o Brasil. É importante destacar a presença de afinidade de idéias entre os autores e o monarca, e o fato de que as homenagens extrapolavam o espaço das dedicatórias e se faziam presentes ao longo do texto dos livros e também de outros impressos capazes de manifestar apoio – como periódicos e folhetos.

A dedicatória assumiu o papel de impulso a uma trajetória mais proveitosa e engajada com as elites, e ao estreitamento dos laços com o círculo social da família real. Para alguns letrados, suas relações com o soberano perpetuaram-se ao longo de suas vidas. Nem todos conquistaram o sucesso, porém, pode-se observar que uma parte expressiva dos autores que tiveram seus livros publicados entre 1808 e 1822 e mesmo além dedicou ao menos uma de suas obras. E, freqüentemente, manteve a prática dos elogios em seus escritos subseqüentes. Ainda que de forma lenta e gradual e por seleto grupo, a prática das homenagens impressas, por meio das obras dedicadas, foi capaz de se enraizar de tal forma que sua permanência pode ser percebida ao longo de quase todo o século XIX.

Conclui-se que, além de seguir de maneira bastante próxima à prática nascida no ambiente do Antigo Regime, o uso das dedicatórias impressas conseguiu trilhar um caminho próprio em sua manifestação tropical. Tão logo se começou a imprimir no Brasil, já saíam dos prelos dedicatórias impressas. Os letrados cujas idéias estavam em sintonia com os rumos do governo de D. João usaram-nas como ferramentas de ascensão de seu status político, social e financeiro. Diversos nomes ampliaram suas possibilidades oferecendo suas obras, mostrando que esses elogios foram recurso valioso para alguns desses indivíduos.

O mais importante acerca do trabalho de levantamento, recuperação e análise da prática das dedicatórias é a constatação de que no Brasil, no início do oitocentos, ao qual parte da historiografia atribui o desconhecimento das Luzes, estavam presentes impressos, idéias e noções de sociabilidades que não puderam ser contidas. Embora as idéias ilustradas fossem a princípio restritas, caminhavam para uma disseminação mais abrangente por meio das obras e periódicos que começavam a circular. Enfim, a observação e a análise da prática das dedicatórias impressas comprovam que o Brasil pôde desenvolver relações de sociabilidade complexas e aprimoradas, por meio das páginas dos livros.



*Mestre em História Política – UERJ.

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