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Cidadania no Brasil no início da República

Gizlene Neder*


A idéia de cidadania que circulava no Brasil no início da República não era, substantivamente, muito diferente da que temos hoje. Ao mesmo tempo, as pessoas daquele tempo histórico viviam e se expressavam, como não poderia deixar de ser, de forma bastante diferente de nós, e de nosso tempo presente.

O conceito de cidadania está relacionado aos direitos do cidadão, e a sua universalização se deve à Revolução Francesa (1789) e aos seus desdobramentos, com a vitória da burguesia. No ano de 1791 promulgou-se em França a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Sua repercussão implicou a difusão e a apropriação da cultura política que circulava nas duas margens do Atlântico. Já antes da Revolução Francesa, os direitos “do homem e do cidadão”, tal como expressado pela síntese da declaração francesa, inscreveram-se na Declaração da Filadélfia, que declarou a independência dos Estados Unidos da América do Norte em 1776. Como se pode perceber, junto à idéia de cidadania, afirmava-se a idéia de nação, cujo conceito começava a sofrer um processo de expansão e redefinição, sendo também apropriado e hegemonizado a partir da vitória da burguesia. E anteriormente à revolução francesa e à independência americana, as lutas pelos direitos políticos da classe trabalhadora na Inglaterra, desde meados do século XVIII, e mesmo antes, já expressaram um ideário que visava uma certa universalização dos direitos de votar e ser votado, de organização política, de livre expressão do pensamento e de liberdade religiosa. Que os movimentos em prol destes direitos tenham sido puxados pelos interesses dos trabalhadores na Inglaterra, na França ou nas Américas, isto não impediu que tais bandeiras ou direitos acabassem se convertendo em bandeiras da burguesia. O historiador Edward P. Thompson dá uma bela demonstração desta tese nas suas pesquisas e nos seus escritos, publicados em todo o mundo. A burguesia desfraldou como suas as bandeiras dos trabalhadores; razão pela qual, muitos falarão nestes direitos como direitos burgueses, pois eles acabaram se convertendo nisso mesmo: direitos da burguesia. Assim foi na Inglaterra, nos EUA e na França. A partir daí a universalização destes direitos burgueses foi freqüentemente disputada pela classe operária e trabalhadora em geral. Uma tal inclusão, com o correr do tempo, acabou por dar um vezo de generalidade a esses direitos políticos que acabaram sendo considerados de todos, universais, independentemente de uma velha questão: a da existência ou não de uma natureza humana. De um modo geral, vários conteúdos democráticos dos regimes políticos burgueses, na Europa e nos Estados Unidos (como voto universal, liberdade de opinião e expressão, de organização política, etc.) foram conquistas das lutas dos trabalhadores e foram apropriados pela dominação burguesa; não constituem, portanto, atributos de uma suposta “natureza” ou propensão democrática da burguesia.

As trocas econômicas, políticas, culturais e ideológicas ocorreram entre as principais formações históricas da Europa e das Américas (de Norte ao Sul), como partes constitutivas da cultura política do mundo ocidental (a Europa e os prolongamentos ultramarinos abrangidos por sua expansão, especialmente nas Américas). Os ideais de nação e de cidadania circularam, portanto, no Brasil e foram apropriados e incorporados aos discursos políticos formulados desde antes da independência do país em 1822.

Contudo, o campo político no qual a idéia de cidadania se afirmava por aqui tinha de lidar com a instituição da escravidão; como ocorria em grande parte das sociedades americanas. A escravidão constituía um dilema para os intelectuais brasileiros: como pensar e falar em cidadania e nação num país onde vigia o trabalho compulsório? Esta contradição entre o ideal de cidadania e de nação sustentados pelo ideário burguês, liberal, e a escravidão foi destacada pelos historiadores e intérpretes do processo social e político brasileiro. Eles geralmente enfatizavam a ausência de condições para a vigência da cidadania e da própria nação. Daí, afirmarem também o “atraso” cultural e político do país; sempre referidos à ideia de progresso e civilização que eram identificados nos outros (Europa e EUA); no Brasil, identificavam a falta: de modernidade, de cidadania, de progresso, etc.

Podemos imaginar, portanto, que a jovem República brasileira não teria mais que lidar com tamanha contradição. O fim do regime monárquico (1889) fora precedido do fim da escravidão (1888). O movimento republicano que vinha se fortalecendo, desde a década de 1870, desfraldava abertamente as bandeiras da cidadania, tal como formuladas desde a vitória das revoluções burguesas ao longo do século XIX. Mas será que o fim da monarquia e da escravidão, por si sós, garantiu cidadania a todos os brasileiros? Será que os ex-escravos foram incluídos no projeto republicano? Seria, portanto, o caso de indagarmos se o campo intelectual brasileiro havia, com o fim da escravidão, deixado de problematizar a escravidão. Não nos esqueçamos que boa parte do livro de Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, escrito na década de 1880, é dedicado à questão da educação do ex-escravo para a cidadania e o trabalho. Pensamos que a questão da escravidão permaneceu como um espectro que está ainda a rondar a sociedade brasileira – especialmente quanto aos direitos de cidadania; ela se recolocou, em referências republicanas, a mesma questão: como construir a cidadania e a nação num país de ex-escravos? Se, adicionalmente, lembrarmos que, naquela temporalidade do início do período republicano, o paradigma científico hegemônico no campo das ciências humanas fundamentava-se no positivismo e no evolucionismo de corte biologista, podemos imaginar como era difícil para os intelectuais brasileiros de então ver positivamente o futuro de uma nação marcada, tão fortemente, pela escravidão.

Para responder a tais indagações, devemos, antes de tudo, refletir sobre leis produzidas pela república recém-implantada. Devemos destacar os agentes históricos (individuais ou coletivos) que se expressavam através destas legislações: que questões estavam implicadas nestas leis? Quais eram as relações de força sociais e políticas que estavam presentes naquela temporalidade. E, por fim, qual era o escopo das lutas ideológicas por eles travadas?

Uma primeira questão a ser destacada é que a primeira carta constitucional republicana (a de 1891), que é tida como de inspiração liberal e usava o conceito de cidadania apropriado da cultura política burguesa (tal como descrito acima). Esta constituição foi precedida de duas legislações que anteciparam, decisionistamente, a lei maior; contrariava-se, assim, um princípio caro ao paradigma legalista que informava o constitucionalismo moderno: as constituições são consideradas leis maiores e devem preceder qualquer outra lei. Contudo, sob a ditadura militar que depôs a monarquia e empalmou o poder, foram aprovadas duas leis, que tiveram um caráter antecipatório das mudanças que eram temidas, mas que estavam por vir: o Código Penal (1890) e, no mesmo ano, a lei do registro e do casamento civil. Onde seu caráter antecipatório? Do ponto de vista do controle social, a codificação penal apontava para garantias de práticas repressivas e autoritárias sobre os trabalhadores, agora, livres. Com o fim da escravidão, o controle social antes exercido diretamente na unidade produtiva (fazendas de açúcar ou café), através dos capitães-de-mato ou capatazes, do pelourinho e dos açoites, fora transferido para o Estado; abolido o trabalho compulsório, a institucionalização do mercado de trabalho precisava de outros mecanismos extra-econômicos de coação política. Como não havia uma legislação trabalhista que regulasse as relações de trabalho, as leis penais do início do período republicano acabaram sendo usadas para reprimir e controlar os trabalhadores urbanos e rurais, grande parte deles constituída por ex-escravos; outra parte era constituída por trabalhadores imigrantes. A outra lei promulgada antes da Constituição de 1891 foi a lei que regulou os registros civis. Durante o Império, vigia no Brasil o regime de Padroado, onde Igreja e Estado estavam ligados. Todo o registro civil (batismo, testamento, morte e casamento) era feito pelos párocos, que eram funcionários do Estado (recebiam seus vencimentos pela folha de pagamentos do governo brasileiro). Sobretudo em relação à secularização dos casamentos, identificamos um ponto chave no acirramento das lutas ideológicas desde a influência do Código Napoleônico, que codificava as leis civis francesas (1804), e que continha a idéia de casamento como um contrato (portanto, previa seu distrato, o divórcio). O campo jurídico e o campo do catolicismo romano no Brasil deblateravam-se entre os defensores da idéia de casamento como sacramento e aqueles outros, que não desdiziam a idéia de casamento como sacramento, mas que aceitavam o casamento civil tendo em vista uma política imigrantista mais ampla e arrojada, requerida desde que o tráfico de escravos fora proibido por lei em 1850. A entrada de imigrantes não católicos no Brasil, já desde as últimas décadas da governação monárquica, vinha pressionando para mudanças na legislação civil, especialmente em relação ao direito de família.

As duas legislações que anteciparam a Constituição de 1891 foram formuladas e encaminhadas a partir da ação de política (e ideológica) de Rui Barbosa. Como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa alinhava-se do lado do catolicismo ilustrado. Diferentemente de Joaquim Nabuco, que se manteve monarquista, Rui Barbosa aderiu a República e participou ativamente do re-ordenamento jurídico da sociedade brasileira nas primeiras décadas republicanas. Podemos identificar sua atuação através da forte influência do federalismo e do liberalismo norte-americano, presentes na própria Constituição (1891). Mas também é possível identificar sua movimentação no sentido de garantir algumas salvaguardas para um posicionamento do campo do catolicismo romano no quadro das mudanças requeridas pelo processo de secularização a ser empreendido pela jovem república brasileira: a lei do casamento civil aprovada em 1890 não deveria contemplar o divórcio. A codificação penal estabelecia garantias legais de cunho conservador e repressor. Toda essa movimentação do campo católico no Brasil se fez em oposição ao radicalismo anti-clerical dos positivistas, que estavam muito fortes pela expressiva influência nos meios militares. Neste sentido, com a inevitabilidade das mudanças ensejadas pela separação da Igreja do Estado, a antecipação implicava um posicionamento estratégico visando a manutenção de um raio de influência do catolicismo na política republicana brasileira: especialmente para as áreas de direito de família, da educação e da assistência social (caridade), que, no Brasil, vem sendo designada como “serviço” social.

Rui Barbosa influiu, ainda, significativamente nos debates sobre o projeto de código civil que Epitácio Pessoa havia encomendado a Clovis Bevilacqua. O jovem jurista cearense alinhava-se ideológica e politicamente ao lado do positivismo republicano mais radical. Este republicanismo fora dos meios militares, que abraçou também o positivismo, não conseguiu influir muito nos rumos da República. Esta fora, inicialmente gerida pelos militares, e, posteriormente empalmada pelo republicanismo pragmático das oligarquias agrárias dos setores economicamente dinâmicos da agro-exportação, situados predominantemente em São Paulo. Bevilacqua era um dos nomes mais expressivos da Faculdade de Direito do Recife, e pertencia ao círculo intelectual que se posicionada em torno de Tobias Barreto. Estes intelectuais são designados pela historiografia das idéias políticas e sociais no Brasil como “Escola do Recife”. Importa, termos em mente, que a Escola do Recife iniciou, com Tobias Barreto, um processo de ruptura e crítica ao neo-tomismo, então dominante no campo intelectual brasileiro, especialmente na filosofia e no direito. Tanto Sylvio Romero (outro expoente da Escola) quanto Clovis Bevilacqua seguiram a pauta de ruptura filosófica aberta do Tobias Barreto. Podemos imaginar o quanto era preocupante para o catolicismo romano no Brasil a possibilidade de um código civil com forte acento positivista e republicano radical. Rui Barbosa, que no momento da discussão do projeto de código civil era senador, inicia uma discussão parlamentar e pública (através da imprensa) contra o projeto de código civil. Os ataques foram tão fortes e sua atuação tão incisiva que podemos dizer que Rui Barbosa tornou-se co-autor do Código Civil Brasileiro, aprovado, afinal, em 1916. Bastante desiludido com os rumos da República, e com a vida política na Capital Federal, o jovem civilista brasileiro foi neutralizado; vitória do velho senador. Especialmente em relação à condição jurídica das mulheres dentro do casamento – e para ficarmos num exemplo – o projeto de Clovis Bevilacqua era muito mais liberal e moderno do que o texto a lei que foi afinal aprovado. Somente com o Estatuto da Mulher Casada, uma lei complementar de 1962, as mulheres tiveram acesso a direitos de cidadania (referidos, por exemplo, a liberdade de abrir e fechar negócios, contas em banco – também para citar alguns poucos exemplos), que não eram contemplados pelo texto da lei. Não que as mulheres brasileiras antes de 1962 fossem passivas ou mesmo que não dirigissem negócios, etc. Só que faziam-no nas brechas da lei e não como direitos (de cidadania) garantidos em lei.

Por tudo que expomos nesta síntese, concluímos que a República no Brasil, nestes mais de cem anos de vigência, tem um caráter autoritário e fortemente excludente, sem que, com isso, signifique ausência de discussão, circulação ou mesmo apropriação da cultura política que elaborou e difundiu a idéia de cidadania nos últimos duzentos anos.

*Pesquisadora do Laboratório Cidade e Poder/PPGH-UFF. Pesquisadora do CNPq.

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