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Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência

Nancy Regina Mathias Rabelo*


A Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência foi fundada no Rio de Janeiro em 20 de março de 1619, por Luiz de Figueiredo e sua mulher Antonia Carneiro, seguindo as Regras da Ordem Terceira regular sediada em Lisboa, que pregava a caridade fraterna e a penitência individual. Associavam-se à Ordem abastados comerciantes, formando uma casta tradicionalmente de elite e fechada, que sempre se esmerou na construção de sua igreja e no luxo de suas procissões.

Os irmãos terceiros inicialmente instalaram-se na Capela da Conceição, à direita da nave da igreja de Santo Antônio, espaço que existe até hoje. Neste local exerceram seus ofícios até 1644, quando resolveram erigir uma capela independente, iniciando as obras em 1657. O terreno escolhido para o prédio localizava-se à direita da igreja e convento de Santo Antônio, sobre o morro do mesmo nome, formando imponente conjunto arquitetônico em sítio aprazível, de onde se descortinava a urbe e a bela vista da baía de Guanabara. Desde o princípio, não pouparam esforços e recursos, mandando buscar na metrópole os melhores artistas e os mais requintados materiais.

A fachada do edifício divide-se em três corpos verticais. Originalmente apresentava no frontispício um frontão barroco decorado com linhas sinuosas e entrelaçadas que hoje não mais existem, mas mantém o perfil recortado em curvas acentuadas. A portada, de 1748, foi feita em mármore de lioz, encimada com decoração animada ao gosto borromínico, assim como as janelas que pontuam o pavimento superior. Internamente, a igreja apresenta nave única e capela mor. Nos corpos laterais está, respectivamente, à direita, a sacristia, e à esquerda, espaço onde estão expostos os andores e imagens que acompanhavam a importante Procissão das Cinzas realizada na quarta-feira de cinzas pelos terceiros.

A riqueza da Ordem proporcionou uma rápida construção para os padrões da época, o que conferiu consonância estilística quase total ao monumento, inserida no exuberante gosto do barroco joanino. Este estilo foi assim chamado graças ao mecenato de D. João V, rei de Portugal, que favorecido pelo auge da produção aurífera das minas brasileiras, estimulou intensamente o intercâmbio de artistas e a construção de monumentos, caracterizados pela pompa, magnificência e influência italiana.

Internamente, a igreja realiza exemplar decoração barroca de arte total, integrando arquitetura, pintura, escultura, talha, onde até mesmo o piso é decorado com volutas de mármores policromos em refinados trabalhos de embutidos. A talha ganha grande movimentação e volumetria, inteiramente recoberta de ouro, revestindo toda a superfície, conferindo ao interior religioso um esplendor dramático. O teto, em abóbada, recebe pintura em perspectiva ilusionista, que se abre no centro em cena celestial sugerindo conexão com o infinito. Todo o ambiente interno da igreja articula-se com o externo através da intermediação da luz, que penetra pelo óculo da igreja, produzindo a atmosfera cambiante de claro-escuro típica do barroco. Três nomes se destacam na concepção artística deste templo: os mestres escultores e entalhadores Manuel de Brito e Francisco Xavier de Brito, que alternaram-se na decoração de talha, e Caetano da Costa Coelho, pintor e dourador.

Em 1723, foi encomendado a Manuel de Brito a talha da capela mor e respectivo retábulo. O artista, que já realizara a obra da Igreja de São Miguel de Alfama, em Lisboa, repetiu a qualidade estilística da metrópole, executando talha escultórica com colunas torsas, anjos, folhas de acantos, parras, pelicanos e atlantes. O coroamento do altar é formado por dossel ornado de lambrequins e povoado de figuras angélicas que circundam a imagem de Deus Pai. O nicho do altar, pouco profundo, revela a cena em que S. Francisco, estando em oração, tem a visão em que o Cristo crucificado aparece em forma de serafim com seis asas e lhe imprime as cinco chagas. Mais abaixo, à frente da tribuna, encontra-se a imagem de Nossa Senhora da Conceição, padroeira e protetora da Ordem.

A decoração pictórica e douramento da capela-mor foram encomendados a Caetano da Costa Coelho em 1732. O artista pintou quadros que se inserem na talha parietal e narram passagens das vidas dos santos franciscanos. O teto, em abóbada, recebeu pintura em perspectiva, que tem como tema culminante São Francisco sendo recebido nos céus pelo Cristo e a Virgem Maria. Infelizmente, estes trabalhos receberam intervenções posteriores que alteraram sua fatura e qualidade original.

No mesmo ano de 1732, Manoel de Brito recebeu a encomenda de um púlpito para a igreja; ainda à mesma época, os irmãos resolveram reformar o frontispício e uma nova portada para a fachada.

Em 1734, Francisco Xavier de Brito recebeu a encomenda do arco cruzeiro da igreja e do frontispício da capela mor. A obra do arco cruzeiro é uma magistral composição cenográfica. O arremate superior culmina em imensa cartela central onde se inserem as insígnias da coroa portuguesa e da ordem franciscana, ladeada por dois monumentais arcanjos de vulto. Cumprindo função simbólica de exaltação ao poder real e divino, o arco cruzeiro da penitência magnetiza o olhar do fiel a partir da entrada do templo.

Dois anos mais tarde, coube ao mesmo Francisco Xavier de Brito a execução de seis altares laterais devotados aos santos franciscanos, respectivamente, à esquerda: S. Ivo, S. Roque, Sta. Isabel, e à direita: Sta. Rosa de Viterbo, São Gonçalo do Amarante, S. Vicente Ferrer. Alternam-se entre estes altares as imagens dos santos franciscanos São Lúcio, Santa Bona, São Elisário (à esquerda) e São Luis dos Franceses, Santa Delfina e do bispo S. Guálter (à direita).

Coube a Caetano da Costa Coelho a encomenda da pintura de teto da nave, em 1737. A composição pictórica dá continuidade à arquitetura interna forjada pela talha nas colunas e entablamentos, e articula os efeitos de sombra a partir da entrada de luz pelo óculo do edifício religioso. O tema laudativo representa santos franciscanos e doutores da igreja em balcões junto a uma corte angelical, assistindo à apoteótica ascensão de São Francisco aos céus, que se revela no centro do teto abobadado. Ornatos de ourivesaria, guirlandas florais e cenas em grisaille complementam o vocabulário ornamental A técnica utilizada, de perspectiva ilusionista, inventada pelo Padre Pozzo, não tem nesta obra o ponto de vista central como referência. Mais uma vez, o impacto emotivo se dá a partir da entrada, pois dali o santo apresenta-se em projeção verticalizada. Posicionando-se abaixo da cena central, o espectador tem a errônea impressão de “imagem rebatida” – como há muito tempo vinha-se interpretando as pinturas de teto portuguesas. A pintura foi executada sobre cedro utilizando pigmentos e substâncias à base de elementos animais e vegetais.

Dando prosseguimento e finalizando a primorosa decoração artística, em 1739 os irmãos contrataram novamente Manoel de Brito para a complementação da talha que reveste as paredes laterais entre os altares, e o coro superior. A superfície das paredes foi compartimentada em planos regulares ricamente ornados e definidos por arrecadas florais, em que se detectam volutas, guilhochês, cartelas e conchas, entre outros motivos. Chamam à atenção a presença de cabeças em ovais, e dois perfis radiantes representando respectivamente a Virgem Maria e São João Evangelista quando jovem.

Cabe lembrar a influência que Francisco Xavier de Brito exerceu sobre outro grande mestre do período colonial, Antônio Francisco Lisboa – o Aleijadinho, quando executou em Ouro Preto a obra da Igreja do Pilar.

A erudição e excelência dos trabalhos artísticos da Igreja da Penitência, aqui não esgotados, configuram um dos mais belos exemplares do barroco luso-brasileiro, considerada por Germain Bazin uma “obra prima da escola lisboeta”.



*Professora de História da Arte – CEFET-RJ. Doutoranda em História e Crítica da Arte – EBA/UFRJ.

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