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Viagens Científicas

Lorelai Kury*


Durante boa parte do período colonial, as viagens para conhecimento da natureza brasileira foram realizadas por pessoas com pouca ou nenhuma especialização propriamente científica. Militares, funcionários metropolitanos e eclesiásticos em missão coletavam informações, que muitas vezes permaneceram manuscritas e não chegaram até nós. A relativa escassez de relatos de viajantes sobre a América portuguesa se explica igualmente pelo zelo de Portugal em tentar conservar sua colônia longe da cobiça das potências rivais. Nada que pudesse conter informações úteis sobre o Brasil podia ser publicado. Por exemplo, a obra Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, do jesuíta João Antonio Andreoni (Antonil), publicada em 1711, foi recolhida e queimada no mesmo ano, pois as autoridades temiam que as informações do livro servissem às nações estrangeiras.

As obras publicadas durante o período colonial que consideramos científicas provêm fundamentalmente das experiências coloniais holandesa e francesa no Brasil, pois esses países, ao contrário da lógica do sigilo seguida por Portugal, apoiavam a publicação e a circulação de parte das informações sobre o mundo colonial, mesmo quando se tratava de suas próprias colônias. Assim, são conhecidas até hoje as descrições da flora, da fauna e dos indígenas brasileiros feitas pelos franceses André Thévet e Jean de Léry no século XVI e as obras de história natural escritas a partir da ocupação holandesa no nordeste brasileiro, no sécuo XVII.

Até o período do Iluminismo (ou Ilustração), na segunda metade do século XVIII, as viagens, com algumas exceções, são relatos amplos, que tratam de tudo o que pode ser espantoso, curioso ou útil nas terras brasileiras. Os vegetais e animais comestíveis aparecem nos relatos, bem como a forma de prepará-los. A quantidade de madeiras, a presença de minas e de toda riqueza potencial são descritas. Como a natureza das Américas era desconhecida e bastante diferente da européia, os viajantes costumavam associar aquilo que viam aos seres fabulosos de suas próprias culturas. Além disso, nessa época, os critérios do que fosse possível ou impossível existir eram muito diferentes dos atuais. Muitas pessoas afirmaram ter visto sereias e monstros estranhos, e muitos acreditavam na existência das guerreiras Amazonas.

Os inventários mais detalhados e extensos sobre a natureza brasileira foram realizados pelos holandeses, principalmente com a obra de Piso e Marcgraf. Seus tratados descrevem as propriedades medicinais da numerosas plantas e animais, além de avaliarem o clima e as condições gerais da região que conheceram. Os holandeses consideraram a colônia tendo por base o arsenal científico da época, principalmente relacionado à medicina e à história natural. Sua obra é tão vasta e cuidadosa que, mesmo no século XIX, ela continua sendo referência importante para os naturalistas.

Uma das mais célebres expedições do período colonial, cujo relato foi publicado, se deve a Charles-Marie de La Condamine e uma equipe científica patrocinada pela Academia das Ciências de Paris, e ocorreu entre 1735 e 1744. O objetivo da viagem era realizar medições para conhecer a circunferência da Terra. Os relatos de La Condamine são peças das mais importantes, considerando a escassez de descrições da Amazônia no período colonial.

Se até então as viagens científicas eram uma exceção, a partir de meados do século XVIII a situação se transforma. O movimento da Ilustração em Portugal deflagrou um processo de valorização dos produtos naturais das colônias portuguesas, e do Brasil em particular. A política colonial desenvolvida pela metrópole buscou promover ações no sentido aproveitar de forma mais lucrativa as riquezas do Brasil. A administração régia promoveu pesquisas para a naturalização de plantas exóticas, favoreceu o estabelecimento de algumas sociedades letradas locais e organizou expedições científicas que tinham por objetivo conhecer os produtos da natureza, descobrir seus usos e propriedades.

Um dos principais promotores das pesquisas sobre o Brasil foi o naturalista Domingos Vandelli, membro da Academia Real das Ciências de Lisboa, professor de história natural e química da Universidade de Coimbra e diretor do Jardim Botânico do Real Palácio da Ajuda. Vandelli formou toda uma geração de naturalistas, muitos dos quais nascidos no Brasil. Foi ele quem indicou Alexandre Rodrigues Ferreira como naturalista responsável pela expedição que explorou o norte do Brasil, realizada entre 1783 e 1792. A Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, foi a mais importante expedição realizada pelos luso-brasileiros no Brasil. Os interesses gerais da expedição foram o conhecimento das chamadas “drogas do sertão”, passíveis de serem comercializadas e a legitimação da ocupação da Amazônia pelos portugueses, depois da conquista legal, garantida pelo Tratado de Madri (1750).

A viagem de Ferreira é filosófica na medida em que se enquadra nos moldes das expedições da época do enciclopedismo. Ele age segundo a lógica do administrador colonial esclarecido, como se julgava na época, pelas luzes da ciência. É com esse espírito utilitário que o viajante nascido na Bahia descreve plantas, animais, regiões e aspectos físicos e culturais da diversas tribos indígenas e povoamentos brasileiros. Acompanharam-no o jardineiro Agostinho Joaquim do Cabo e os desenhistas José Joaquim Freire e Joaquim Codina.

O frei franciscano José Mariano da Conceição Velloso (1741-1808) foi um dos mais importantes executores da política científica ilustrada de fins do século XVIII e início do século XIX. Suas viagens pelo Rio de Janeiro, promovidas pelo vice-rei D. Luís de Vasconcelos, se realizaram entre 1782 e 1790, passando por Parati, Ilha Grande e chegando até São Paulo. A equipe, constituída, entre outros, pelos religiosos frei Francisco Solano (desenhista de história natural) e frei Anastácio de Santa Inês (encarregado das descrições científicas), tinha por objetivo fazer o levantamento dos recursos naturais da capitania do Rio de Janeiro. Embora o material produzido por Velloso e seus ajudantes tenha sido executado com rigor e de acordo com os padrões científicos da época, a divulgação dos resultados da viagem foi demorada e incompleta. A Flora Fluminensis apenas seria publicada com os textos e as pranchas a partir de 1827.

Manuel Arruda da Câmara, natural da Paraíba, viajou pelo Nordeste brasileiro em diversas ocasiões: entre 1794 e 1795 percorreu Pernambuco e Piauí, de 1797 a 1799 esteve na Paraíba e no Ceará e em 1799 e 1800, no Maranhão. Algumas vezes pode contar com a colaboração do padre João Ribeiro Montenegro, desenhista de plantas. Arruda da Câmara publicou alguns trabalhos de história natural e economia rural, sempre buscando divulgar novas técnicas agrícolas, além de refletir sobre aspectos filosóficas da natureza.

Diversos outros homens de ciência reaizaram expedições nesse período, como é o caso de João da Silva Feijó, José Vieira Couto e do próprio José Bonifácio de Andrada e Silva. Antes de assumir cargos políticos no Brasil, José Bonifácio havia estudado em Freiberg e em Paris e publicado artigos sobre mineralogia em periódicos científicos europeus. Além de ter empreendido expedições mineralógicas na Europa viajou por São Paulo em 1820. A geração luso-brasileira identificada com o ideário iluminista apresenta, desse modo, uma certa homogeneidade de conduta, onde a ciência é vista como instrumento necessário à prosperidade econômica do Estado.

O período áureo das viagens cientícas ao Brasil foi o século XIX. Com a migração da Corte para o Brasil, em 1807-1808, e o fim das guerras napoleônicas, em 1815, houve um “novo descobrimento do Brasil”, segundo a expressão de Sérgio Buarque de Holanda, que se tornou clássica. Os viajantes desse período são muito mais especializados do que os do século anterior e, em geral, cumpriam missões com objetivos científicos bem definidos. Data dessa época a relativa separação do campo científico da esfera da política. O cientista passa a ser, em muitas ocasiões, a figura principal das expedições, em vez de subordinar-se a interesses políticos e militares.

As pesquisas dos naturalistas-viajantes seguiram dois grandes eixos temáticos e interpretativos: a descrição pormenorizada de espécimens e fenômenos particulares e a visão de conjunto das populações e da natureza. Por um lado, os estudos dos viajantes-naturalistas buscavam dar um tipo de tratamento aos espécimens que coletavam e observavam que tinha por base o desvendamento de suas partes componentes, a fim de inseri-los em uma ordem universal. Um viajante que chegasse em um lugar que nunca tinha visto antes deveria ser capaz de reconhecer os seres ali existentes, por meio de comparações morfológicas com as espécies que já lhe eram familiares. Com relação às plantas, por exemplo, os livros científicos de viagem contêm descrições pormenorizadas de todas os detalhes de cada vegetal, operação necessária para a classificação da espécie em um gênero, que por sua vez se inscreveria em uma família, e assim por diante.

Por outro lado, as observações dos viajantes-naturalistas buscavam compreender o conjunto dos seres e fenômenos observados, realizando um tipo de conhecimento que está na origem dos saberes ecológicos atuais. Na época, a interação dos animais e plantas com o ambiente chamavam-se de “economia da natureza”.

Os mais famosos viajantes do século XIX foram estrangeiros. Suas obras são até hoje referenciais importantes para o conhecimento da história e da natureza do Brasil. Spix e Martius, o príncipe de Wied-Neuwied, Auguste de Saint-Hilaire, Henry Walter Bates, Alfred Russel Wallace, Hermann Burmeister, Louis Agassiz e Peter Wilhem Lund, além do próprio Darwin, estão entre os naturalistas que percorreram o país.

A partir da segunda metade do século XIX, com a consolidação de instituições científicas e culturais, como o Museu Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, os cientistas locais iniciam um processo de afirmação do que seria uma “ciência nacional”. Por ciência nacional, normalmente se entendia: conhecimento de temas brasileiros, realizado por brasileiros. A natureza tropical do país, que teve papel relevante como símbolo de afirmação do Império, era compreendida como objeto por excelência para os estudos dos brasileiros. Dessa maneira, as instituições nacionais buscam se integrar no processo de produção de conhecimento internacional, dominado, naquela época, pelos europeus. Os cientistas brasileiros passam a reivindicar a precedência de suas pesquisas com relação aos trabalhos de autores estrangeiros. Francisco Freire Alemão e João Barbosa Rodrigues, por exemplo, são freqüentemente citados pela historiografia como autores lesados pela falta de ética científica de alguns europeus.

O Imperador Pedro II deu apoio a inúmeras viagens científicas realizadas nessa época, além de viajar, ele mesmo por diversas províncias do país. A Comissão Científica de Exploração (1859-1861), por exemplo, reuniu uma equipe completa de viajantes para estudar a natureza e os aspectos culturais do Ceará, ao estilo das grandes expedições européias das décadas anteriores. Diversas outras comissões foram formadas no Império, visando a construção de estradas de ferro, a avaliação da navegabilidade de certos rios e o mapeamento geológico do país. Muitos estrangeiros participaram dessas atividades, como Orville Derby, Franz Keller e Charles Frederick Hartt.

*Pesquisadora em História das Ciências e professora de Teoria e Metodologia da História na Casa de Oswaldo Cruz /Fiocruz e na UERJ. Publicou diversos trabalhos sobre viajantes e cultura científica nos séculos XVIII e XIX.

Conheça o site de Alexandre Rodrigues Ferreira.

Veja aqui as aquarelas de José dos Reis Carvalho, pertencentes ao Museu Histórico Nacional.

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