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Escravidão

José Roberto Pinto de Góes*


Por quase quatro séculos, o sucesso do tipo de sociedade criada no Brasil dependeu da escravização de grande parte da força de trabalho. No século XVI, prevaleceu a escravidão dos indígenas. As primeiras caixas de açúcar que chegaram à Europa, do Brasil, eram fruto do trabalho forçado de índios. Vários fatores se combinaram para que aos índios sucedessem os africanos, na virada para o século XVII. Os jesuítas, embora às vezes perdessem a paciência com eles (Nóbrega chegou a escrever que os índios eram “cães em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem”), não vieram para a América portuguesa para escravizá-los, mas para convertê-los à santa fé católica, além de vesti-los, naturalmente. A disputa entre jesuítas, ávidos por almas, e colonos, muito precisados de mão de obra, marcou o século XVI e também o seguinte. A Coroa procurou conciliar os interesses e, sob pressão dos jesuítas, em 1570, criou restrições legais à escravidão dos indígenas. Mas a exceção aberta à “guerra justa” não melhorou muito a situação deles.

O que parece ter sido decisivo na substituição da mão de obra indígena pela africana foi a combinação de três fatores: um crescente decréscimo da população indígena (nos anos 1540, mais pela guerra; nos anos 1560, mais por pestes e epidemias), a multiplicação dos engenhos necessitados de cativos e as boas relações dos portugueses com dirigentes e comerciantes africanos envolvidos com o mercado de escravos. A mudança foi rápida no recôncavo baiano, a ser exemplar os resultados colhidos por pelo historiador Stuart Schwartz na documentação do Engenho Sergipe do Conde. Os índios eram 93% dos escravos em 1574, 63% em 1591, e nenhum em 1639. Isso não quer dizer que os índios ficaram livres de serem escravizados para sempre. Quando a Holanda atacou as possessões portuguesas da África, em meados do século XVII, e fez escassear o suprimento de africanos, eles voltaram a ser escravizados. Aliás, como mostrou o historiador John Monteiro, em São Paulo esse processo de substituição da mão de obra prosseguiu século XVII adentro. A população indígena só alcançou alguma segurança jurídica em meados do século XVIII, por iniciativa do governo do Marquês de Pombal. De qualquer forma, de modo geral, desde o século XVII a escravidão foi predominantemente de africanos e descendentes.

A escravidão africana

Escravos africanos, ainda em pequeno número, já viviam no Brasil em meados do século XVI. Em 1539, Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, solicitou isenção do imposto que devia pagar pela importação de “peças” africanas. A combinação açúcar, mão de obra escrava africana e grandes lucros já era conhecida desde o século anterior, quando foi testada nas ilhas atlânticas, sobretudo na Madeira. O tráfico transatlântico de pessoas logo se tornaria um dos mais lucrativos ramos do comércio colonial. Estima-se que cerca de 10 milhões de africanos chegaram vivos na América durante o tempo em que o tráfico transatlântico fez circular os navios negreiros, também conhecidos como tumbeiros pelo grande número de mortes que a viagem causava. Este tráfico acabou em 1865. Cuba foi a última área escravista a receber africanos escravizados. Destes 10 milhões de indivíduos, cerca de 3.600.000 foram trazidos para o Brasil. Pelas estimativas mais recentes, 50 mil até 1600, 560 mil no século XVII, 1.891.000 no século XVIII e 1.145.000 no século XIX.

Africano é a palavra que usualmente se aplica a uma grande variedade de povos e tradições culturais diversas. O historiador Robert Slenes observou, de maneira bastante perspicaz, que o africano foi uma criação americana, pois era em cidades como o Rio de Janeiro que tradições distintas podiam se mesclar e se fundir numa nova identidade, que não era mais propriamente mina, rebolo, angola etc. Mesmo essas designações ainda são muito imprecisas, pois geralmente nomeavam portos ou lugares de embarque no continente africano. Os historiadores costumam discernir três grandes macro-regiões provedoras de escravos. A situada na África Ocidental subsaariana, em torno do Golfo Guiné, a região congo-angolana e o litoral moçambicano. Algumas sociedades localizadas na primeira área já estavam islamizadas, ou em processo de islamização, quando os portugueses apareceram na costa. Nas demais áreas, habitavam povos falantes de línguas bantos, com certas tradições comuns (o tipo de prática religiosa, por exemplo) e as desavenças costumeiras.

A demanda da América por escravos aliou-se à oferta de escravos por parte de dirigentes e comerciantes africanos, ligados ao próspero mercado de escravos. O tráfico, como observou o historiador Manolo Florentino, tornou-se um elemento estrutural tanto no Brasil como na África. No Brasil permitiu a continuidade e a expansão de uma sociedade baseada na exploração do trabalho escravo. Na África, passou a desempenhar um crescente papel no destino de Estados e grupos sociais diversos. A captura de 10 milhões de pessoas, embarcadas em tumbeiros e levadas como escravos para o outro lado do Atlântico, ao longo de quase 4 séculos, não seria possível sem que sólidos interesses ligados ao tráfico transatlântico existissem em ambas as margens do Oceano.

A sociedade escravista brasileira dependia largamente do tráfico transatlântico, pois, ao contrário do que ocorreria nos Estados Unidos, cujo tráfico com a África foi proibido em 1807, a população escrava tendia ao decréscimo. Maiores índices de mortalidade e uma maior recorrência na concessão de cartas de alforrias, no Brasil, são geralmente apontados para explicar a diferença. A contínua compra de africanos produzia efeitos no perfil demográfico da população escrava, pois era sexual e etariamente seletiva: privilegiava os homens jovens, prontos para pegar no pesado. Em épocas de grande demanda por escravos, os navios chegavam a trazer, 6, 7 homens para cada 4 ou 3 mulheres. Eis mais um elemento para explicar a dificuldade da população escrava do Brasil em não deixar de encolher.

Uma fonte histórica importante no estudo da escravidão no Brasil são os “relatos de viajantes”, geralmente de europeus que permaneciam algum tempo no Brasil e, depois, escreviam sobre o que haviam visto (ou entendido) nesses trópicos. Existem em maior número para o século XIX. Todos se espantaram com a onipresença da escravidão, dos escravos e de uma população livre, mulata e de cor preta. O reverendo Roberto Walsh, por exemplo, que desembarcou no Rio de Janeiro em finais da década de 1820, deixou o seguinte testemunho: “Estive apenas algumas horas em terra e pela primeira vez pude observar um negro africano sob os quatro aspectos da sociedade. Pareceu-me que em cada um deles seu caráter dependia da situação em que se encontrava e da consideração que tinham com ele. Como um escravo desprezado era muito inferior aos animais de carga… soldado, o negro era cuidadoso com a sua higiene pessoal, acessível à disciplina, hábil em seus treinamentos, com o porte e a constituição de um homem branco na mesma situação. Como cidadão, chamava a atenção pela aparência respeitável… E como padre… parecia até mais sincero em suas idéias, e mais corretos em suas maneiras, do que seus companheiros brancos.

Em apenas algumas horas caminhando pelo Rio de Janeiro, Walsh pôde ver, pela primeira vez (quantos lugares o reverendo terá visitado?), indivíduos de cor preta desempenhando diversos papéis: escravo, soldado, cidadão e padre. Isso acontecia porque a alforria era muito mais recorrente aqui do que em outras áreas escravistas da América, coisa que singularizou em muito a nossa história. É muito possível que os cidadão pretos alcançados pelo olhar do reverendo fossem também proprietários de escravos. Como o personagem Prudêncio, de Machado de Assis, no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Fato é que, como observou muito argutamente a historiadora Hebe Mattos, a escravidão brasileira não encontrava legitimidade em bases raciais. Como já dissera Joaquim Nabuco, a escravidão no Brasil se caracterizava por se manter acessível a qualquer um: homem, mulher, nacional, estrangeiro, preto, branco e quem mais tivesse algum capital para participar do mercado de escravos. Até 1850, quando finalmente o tráfico externo foi proibido, de fato, os escravos, muito frequentemente, eram mercadorias bem baratas. Ao menos não tão caras que por ela não pudessem pagar alguns africanos forros mais industriosos e muitos mulatos já melhor situados na sociedade.

A insubordinação e o medo

Robert Walsh escreveu que os escravos eram inferiores aos animais de carga. Se quis dizer com isso que eram tratados e tidos como tal, acertou apenas pela metade. Tratados como animais de carga eram mesmo, aos olhos do reverendo e aos nossos, de hoje em dia. Mas é muito improvável que tenha sido esta a percepção dos proprietários de escravos. Não era. Eles sabiam que lidavam com seres humanos e não com animais. Com animais tudo é fácil. A um cavalo, se o adestra. A outro homem, faz-se necessário convencê-lo, todo santo dia, a se comportar como escravo. O chicote, o tronco, os ferros, o pelourinho, a concessão de pequenos privilégios e a esperança de um dia obter uma carta de alforria ajudaram o domínio senhorial no Brasil. Mas, me valendo mais uma vez de Joaquim Nabuco, o que contava mesmo, como ele disse, era a habilidade do senhor em infundir o medo, o terror, no espírito do escravo.

O medo também era um sentimento experimentado pelos senhores, pois a qualquer hora tudo poderia ir pelos ares, seja pela sabotagem no trabalho (imagine um canavial pegando fogo ou a maquinaria do engenho quebrada) seja pelo puro e simples assassinato do algoz. Assim, uma espécie de acordo foi o que ordenou as relações entre senhores e escravos. Desse modo, os escravos puderam estabelecer limites relativos à proteção de suas famílias, de suas roças e de suas tradições culturais. Quando essas coisas eram ignoradas pelo proprietário, era problema na certa, que resultava quase sempre na fuga dos cativos. A contar contra a sorte dos escravos, porém, estava o tráfico transatlântico intermitente, jogando mais e mais estrangeiros, novatos, na população escrava. O tráfico tornava muito difícil que os limites estabelecidos pelos escravos à volúpia senhorial criassem raízes e virasse um costume incontestável.

No período da independência, a escravidão já virara um problema e motivo de debates em certos círculos. José Bonifácio, por exemplo, queria acabar com a escravidão, começando por proibir o tráfico de africanos. Não lhe deram ouvidos – naquele tempo a escravidão gozava de grande autoridade moral, pois não eram poucos os brasileiros que viviam do trabalho escravo. Embora, é bom salientar, a maior parte da população, de tão pobre, nem um escravo podia comprar – e isso acontecia com pretos, mulatos e brancos.

As pressões externas, contudo, sobretudo do governo inglês, foram crescentes na primeira metade do século XIX. Já em 1815, no Congresso de Viena, ficara estabelecido que o comércio de africanos de portos ao norte do Equador estava proibido para o Brasil. Dois anos depois, D. João VI foi obrigado a concordar com um tratado que dava direito à marinha inglesa de interceptar e vistoriar qualquer navio brasileiro suspeito de transportar africanos ilegalmente. O reconhecimento da independência do Brasil custou a D. Pedro I o compromisso de proibir o tráfico externo em 1830. Mas foi apenas no período regencial que, a 7 de novembro de 1831, foi decretada a proibição legal do tráfico transatlântico. A lei, dita “para inglês ver” foi solenemente ignorada por traficantes, fazendeiros e autoridades. Em 1845, o parlamento inglês aprovou o bill Aberdeen, que determinava à marinha inglesa apreender qualquer navio negreiro que avistasse, inclusive em águas territoriais de outros países. O Império do Brasil devia decidir agora se valia a pena entrar em guerra com a Inglaterra, em defesa do tráfico. A 4 de setembro de 1850 a Lei Euzébio de Queirós pôs fim, definitivamente, ao tráfico de africanos para o Brasil.

O fim do tráfico

O fim do tráfico externo elevou às alturas o preço dos cativos e os fazendeiros mais ricos (grande parte deles donos de grandes cafezais) passaram a comprar e concentrar a mão de obra escrava. Cada vez menos brasileiros se viam ligados à escravidão, que se afigurava cada dia mais como uma aberração. A década de 1870 marcou um novo momento na luta abolicionista. A Lei do Ventre Livre, de 1871, é um exemplo. Desde então, pessoas como Joaquim Nabuco, André Rebouças, José do Patrocínio, Rui Barbosa e muitos e muitos outros se tornaram obcecados com a idéia da abolição Os escravos também. A princesa Isabel também. Foi neste contexto de repúdio generalizado à escravidão que, em 13 de maio de 1888 a princesa assinou a Lei Áurea, que aboliu a escravidão, sem a indenização reclamada por muitos políticos e proprietários. O Rio de Janeiro ficou em festa por dias. Foi preciso que as autoridades tivessem que lembrar ao povo que a vida prosseguia e todos deviam voltar ao trabalho.

A escravidão adquiriu características muito singulares no Brasil. Os números que nos comparam aos Estados Unidos são muito esclarecedores. Para lá, foram enviados 400 mil africanos ao todo, até 1807. Para o Brasil, até 1850, quase 4 milhões. Quando a escravidão levou à guerra civil os estados americanos, existiam lá 4 milhões de escravos. Pelo censo brasileiro de 1872, os escravos eram cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas. Em 1888, cerca de 750 mil. Esses números se refletiram, claro, na presença de uma expressiva população livre “de cor” (como é freqüente aparecer na documentação da época), no Brasil. Nos Estados Unidos ela não passava de 5%, enquanto no Brasil era a metade.

Tais considerações ajudam a contextualizar o tal acordo que regulava as relações entre senhores e escravos. Estudos demográficos recentes mostram a presença expressiva de uma população “de cor”, livre, vivendo do mesmo jeito que pessoas “sem cor”, digamos assim, inclusive com uma participação importante no mercado de escravos. Tal como viu Robert Walsh. O conflito, portanto, não se dava por um viéis racial. Além disso, sendo a relação senhor – escravo uma relação pessoal e humana, nela cabia muito mais do que apenas medo e ódio. Mas quem sabe falar bem sobre isso é, pela última vez, Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil… Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a da dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte… Entre mim e eles deve ter-se dado uma troca contínua de simpatia, de que resultou a terna e reconhecida admiração que vim mais tarde a sentir pelo seu papel”. E uma carta de alforria concedida a uma ama de leite (ou mãe?) do século XIX, que se justificava assim: “por ter me criado em seus peitos e cuidado de minha infância”.

Quem melhor descreveu a sociedade escravocrata brasileira, na minha opinião, foi mesmo Gilberto Freyre, que, como notou o historiador Ricardo Benzaquen, descreveu uma sociedade onde o despotismo e a confraternização viviam lado a lado, em perpétua tensão e equilíbrio. Talvez nenhuma sociedade escape a esse modelo, de um jeito ou de outro. Mas fato é que a sociedade escravocrata brasileira, guardadas as suas devidas singularidades, foi uma sociedade, um jeito de viver em grupo, como outra qualquer. Simples assim.

*Professor de História do Brasil/UERJ. Pesquisador do CNPq.

Conheça aqui as imagens de escravos registradas por Christiano Junior.

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