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O Pasquim

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Caulos

Saul Steinberg, o artista romeno-americano, o guia de quase todos na redação do Pasquim e nas nossas pranchetas, deixou um alerta para aqueles que, como ele, a partir de certa idade e por serem os sobreviventes, se veem na melancólica tarefa de falar sobre os que se foram:
“Fale do que ele gostava, das roupas que escolhia, as comidas, da sua altura física, do número dos seus sapatos, se souber, mas nunca fale de você — não deixe o dedo do fotógrafo aparecer na foto”.

Assim, falarei apenas do que vi e ouvi na redação do hebdomadário, tão amado pelos leitores quanto odiado pela ditadura militar.


É o seguinte:
Caulos

O Ivan Lessa agitava as pernas enquanto escrevia — sua ansiedade era contagiante como seu talento. Não bebia na redação e não sei se usava outro tranquilizante.
Uma tarde cheguei preocupado e ele notou:

“Qual o problema, Moreno? Precisa de ajuda? Aqui tem tudo”.

Abriu sua bolsa (naquele tempo não usávamos mochila), parecia uma farmácia.

Outra tarde (ninguém chegava na redação antes das 14h, exceto a Nelma e o Jaguar) pareceu mais agitado do que o normal e me contou:

“Estava sentado à máquina de escrever que fica perto da janela da sala — o Ivan morava na Avenida Atlântica — quando olhei para o horizonte no mar e vi, flutuando sobre as águas, um disco voador. Chamei a Elizabeth (sua mulher), a empregada e elas viram o objeto voador junto comigo. Voltei para a máquina e avisei as duas: ‘Fiquem tranquilas, nós tivemos uma alucinação coletiva’”.

O Ivan Lessa podia ficar muito zangado. Um dia me chamou para um particular, soltando fumaça (pela fúria e pelos três maços de cigarros):

“Esse jornal não tem salvação, aquele boy (office boy) começou hoje, passou pela minha mesa, bateu nas minhas costas e me perguntou: ‘Queimando a mufa, Moreno?’”

O Ziraldo, mais agitado que o Ivan, chegava mais tarde, com 20 ideias geniais.

Eu sempre pensava no Samuel Goldwyn, o produtor de Hollywood, que entrava na sala dos roteiristas e anunciava: “Hoje, vindo pro estúdio, tive quatro boas ideias. Mas não gostei de nenhuma”.

O Ziraldo gostava de todas, mas era contestado pelo Jaguar, pelo Fortuna ou pelo Millôr. Uma injustiça, suas ideias eram boas — ou pelo menos muitas delas.

Sua agitação era transformada em trabalho, ninguém trabalhava tanto e tão rápido.

Não se ria muito na redação. Tudo era falado, escrito ou desenhado muito a sério, mas todos eram engraçados e o Jaguar ganhava o campeonato, muito sério.

A redação era na Saint Roman, uma rua tranquila entre Ipanema e Copacabana nos anos 1970, onde nada acontecia, pelo menos nada muito ruim.

Numa tarde de sábado, o Jaguar me pediu pra ajudá-lo a pintar a Gertrudes, uma prostituta fruto da sua mente, nua, de pernas abertas, na parede que ficava em frente à mesa da dona Nelma e onde havia um guichê por onde o Eufra atendia os vendedores e cobradores.

É claro que o Jaguar tinha pensado no desenho da Gertrudes de acordo com o orifício do guichê do Eufra.

Tudo bem, estávamos lá sozinhos, o Jaguar e o diretor de arte, sujos de tinta e quase terminando, quando alguém bateu na porta.

Um senhor de terno, gravata e sotaque carregado, parecia francês.

“O Volkswagen branco estacionado em frente é de vocês?”

Era meu.

“Manobrando na rua, arranhei o para-choque do seu carro e aqui está o meu cartão (ele falava e olhava a Gertrudes, timidamente), gostaria de pagar o conserto.”

Aceitei o cartão, surpreso, claro, agradeci a civilidade do estrangeiro e disse que não se preocupasse.

Ele ficou um segundo parado olhando a Gertrudes, não conseguia tirar os olhos do guichê.

Foi embora e eu e o Jaguar voltamos ao nosso afresco.

O Redi era hilariante, sem nenhuma intenção. Ele era gordo, vermelho e narigudo — “sou judeu, mas não muito católico”, me dizia.

Marcamos um encontro numa estação do metrô em Nova Jersey. Ele ia me levar no seu jipe pra comprarmos pincéis, tintas, telas e um cavalete na Pearl Paints de NJ, porque o imposto lá é menor do que em Manhattan. Não nos víamos há alguns meses.

O Redi: “Você desembarca em Hoboken, eu vou estar no estacionamento que fica na saída da estação. Não tem erro, se não estiver no jipe, estou no coffee-shop que fica do outro lado da rua”.
“Certo, Redi, eu te acho.”

“Mas tem um problema”, acrescentou muito sério.

“Qual o problema?”

“Estou usando bigode e penteando o cabelo bem liso pra trás.”

Uma jornalista voltou de Paris com uma entrevista com o diretor italiano Bernardo Bertolucci, que estava brilhando na Europa com o O Último Tango em Paris — era princípio de 1973, vivíamos em plena ditadura militar e é bom lembrar aos saudosistas que nas ditaduras a gente só vê o que delegado permite, mesmo assim com cortes. O filme estava proibido no Brasil e as pessoas com algum dinheiro iam a Paris para comer em restaurantes franceses verdadeiros (risos) e ver o filme proibido.

A moça conseguiu a entrevista e voltou correndo para o Bananão (era como o Ivan se referia ao Brasil) para publicar sua sensacional conquista, o filme já era um sucesso mundial. Tsk, tsk...
Ninguém queria falar no filme proibido e a moça foi parar no Pasquim, o último reduto da nossa frágil liberdade de imprensa.

O Millôr era o editor naqueles dias e ela foi logo dizendo:

“Millôr, a moda em Paris é seios caídos!”, referindo-se ao detalhe anatômico da Maria Schneider, estrela do filme.

O Millôr foi rápido como seu teatro Corisco dos tempos do Pif-Paf:

“Responderemos com o pau mole”.

Em 1972 O Pasquim estava mal de vida, devia muito, era mal administrado. Era o caos, que era muito bom na redação, mas péssimo no departamento financeiro. A redação saiu da casa na Clarice Índio do Brasil e foi para uma sala alugada em Copacabana. Casei com a Vanda e no dia do casamento fui demitido pelo Ziraldo (nossa testemunha no cartório, junto com a Vilma), pelo telefone. Demitido para continuar trabalhando de graça.

Numa madrugada estávamos sozinhos, eu e o Jaguar, paginando e ilustrando algumas páginas, quando tocou o telefone (fato incomum naqueles tempos, naquela hora):

“Alô?”

Pausa

“É o Jaguar.”

Pausa mais longa.

“Está confirmado?”

Silêncio.

“Obrigado.”

Desligou, foi até o copinho de cachaça que estava sempre na sua mesa e tomou um gole.

“Caiu um avião lá na Índia. A Leila Diniz está na lista de passageiros.”

Antes de chegar ao Pasquim para ser diretor de arte (ou paginador, como sacaneavam o Sérgio Augusto e o Ivan), trabalhei como assistente do Ziraldo.

Uma noite ele me pediu carona, o Pasquim ia entrevistar o Flávio Cavalcanti e o Ziraldo não podia dirigir, estava numa crise de hérnia de disco, usando um colete que o imobilizava da cintura pra cima. Andava como um boneco de corda, só movia as pernas.

A entrevista começou com o Millôr, o Jaguar, o Sérgio Cabral, a Martha Alencar, que era chefe de redação, o Ziraldo e outros mais de que não me lembro. Fiquei sentado ao lado do Ziraldo, assistindo, interessadíssimo.

Estávamos todos em volta da mesa de reuniões do jornal, o Flávio Cavalcanti muito simpático e também muito nervoso com a turma importante.

O Tarso de Castro chegou atrasado e ficou calado, assistindo.

De repente, ele bateu com a mão aberta sobre a mesa e gritou:

“Não estou reconhecendo vocês. Que merda de entrevista é essa, todos puxando o saco do entrevistado — isso não é uma entrevista do Pasquim”.

O Ziraldo não gostou e disse alguma coisa que o Tarso também não gostou e partiu pra cima dele, com direito a pescoção. O Ziraldo, imobilizado, caiu no chão e o Tarso mergulhou em cima.

Eu levantei a cadeira vazia e fui pra cima do Tarso. Quando cheguei, estava sem a cadeira, alguém atrás de mim me desarmara.

O resto da turma também reagiu e acabou com a briga para o bem do jornal e da TV Tupi.

Aos poucos todos se acalmaram.

O Flávio Cavalcanti, nervoso, dizia: “Fui eu que provoquei tudo?”

Todos calmos, a entrevista seguiu, desta vez no estilo do Pasquim. Sem o Millôr, que ninguém viu sair quando o Tarso chegou — eles tinham um problema, parece.

Quando terminou, o Tarso me procurou e apertou meus ombros:

“Você ia quebrar minhas costas, bicho! A Martha Alencar me salvou. Mas tudo bem, companheiro, briga de bar é assim mesmo”.

É difícil não admirar o cara.

Cheguei à Saint Roman, ia passando pela Gertrudes (nossa Demoiselle d’Avignon) e a Nelma, e ela me deu a notícia:

“Acabou a censura”.

“Como, acabou a censura?”

“Acabou, uma voz ligou de Brasília e disse que não precisa mais mandar o jornal.”

Toda semana mandávamos material para dois ou mais jornais, que voltava censurado com marcador preto, cruzes nos desenhos, nas fotos e nos textos, ou apenas sobre algumas palavras.

Richard Milhous Nixon era o nome completo do presidente americano que alguém citava num texto, o nome Milhous estava riscado — o censor não sabia que era o nome completo e deve ter achado que o autor estava insinuando alguma coisa.

Enfim, a censura acabou com um telefonema e eu subi para a redação. O Jaguar estava andando de um lado para o outro na frente das nossas mesas.

“O que foi, Jaguar?”

“A Nelma não te falou? A censura acabou.”

“Falou, é uma boa notícia.”

“Pois é, mas agora não sei o que fazer.”

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