BNDigital

O Pasquim

< Voltar para Dossiês

Paulo Francis

PAULO FRANCIS IMPRENSA NANICA
Da Nova York

No "Leia", Ciro Marcondes Filho comenta "a morte e vida" do "Pasquim", sempre referido pelos fundadores como "O Pasquim", Por quê? Lambi os beiços e depois me contive. É que Marcondes diz haver, uma tese de doutorado de um professor, José Luiz Braga, da Paraíba (sic) e com o título, em Francês (sic), de "Hebdo Bresilien d'Humour". Me contive porque o meu médico diz que devo evitar excessos de excitação... Limito o comentário a que é típico que um jornal completamente carioca, de uma zona, de "estado d'alma" inacessível até a 99,9 por cento dos cariocas, tenha terminado tese de um professor paraibano e em Francês. Dizem que o. passado —imobilista— se vinga do futuro. Eu diria que está sempre se vingando até torná-lo inativo, arquivo acadêmico desinformado e inútil, sem qualquer contato com o real percebido. Marcondes fala da repressão em 1968 e da "cumplicidade tácita" de leitores e pasquineiros, que estes faziam "política subjacente", Como isto aparece entre aspas no artigo dele me pergunto (porque não ficou claro) se é citação do paraibano, Este acha que "O Pasquim" mais revolucionário foi o "Dionisíaco".

Três pasquineiros juntos não concordariam sobre as origens do jornal. Logo, deixo isso para lá. Minha impressão, comecei a colaborar no quarto número, é que cada um fazia o que bem entendia. Nunca houve um editor em "O Pasquim", no sentido de determinar o que saía, pedir matérias (o que é diferente de cobrar matérias dos retardatários, inevitável.,.), de "dar uma linha". Todos os originadores do jornal já eram jornalistas muito conhecidos ou, no mínimo, conhecidos. Livres das inibições de uma empresa comercial, do jornal grande, começaram a usar a linguagem comum, ouvida rotineiramente em Ipanema, em qualquer canto. Todos com uma exceção eram contra a ditadura. A exceção não escreve. Faz outras coisas e é muito estimado pelos contra a ditadura. Mas não conheço qualquer colaborador que elaborasse uma teoria, ou até, intenção consciente, de estabelecer "cumplicidade tácita" com os leitores. Eu escrevi a primeira vez sobre o Marquês de Sade, Carlos Heitor Cony, diretor da "Ele e Ela", me tinha pedido. Os Blochs não gostam de mim. Vetaram o artigo. Vendi-o a preço de banana para "O Pasquim' . Nunca me ocorreu integrar, como dizem agora, o quadro do jornal. Eu era free-lancer. Gente como Ziraldo, Millôr, Jaguar, Fortuna etc., não precisava de "O Pasquim" para viver. O jornal era urna brincadeira num tempo triste, e foi por isso que pegou, porque a brincadeira se alicerçava no centro de fascínio da juventude brasileira, a praia de Ipanema, que ganhou uma coloração mística na imaginação da gente interiorana que, de resto, hoje ocupou toda a região e destruiu aquela Ipanema comunidade que ainda existia nos tempos iniciais do jornal.

O jornal vendeu cinco mil no primeiro número e começou a crescer. Chegou a 195 mil exemplares, uma vez, nunca mais. Se manteve bem até que a censura realmente apertou e vários editores foram presos por dois meses (de novembro a fim de dezembro de 1970), Não foram todos presos, como diz Marcondes. Dois dos mais famosos colaboradores, Millôr e Henfil (outro que não precisava do jornal para nada), ficaram soltos, ninguém sabe por que. Provavelmente uma bendita estupidez da repressão. Foram as crianças o grande público de "O Pasquim". Faziam os pais comprarem. Isto porque o jornal brincava com a linguagem sacana das crianças de Ipanema. "Dionisíaco é a..." Também se criou o mito de orgias na redação. Alguns colaboradores, Tarso de Castro, Jaguar e eu, poderíamos ser descritos como "heavy drinkers". Os outros, se bebiam, era socialmente. Fortuna acho que toma "milk-shake", e Henfil só bebe guaraná. Quanto a sexo, bem, o que hoje se fala tanto já era feito no Rio, zona da praia, na década de 40. Talvez o jornal tenha difundido essa rotina para o resto do Pais. Não sei.

Esse tipo de jornal daria certo até hoje, num país onde o presidente é referido como "excelentíssimo senhor doutor fulano de tal". "O Pasquim" tascou esse espírito, muito mais que a ditadura. Gozava o ridículo constante, avassalador, da vida brasileiro. Imagino o que fariam os colaboradores com a tese do paraibano.

Marcondes deve ser muito jovem. "O Pasquim" não descobriu "o humor", "a sátira política". Temos isso desde dom Pedro 2°, mas para não ir tão longe, Millôr fez isso em "O Pif-Paf", na revista "O Cruzeiro", Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) e Antônio Maria, na "Última Hora", Rio, década de 60, não fizeram outra coisa.

Um dos problemas centrais do jornal é que começou a dar dinheiro. Houve uma luta "intestina" pelo controle. Tomei posição na época e a mantenho, mas não quero lavar essa roupa suja de público (já lavada à beça, com a variedade habitual de versões). Isso prejudicou tanto o jornal como a ditadura. E não é verdade que o jornal nunca se tenha recuperado. Na década de 1970, quando Ivan Lessa assumiu a chefia da redação e Millôr a diretoria geral, o jornal comprou casa e ficou em posição financeira saneada, aí então, sim, só enfrentando a ditadura. Depois, as pessoas se cansaram, ou, como diz Marcondes, "foram absorvidas", parece que foram acometidas de alguma doença venérea, pela grande imprensa. Ninguém foi absorvido. Numa certa idade, as pessoas preferem ter um salário fixo, decente, em vez de viverem à merce de uma oligarquia que, civil ou militar, deveria dar um filme mais violento que os "Godfathers", só que cheio de xistes, para usar uma palavra do professor paraibano. Alguns de nós, ao contrário dos jovens e puros intelectuais da esquerda juvenil, temos de ganhar nossa vida trabalhando, porque não aceitamos entrar nas bocas ricas da cultura oficial, que não é a da grande imprensa, é a do Estado total com que a maioria da esquerda sonha.

O chato sobre "O Pasquim" é que destruiu a velha ilusão de que jornalistas competentes (esse é o único segredo do jornal) são capazes não só de produzir algo de sucesso, são, mas de que são capazes de se organizar em empresa, justa com todos os participantes. Não são, Henfil tem um comentário perfeito sobre esse as-sunto: "Patrão de esquerda, quando se aproxima o dia do pagamento, vira de extrema-direita; patrão de direita, quando se aproxima o pagamento, parece de esquerda".

Marcondes não incluiu o jornal batalhador de Raimundo Pereira, "Movimento", na lista de órgãos da imprensa nanica, É uma injustiça, A parte "Opinião", nunca ouvi falar dos outros que ele menciona. Talvez sejam ótimos. Não sei. Agora, "nanica" é a palavra certa. "Imprensa alternativa" é besteira.

Jornal é para dar noticias. Qualquer dos grandes jornais dava mil vezes mais notícias do que "O Pasquim" no auge. Nanica, sim senhor, e com muita honra. Se não fazem outro é porque não querem. O Pais ainda está mais ridículo do que em 1969. Quem fez o jornal, hoje, no mínimo, está na faixa dos quarenta anos. Onde estão os jovens de hoje? Esta pergunta não tem resposta no passado. Está no presente de cada um.

(PAULO FRANCIS - FOLHA DE S.PAULO – ILUSTRADA - 20/07/1985)


PAULO FRANCIS – SOBRE O PASQUIM

Um editor da Folha me pede uma nota sobre o vigésimo aniversário de "O Pasquim". Uai, pensei que não era mais publicado, Millôr Fernandes me falou qualquer coisa quando estive aí em janeiro sobre a compra do jornal, mas pensei que estava dormindo como Drácula, em face da luz do sol. Os últimos números que vi eram de puxa-saquismo horrendo de Brizola, quando este era governador do Rio, e presumo — concluo — que Jaguar ache que ser subsidiado por alguém que admira não é suborno. Jaguar era um idiota de gênio. Quando Carlos Scliar, comunista (hoje ex) e eu, trotsquista (idem ex) tentamos levá-lo para a esquerda, quando trabalhamos todos juntos na revista "Senhor" original, “circa”1960, foi uma parada explicar ao Jaguar a diferença célula e cédula (ele trabalhava no Banco do Brasil). Seu humor triunfava sobre as restrições políticas da esquerda. Quando houve um dos plebiscitos falsificados na Argélia, para ver se os nativos aceitavam a colonização francesa, Jaguar desenhou umas árabes gostosas, de véu, dizendo: "Não se pode dizer 'non' a um francês". É muito engraçado, mas, claro, Jaguar foi chamado pelo então edito-chefe da revista, Newton Rodrigues, que lhe explicou que a piada era contra o nacionalismo argelino. Mas em 1969 Jaguar era apenas um dos de "O Pasquim”. Os nove colaboradores tinham cada qual seu feudo, Inalienável. O jornal fez muito sucesso. Chegou a vender mais de 200 mil exemplares. Quando começou a pegar aumentava a circulação 10 mil exemplares, o sonho de todo editor de publicação nova. Os melhore talentos humorísticos de várias gerações , de Millôr a Claudius, a Henfil, Ziraldo etc., por iá passaram marcantemente (foi uma piada do amável Ziraldo que serviu de pretexto para nos colocar na cadeia 2 meses em 1970. Ele e eu, por motivos que ignoro, éramos sempre os primeiros a ser preso, nunca tendo a chance de fugir antes que nos apanhassem. Eu estava em casa às duas da manhã, quando apareceram os caras. Eu estava por sinal corrigindo as provas de “O Capital”, de Marx, que Ênio Silveira estaria lançando).
Mas não acho que tenha sido o humor, por si, que tenha vendido tanto jornal. Foi a censura que vendeu o jornal. censurados, não podíamos espinafrar o regime —em 13 de dezembro de 1968 foi baixado o Ato Institucional 5, decretando total ditadura—, logo tivemos que dar asas às nossa imaginação, como dizem, e não cair nas reclamações monocórdicas típicas da esquerda brasileira. Lembro ainda de uma portagem que fizeram sobre nós em "Realidade" e quando estávamos sendo fotografados na casa da Danusa Leão, em Ipanema, Sérgio Augusto, outro colaborador de destaque, me disse: "No dia que levantarem a censura, estamos fritos, Vai começar todo mundo a escrever igual". Batatolina.

Mas era engraçado mexer com a censura, Millôr fez um painel de duas páginas (centrais) chamado os "Vergéis Floridos", gozando a censura com uma página pastoral, o que a censura, obviamente, não percebeu, e no meio da mata um passarinho perguntava: "Você dá para mim"?

Eu escrevia sobre política externa, criticando a intervenção dos EUA no Vietnã, que até hoje considero a indignidade suprema deste país. Mas em 1970 obtive visto de jornalista para os EUA. Na prisão, um Interrogador, Brant, se não me engano um capitão na época, me acusou de insultar a dignidade do presidente dos EUA, Richard Nixon. Respondi que era multo engraçado ele dizer Isso, já que a embaixada dos EUA me tinha dado visto de jornalista. Perplexidade. Enquanto militar for considerado ente superior no Brasil não teremos possibilidade de criar uma sociedade civil crível. Li na "Isto É - Senhor" que Sarney não conclui o empréstimo de US$ 600 milhões com o Banco Mundial, porque, por conselho militar, como escrevem os repórteres, Bob Garcia e Jorge Caldeira, não quer dar garantia de que o dinheiro não será usado no besteiro e cabide de empregos em Angra. E que também não quer trocar controle ambiental na Amazônia por parcelas da dívida, pelo mesmo conselho militar. Sarney era presidente da Arena, partido do "Sim, senhor" nos tempos da ditadura. Nem ouso pensar onde pôs a língua. Não há motivo para supor que tenha mudado de opinião, ou, conto direi, de postura. Assim, não dá.

Mas, enfim, um a um fomos saindo de "O Pasquim". Pouco sei da fase Millôr Fernandes - Ivan Lessa, 1974-1978, porque eu já tinha saído, mas até lá o jornal tinha boa circulação, apesar da censura extrema, cerca de 60 mil exemplares. O jornal renovou a linguagem jornalística, pelo menos despindo-a do ranço acadêmico (persiste, sobreviveu) e inovou em entrevistas. Dávamos .um pileque no entrevistado, éramos todos de resistência acima da média ao uísque, e a "vítima" soltava o verbo, In vino veritas. Mas várias vezes engavetamos por piedade das pessoas, "It was fun while it lasted", Está todo mundo por ai, brilhando. Só Henfil morreu desta abominação que é Aids por ser hemofílico e precisar de transfusões de sangue, que deram a ele, contaminando. Aquí, a cadeia seria certa para o provedor. Aí, como de costume, a impunidade.

(PAULO FRANCIS - FOLHA DE S.PAULO – ILUSTRADA - 17/06/1989)


PAULO FRANCIS NA FOLHA EM “DIÁRIO DA CORTE”

Ziraldo com quem jantei no Rio, está cada dia mais bonito, como certos vinhos, e é, claro, inteligentíssimo. Foi o mais subversivo cartunista da Imprensa (não estou fazendo comparações de talento com os outros). Foi uma brincadeira com uma porcaria de quadro de Victor Meirelles (de quem tudo é porcaria) que serviu de pretexto para nos encanar no “Pasquim ", em 1970.

(PAULO FRANCIS - FOLHA DE S.PAULO – ILUSTRADA - 07/09/1985)

Parceiros