BNDigital

O Pasquim

< Voltar para Dossiês

Tárik de Souza

O Pasquim foi meu Ph.D. em jornalismo

Devo ao Carlos Imperial — que nunca ficou sabendo — meu ingresso no Pasquim. Sim, ele mesmo, o assumido rei da pilantragem, cafajeste militante e anárquico ativista cultural, que revelou de Roberto e Erasmo Carlos a Wilson Simonal, Elis Regina e Clara Nunes. “Impera” tinha classificado no Festival Internacional da Canção, de 1970, uma destrambelhada parceria com o colunista social — outro do clube dos cafas — Ibrahim Sued. “Conquistando e conquistado”. Era defendida por mais um de seus pupilos, o incompreendido Guilherme Lamounier, mas o adiposo autor roubava a cena numa retumbante performance, fantasiado de indígena do Cacique de Ramos. A pantomima interessou à então revista Veja, onde eu editava a seção de música, e lá fui entrevistá-lo. Mesmo recepcionado em seu escritório com uísque falsificado, conforme ele mesmo me preveniu, não tripudiei sobre o ex-encarcerado pela ditadura dois anos antes, por ter enviado aos militares um cartão natalino com sua foto sentado numa privada.

Escalado para o júri de um festival de música em sua natal Cachoeiro de Itapemirim (ES), Imperial não pôde ir e me indicou em seu lugar. Escaldado pelas mil roubadas do faltoso, perguntei primeiro ao mensageiro do convite quais eram os outros jurados. E ele listou: Albino Pinheiro, Jaguar, Henfil...” Opa! Tô dentro”, cravei. Tiete furioso do Pasca, que colecionava desde o número 1 (os exemplares foram encadernados até a década de 1980), tudo o que eu queria era ser admitido no elenco fulgurante do hebdomadário. Um Ph.D. à altura de quem nunca estudou Comunicações e cursou Jornalismo devorando os craques do papel impresso. De Millôr Fernandes, Nelson Rodrigues e Sérgio Porto (o criador de A Carapuça, semanário “hepático-filosófico”, antecessor do Pasquim), seu tio, Lucio Rangel (o pai da crítica musical do país), Antonio Maria, Rubem Braga e alguns mais. Minhas bíblias foram A Manha, do humorista fundador Barão de Itararé, revista Senhor, que tratava o brasileiro como um ser adulto, Revista da Civilização Brasileira (havia um projeto de país naquele tempo), o Pif-Paf, do Millôr e, nos quadrinhos, o Pererê, do Ziraldo. Tudo convergia para o Pasquim, minha aspiração de humorista e designer, oculto pela elipse da crítica musical, também aprendida nas colunas “Discos populares”, de Sylvio Tullio Cardoso.

Já no pequeno Cachoeiro, me vendi escandalosamente como colaborador para o Pasca, alternadamente, ao Jaguar e ao Henfil. Só os conhecia dos traços impressos, mas logo descobrimos longevas afinidades, que me credenciaram para o posto, ambicionado por todo jornalista digno dessa profissão na época. Como conversei com um de cada vez, houve uma divertida disputa. “Vou levar o Tárik para o Pasquim!”, disse o Jaguar. “Não, sou eu que vou levar”, reclamou Henfil. Modestamente, tinha contribuído antes para a seção Dicas (na qual me tornaria assíduo depois), quando grassou “a gripe” (leia-se prisão geral) na redação. Na Editora Abril, Luis Edgar de Andrade perguntou quem poderia escrever algo para cobrir o espaço em branco deixado pelos ausentes e eu me candidatei. “Como você vai assinar?”, ele perguntou, cioso do contrato de exclusividade que nos prendia à editora e do perigo de dar a cara a tapa para a ditadura. “Vou assinar com meu nome”, banquei. Dias depois da publicação, um cioso capataz da redação da Veja me confrontou no corredor: “Pedindo demissão, hein?”.

Admitido na patota (participei até de reunião de diretoria), em 1973, logo fui convocado para algumas das lendárias entrevistas coletivas do jornal. Como as do fabuloso músico Edu da Gaita, o homem do disco André Midani, o produtor Aloysio de Oliveira (abertura minha), Alceu Valença em decolagem para o sucesso, o pianista de jazz Horace Silver, se não me falha o uísque, no apê de Ivan Lessa. Ele me encomendou um texto sobre Lucio Alves, sua grande paixão (junto com Billy Eckstine, a quem imitava com perfeição), para ser incluído numa matéria portentosa sobre o “cantor das multidinhas”. Ainda foi Lessa que me telefonou para questionar se o recém-estourado Raul Seixas merecia mesmo o troféu de uma entrevista. Se tinha gabarito para tanto ou era uma moda passageira. Acabei dobrando o editor, que compareceu junto com Jaguar, Fortuna, Redi, Julio Hungria e Luiz Edgar de Andrade. Ainda assim, o título saiu meio cabreiro: “Raul Seixas — o mito Du-dia” (uma referência ao estilo publicitário da loja de roupas Ducal, nome criado a partir da promoção de duas calças na compra de um terno). Sorry, Edélsio Tavares (um dos alter egos de Lessa), mas eu tinha razão: o culto de Raulzito durou bem mais que um dia...

Cheguei atrasado à entrevista do cartunista e compositor Antonio Nássara. Mas não o suficiente para escapar da esculhambação pública do Millôr por não ter concedido um fascículo da coleção História da MPB, que eu editava na época, ao coautor de “Ala-la-ô”, “Mundo de zinco” e “Meu consolo é você”. Na entrevista do compositor e cronista Fernando Lobo chovia tonéis na Ladeira Saint Roman, onde ficava o Pasquim na época, e o convidado arregou. Muitos temiam os sincericídios cometidos nesses encontros regados a scotch. Para não perder a viagem (nem enfrentar a tormenta), entrevistamos um dos entrevistadores, o militante produtor paulistano J. C. Botezelli, o Pelão, de memoráveis discos de Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa e Carlos Cachaça. Dono de uma pegada hang loose para segurar o copo de chope, Pelão desceu a lenha no ex-patrão Marcus Pereira, publicitário e dono do selo homônimo, que revidou em carta virulenta ao Pasca. “Gostamos de brincar de liberdade de imprensa”, arbitrou Jaguar.

Também assinei solo algumas entrevistas num arco estético elástico. Da doce rainha da brotolândia Celly Campello ao caipira/humorista Alvarenga, da dupla com Ranchinho, que me relatou as perseguições da polícia getulista na época do Estado Novo. Gênio analfabeto — também em música —, a entrevista com João do Vale valeu a longa viagem. Rolou em sua casa em Rosa dos Ventos, pra lá de São Gonçalo, onde acabei dormindo, por conta do adiantado da hora. “Eu faço as coisas que vejo, da minha região. Não era chamado de protesto”, protestou o compositor. Sozinho ou com parceiros, são dele o afiado “Carcará”, o pré-MST “Sina de Caboclo” (“mas plantar pra dividir/não faço mais isso, não”), o combativo “A Voz do Povo”, o testemunhal “Minha História”. Mas também os maliciosos “Peba na Pimenta”, “Pisa na Fulô”, os líricos “Na Asa do Vento”, “O Canto da Ema”, “Uricuri (Segredo do Sertanejo)”, “Pé do Lajeiro”, “Estrela Miúda” e o forrozeiro “Coroné Antonio Bento”, gravado até por Tim Maia. Na manhã seguinte, ele fez questão de me levar à feira próxima de casa, onde foi sendo aclamado pelos frequentadores, enquanto engolia as primeiras talagadas de cachaça do café da manhã.

De tanta música no jornal, sugeri ao Henfil, idealizador da editora pasquineira — a Codecri (Comando Comitê de Defesa do Crioléu) — um livro sobre o assunto. O som do Pasquim foi lançado em 1975, com abrasivas entrevistas de Tom Jobim, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Waldick Soriano, Maria Bethânia, Lupicínio Rodrigues, Luiz Gonzaga, Martinho da Vila, Moreira da Silva, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria e a referida de Raul Seixas. Ia entrar também uma já publicada de Chico Buarque, mas quando soube, o compositor do petardo “Apesar de Você” bronqueou. “De jeito nenhum, aquilo está completamente desatualizado!” E o leitor ganhou uma inédita de Chico, com a patota em peso, tirada do gravador num bar da Lagoa, entre fartas doses de Fernet (a bebida favorita dele naquele tempo), chopes e caipirinhas.

A Editora Desiderata resolveu relançar o livro em 2009, e foi necessário pedir novas autorizações aos ainda vivos e aos herdeiros dos falecidos. Três baixas foram registradas: Roberto Carlos, em fase de censura explícita; Bethânia, por conta de algumas confissões pra lá de indiscretas; e Ângela Maria, por veto do marido/empresário. Timóteo, já então, além de cantor, um rodado político, concordou com a reedição das diatribes virulentas disparadas contra maiorais da MPB, desde que acompanhada de um posterior mea culpa.

A grande curtição (gíria reciclada pela geração Livro de Caras, vulgo Facebook) de trabalhar no Pasquim era a total liberdade de temas e abordagens, para quem estava amarrado na imprensa comum ao rótulo do crítico musical. Tanto fiz restrições ao “Matita Perê”, de Tom Jobim, quanto meti o chanfalho no indefectível Zagalo (“O Brasil fora da Copa”). Isso sem contar incontáveis e corrosivas dicas políticas, submetidas ao crivo de cracaços do texto como Ivan Lessa, Sérgio Augusto e Félix de Athayde. Numa edição de setembro de 1974, “comemorei” antecipadamente os dez anos que faltavam para o 1984, de George Orwell, com a transcrição de alguns trechos do livro. Como “a teletela que recebia e transmitia simultaneamente”, uma das muitas profecias do escritor, realizadas plenamente nesta era de redes sociais espiãs e reality shows big brothers.

Os direitos autorais estavam na ordem do dia com a criação da Sombrás, associação informal de compositores lesados pelas antigas arrecadadoras. A partir dessa iniciativa dos artistas, nasceu o Ecad (Escritório Central de Arrecadação) e um imprescindível órgão (epa!) regulatório, o Conselho Nacional de Direito Autoral, depois burramente desativado. E quem foi designado representante dos músicos no CNDA? O enfarado monarca Roberto Carlos. Entre baforadas de cachimbo, seu TOC da época, soltou a pérola: “Não tenho problemas de direitos autorais”. Não perdi a ensancha oportunosa (que língua a nossa!) para alfinetá-lo, mas a matéria me causou perdas irreparáveis. Dois raríssimos recibos de vendas de composições de Noel Rosa e Silvio Caldas (com estampilhas e tudo!) de meu acervo, que ilustravam o texto, de março de 1976, foram irremediavelmente perdidos. De nada adiantaram veementes reclamações com nossa querida secretária de redação e personagem assídua das fotonovelas do jornal, dona Nelma Quadros.

Uma das afinidades que me tornaram mais que amigo, irmão do Henfil, também da grande família Souza, estava no campo dos quadrinhos — Crumb, Dick Tracy, Wolinski —, paixão em comum. Coube a mim o texto de abertura da entrevista saideira dele para os EUA, onde foi em busca de tratamento para a hemofilia, mas também de disseminar por lá, via King Features Sindicate, seus incendiários Fradinhos, traduzidos para Mad Monks. Tínhamos o projeto de uma parceria nas tirinhas, tal como Jaguar e Ivan Lessa bateram um bolão nos Chopnics. Mas faltava o personagem. Ele nasceu num fim de semana em Arraial do Cabo, na região dos Lagos, no Rio, em fuga daqueles arrastões pontuais da repressão militar. Esse clima de terror acabou personificado no Ubaldo, o Paranoico, sempre apavorado com qualquer ato ou palavra supostamente capaz de incriminá-lo. Ele estreou no jornal em abril de 1976, em plena dura da dita, com assassinatos escancarados, como o falso suicídio do nosso amigo jornalista Vlado Herzog, em São Paulo. Eu nomeei o personagem e fiz alguns enredos, além de ter levado a fama de encarnar o próprio, por conta do cabelão, barba e sandálias, meu traje ripongo da época. E, claro, uma boa dose de paranoia.

Ela se revelaria mais que justificada quando os alcunhados “bolsões sinceros mas radicais” da ditadura, após matar com uma carta-bomba dona Lyda Monteiro da Silva, secretária da OAB, e tentar explodir o show de MPB do Riocentro, passaram a incendiar bancas que vendiam jornais alternativos como o Pasquim, fiéis à máxima indestrutível do Millôr: “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos & molhados”.

Parceiros