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O Pasquim

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SÉRGIO CABRAL

COMEÇO DO PAQUIM

“Eu trabalhava na Folha e na Última Hora, onde o Tarso de Castro era um sucesso como cronista e foi procurado por um cara que tinha feito com Sérgio Porto um jornal chamado A Carapuça. O Sérgio Porto tinha morrido, em setembro de 68, e ele queria ressuscitar a publicação. Tarso, eu e Jaguar nos reunimos e decidimos fazer outro jornal no lugar de A Carapuça, que o Jaguar batizou de O Pasquim. A primeira edição saiu em junho de 1969. A tiragem de 14 mil exemplares se esgotou às dez da manhã, o que nos obrigou a rodar outra. No segundo número, foram vendidos 40 mil exemplares e assim por diante, até novembro, quando fizemos uma festa comemorando 100 mil exemplares. No ano seguinte, já vendíamos 200 mil, uma loucura! A redação era alegre, o clima era bom, engraçado, e enfrentávamos a censura. Em 1º de novembro de 1970, fomos presos.”

SUCESSO E BRIGA

“O Pasquim era uma festa, uma festa louca. O Pasquim fez um sucesso que a gente não esperava e provavelmente nem merecia, um sucesso muito grande. Aí teve uma contradição entre empresa e jornal; nós fomos extremamente incompetentes para administrar a empresa, porque ninguém estava querendo administrar a empresa, a gente era jornalista e tal. Inclusive quando eu saí do Pasquim, tinha gente que achava até que eu estava com o dinheiro, mas não estava não. Aliás, o Pasquim não me deu dinheiro nem para comprar uma bicicleta, quanto mais um automóvel. Mas tinha certas questiúnculas, umas besteirinhas e tal, não eram graves. Essas brigas afetaram muito pouco as relações pessoais, acho que briga, só o Millôr e o Tarso que não se falam mesmo.”

A “GRIPE” DO PASQUIM

1 de novembro de 1970, domingo.
Fortuna e eu estávamos na piscina de um clube no litoral de Campos. Ainda era de manhã hem cedo. mas ¡à bebia gin-tônica (ou melhor: já não, ainda bebia. A gente emendou de uma festa para a piscina). Como não tinha levado calção, dava os meus mergulhos de cueca, mesmo. Uma cueca fechada que parecia calção de banho..

— Você é o Sérgio Cabral? Seu primo telefonou pedindo pra você se comunicar imediatamente com a sua casa.

Havia deixado minha roupa na casa de amigos e peguei emprestado uma calça, um sapato e uma camisa e fui para o centro da cidade, telefonar da redação de um jornal de Campos. Enquanto a ligação não se completava, começava a ficar muito nervoso, imaginando o que poderia acontecer de tão grave para justificar um telefonema daqueles. Desconfiei de qualquer coisa muito grave acontecida com um dos meus filhos na praia. Para falar a verdade, pensei em afogamento mesmo.

— Alô! Alô! Sou eu! Sérgio!

E minha mulher deu a noticia:

— A polícia invadiu a redação do PASQUIM e prendeu todo mundo.

Oito anos depois, posso contar: recebi a noticia com um alivio danado. Nenhum filho meu tinha morrido afogado.

Nossos amigos de Campos levaram-nos até o aeroporto, de onde um pequeno avião particular nos conduziu até o aeroporto Santos Dumont. Haveria polícia no aeroporto? Era o que pensava nos vinte minutos de viagem.

Não havia ninguém. Fui pra minha casa no Leblon e Fortuna foi para casa dele, em Santa Teresa. Tomei um banho, mudei de roupa, comi qualquer coisa e fui para a gráfica, onde estava sendo impresso o número do PASQUIM. O pessoal da montagem do jornal e da secretaria gráfica já estava em cana, mas a edição poderia ser rodada, Dei uma olhada e parei numa brincadeira na página 14: uma reprodução do quadro da Independência do Brasil, apresentando D. Pedro, com a espada erguida, gritando:
— Eu quero é mocotó!

Uma boa piada mas que só funcionava na época, logo depois do Festival Internacional da Canção Popular em que o Erlon Chaves cantou a música de Jorge Ben e foi em cana por ter beijado a boca de três ou quatro brancas. Coisas da democracia racial brasileira.

O diretor de publicidade e tesoureiro do jornal, José Grossi, que me acompanhou até a oficina, sugeriu que a piada fosse retirada. Recusei a sugestão. Depois, eu soube que a nossa prisão seriaa de apenas duas semanas, mas que o Ministro do Exército da época, Orlando Geisel, deu ordens para que fosse esticada para dois meses, como punição por aquela piada. Pelo menos foi essa versão que me foi contada.

Saí da oficina e fui para o restaurante Nino's, onde encontrei um tenente-coronel, meu antigo conhecido, com quem reclamei pela prisão dos companheiros Ziraldo, Paulo Francis, Luiz Carlos Maciel, do Haroldinho e do fotógrafo Paulo Garcez, que havia se casado dois dias antes e estava, portanto, em plena lua-de-mel. Saíra de casa para comprar goiabada e foi apanhado, donde concluímos que no regime Garrastazu Médici recém-casado não podia comprar goiabada.

Meu amigo militar pareceu surpreendido com a notícia e me encaminhou a um outro militar que na época exercia uma função qualquer no SNI. Este também ficou surpreendido e reagiu assim:

— Não é possível! Sabe qual é a ordem? A de não prender vocês, Oscar Niemeyer. D. Hélderr Câmara e Chico Buarque de Holanda.
Fui para casa dormir.

2 de novembro de 1970, segunda-feira
Nem sei se cheguei a dormir. Não devo ter dormido. Levantei no dia seguinte com um telefonema misteriosíssimo: um cara me dizendo que estava com uma encomenda do Rio Grande do Sul do Luiz Carlos Maciel pra mim. Poderia leva-la em minha casa? Você me espera? Só se eu fosse muito bobo. Já estava cansado de saber que Maciel estava em cana. Falei pra deixar a encomenda no PASQUIM porque estava saindo naquele momento para passar o feriado em Petrópolis.

Telefonei para o Flávio Rangel e fomos para a praia, que me parecia um lugar seguro. Vários amigos que fomos encontrando já sabiam das prisões e ficamos sabendo que não atingiam somente o pessoal do jornal, mas vários "suspeitos”. O jornalista Joel Silveira, por exemplo, havia recebido um telefonema muito mais sincero do que o meu: o cara dizia que aguardasse em casa porque seria preso naquele dia. Joel arrumou sua maletinha, botou escova de dente, sabonete, etc, e esperou.

O problema é que o jornal tinha que ser feito até quarta-feira, último dia em que a oficina esperava o material para imprimir. Fui ao encontro do Millôr Fernandes e conversamos sobre o assunto. Ele bolou um número na base da fábula do lobo e o cordeiro e sugeriu que eu ficasse em seu estúdio, onde, Inclusive, dormi naquela noite.

3 de novembro de 1970, terça-feira
Leila Diniz me convocou para uma reunião na sua casa a fim de ser tomada uma decisão sobre o comportamento dos jornalistas do PASQUIM que ainda estavam em liberdade. Eu já achava naquela altura que, como presidente da empresa e editor do jornal, estava sendo procurado em todo o Brasil por todas as nossas forças armadas, além das polícias civil e militar, Corpo de Bombeiros, etc. Imaginava até a cena: meus companheiros na prisão submetidos a intermináveis interrogatórios até que respondessem à pergunta:
— Onde está o Sérgio Cabral?

Maravilhosa Leila Diniz! Estava preocupadíssima conosco e ofereceu casas de pessoas que nem ouso revelar agora, oito anos depois, para que ficássemos escondidos.

O fato é que novas prisões haviam sido feitas. Fortuna, mal chegou em casa, encontrou um grupo de agentes que o conduziu imediatamente para a Vila Militar.

Fui até o PASQUIM e lá estavam apenas algumas secretárias, que comunicaram imediatamente as visitas recebidas por figuras estranhas que estavam à nossa procura. Enquanto Millôr Fernandes, praticamente escrevia toda a edição 73, Martha Alencar, secretária da redação, tomava as providências necessárias para que o jornal fosse impresso. .

4 de novembro de 1970, quarta-feira.
Passei pelo PASQUIM e me reuni com o pessoal que sobrou. A reunião foi realizada num bar instalado perto da redação, quando foi decidido que o melhor seria a minha apresentação. Num acesso imbecil de megalomania, achei que as, forças de repressão estavam querendo mesmo o diretor do jornal, na época eu.
Jaguar tinha chegado nesse dia de Arraial do Cabo e não sabia de nada. Encontrou em casa um recado para ligar para um número; falou com Francis, na Vila. Francis disse que queriam a nossa presença lá, para depoimentos. E que depois todo mundo seria solto.
Fizemos uma vaquinha. Flávio Rangel. Jaguar e eu para pagar o táxi de Ipanema a Marechal Hermes. Custou um dinheirão. Paramos antes de entrar na Vila Militar, num boteco, pra tomar umas cervejas. Quando beberíamos outras? A gente não levou mala, o convite era depor e depois voltar pra casa. Mas ninguém duvidava de que ia ficar em cana. Não deu outra: e a "gripe" só acabou no dia 31 de dezembro.

NA PRISÃO

“Vi novela, sim, e daí? Vi porque estava morrendo do saudades do Carlinhos de Oliveira que faz o papel de Carlinhos de Oliveira com o nome de Lauro Lemos na novela Assim na Terra como no Céu. E como o Carlinhos não aparecia nunca, a minha preocupação passou a ser a autoria do assassinato da bela Nívea que namorava o Padre Francisco Cuoco que, por sua vez, se casou com a igualmente bela Dina Sfat que estava como principal suspeita do assassinato de Nívea no último capítulo que vi. Enfim, assisti às novelos para ver os amigos: Carlinhos, CIáudio Marzo, Betty Faria, Nelsinho Mota, etc. Aliás, vi também o Nelsinho diariamente no Papo Firme, o que era sempre um problema porque o horário do programa quase coincidia com o Jornal do Brasil Informa, mas eu, Maciel e Fortuna dávamos preferência ao programa do Nelsinho.

Ouvi muito rádio e conclui que a programação da Rádio Jornal do Brasil é muito melhor que a da Mundial, cuja, aliás, está com muitas frescuras. No rádio do vizinho o que mais tocava era Charanga, da Wanderléia, para desespero do alguns dos nossos companheiros, mas não pra mim e pro Maciel. O Jornal do Brasil toca em demasia uma música muito chata que fala em América do Sul toda hora, cantada, se não me engano, pela Beth Carvalho que vai pensar que estou na marcação dela, porque fiz um fofoca há dois meses sobre a música dela no festival e agora estou falando isto. Ouvi algumas faixas do novo disco da Gal Costa e gostei muito, principalmente. (não fosse eu um folião) da marcha carnavalesca Deixa Sangrar, de Caetano Veloso. O último samba do Chico Buarque de Holanda também é muito legal, assim como os dois últimos sucessos da Elis Regina, Madalena e um outro cujo nome não me lembro, mas que sei a autoria: Baden Powell e Paulo César Pinheiro. O que Elis está cantando não é normal, como diria uma pessoa que conheci nestes 60 dias que supõe que a expressão não é normal é superprafrentex. Aliás, nem superprafrentex é mais superprafrentex, segundo depreendi na minha volta.

E as letras das músicas, meu Deus do Céu? Vocês sabem que ou as !etras são realmente populares (Martinho da Vila, Jorge Bem, Zé Kéti) ou tem o chamado bom nível intelectual (Caetano, Vinícius, Chico, etc). O meio termo é que enche o saco porque normalmente cai na mais hedionda subpoesia. Não há tortura? Pois o que vocês acham de o rádio do vizinho, sobre o qual vocé não tem o menor controle, tocar o dia inteiro uma certa música cuja letra diz o seguinte:

"Num céu de certo receio
Um Pensamento me veio”.
Não sei qual é o autor desta jóia, mas torço que não seja amigo meu.
O mesmo digo para do autor deste troço:
"Qualquer sim ou simplesmente
um talvez
Que se escuta da pessoa que
se quer
Nos reduz à nostalgia e à mudez”

Não é mole, leitor, você não pode imaginar o suplício, uma espécie de garrote vil sonoro. Em compensação, ficava acordado para ouvir (baixinho evidentemente) o programa do Adelzon Alves, das duas às cinco da madrugada. Um tremendo barato (ainda está na moda tremendo barato ou já saiu?). Outra compensação, sem dúvida, é Na tonga da mironga do cabuletê da magnífica dupla Vinícius e Toquinho.

Voltando à televisão, vi apenas um dos programas da série Som Livre Exportação, um programinha muito do pretensiozinho, com algumas coisas bacaninhas, outras chatinhas, outras deploráveis. Fiquei muito impressionado com o que estão fazendo com Ivan Lins que está se virando para atender o que lhe cobra a máquina de consumo, arriscando o seu prestígio, etc. e tal. É música pra novela, pra show, pra tudo e tome Ivan Lins. Os produtores do programa não são lá muito exigentes na seleção do pessoal que se apresenta. Aparecem uns caras que vou te contar.

Quanto aos discos, ouvi, por exemplo, o último do João Gilberto, uma beleza, mas não conheço os demais que a Philips importou, Nara Leão, Edu Lobo e António Carlos Jobim. Aliás ouvi muito poucas novidades devido às chamadas circunstâncias. Mas duvido que, entre todas músicas recentemente lançadas, haja alguma mais bonita que Because, de Lenon e McCartney. Se os Beatles não fizessem mais nada, a sua existência estaria plenamente justificada como reabilitadores da melodia. A melodia renasceu com aqueles caras e Because é uma das provas. Ouvi esta música durante cinquenta e oito dias pelo menos duas vezes por dia e não encheu o saco. É a vencedora inconteste do Festival da Gripe. Em suma foi isso que aconteceu, leitor. Mais não lhe posso dizer porque o tal senso crítico ficou inteiramente perturbado. A gente fica assim como ficam as pessoas que tem medo de avião depois de uma longa viagem. Uma viagem de avião de 58 dias.”

SEGURANDO METRALHADORA

Contou o Sérgio Cabral, pai do atual governador do Rio, quando da prisão do grupo (ficaram todos do jornal presos por dois meses), que um dia o coronel que tomava conta dele e mais uns dois outros os liberaram da cela e passaram a tomar cerveja. Um dos sentinelas pegou o violão e entregou a metralhadora para o Sérgio. Ele ficou com ela um tempão até que o coronel, já meio bêbado, falando que aquilo estava uma esculhambação, a tirou da mão dele.

DEPOIS DA PRISÃO I

“Depois da prisão, o Pasquim que era uma escola risonha e franca, ficou muito chato. Porque os anunciantes fugiram (fugiram e quando não, eram pressionados a não botar anúncios no jornal), além disso a censura apertava como nunca antes tinha acontecido”.

DEPOIS DA PRISÃO II

“A censura apertou demais. Tínhamos que mandar o jornal para Brasília, uma coisa terrível. O pior ano da minha vida foi 1971. O Pasquim perdeu toda a receita, porque os anunciantes ficaram com medo. Havia ainda sabotagem nas bancas, com ameaças de explosões aos jornaleiros que ousassem vender a publicação. Fui despejado, pegava dinheiro emprestado em banco, não conseguia pagar, recorria a um segundo banco para conseguir pagar o terceiro… Continuei no Pasquim apenas como colaborador e, em 72, fui para São Paulo trabalhar na Editora Abril, ganhando muito bem como editor da revista Realidade. Mas eu tenho um problema: sou carioca de nascimento, vocação e profissão. Só sei escrever sobre o Rio de Janeiro, sobre as coisas do Rio. Trabalhando em São Paulo, vim ao Rio e encontrei Ciro Monteiro na Cinelândia. “Vamos tomar um chope?”, perguntei, animado. Fomos para o Amarelinho, apareceram outros amigos e nós ficamos ali conversando, naquela tarde linda, um papo ótimo. Saindo dali, imediatamente telefonei para casa: “Magali, faça as malas pois estamos voltando para o Rio”, disse. “É mesmo?”, perguntou ela. “É. Consegui um emprego”, menti.

Como não tinha emprego, não tinha casa, não tinha nada, fomos morar com uma amiga. Tentei entrar em jornal, mas naquela época estava muito complicado. Certo dia, encontrei o Martinho da Vila, que, sem saber das minhas dificuldades financeiras, perguntou: “Você não quer ser produtor de disco, não?” “Mas o que faz um produtor de disco?”, indaguei. “A mesma coisa que você faz aí, esses shows, essas coisas que você faz aí, ora!”

E O PASQUIM ATÉ HOJE

“O Pasquim está aí até hoje, está firme, graças a uma série de coisas, e principalmente pela ação do nosso general da banda, que é o nosso líder, o Jaguar. Ele realmente está levando aquele jornal com grande paixão e grande talento. “


(coletânea de depoimentos do Cabral nos veículos Jornal ABI, TV cultura, O Pasquim, Gazeta Digital, Tv Câmara)

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