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O Pasquim

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Olga Savary

POESIA, HUMOR E AMOR NO PASQUIM

A alegria é uma espécie de exorcismo utilizado pela humanidade diante da crueza da vida desde que o mundo é mundo. Elegi a alegria desde cedo, desde criança, a minha palavra-chave, junto com a palavra-chave dignidade. Acredito, portanto, que foi a alegria a mola propulsora que criou o semanário O Pasquim pelo reduzido grupo inicial, convidado a fundar um jornal basicamente de humor.
Vivi intensamente o período pré-inicial, sendo a única mulher-jornalista-escritora-tradutora deste hebdomanário, palavra que nos fazia rir às gargalhadas, embora o termo fosse correto.

A intensidade não arrefeceu: durou todos os anos da minha permanência como colaboradora permanente, entrevistadora, tradutora, criadora de pautas e principalmente como a criadora da seção dita a mais lida do O Pasquim: “As Dicas”.

Pra começo de conversa, a palavra “Dicas” não existia até então, sendo uma redução de “indicações”. Não registrei e acabou que fiquei sem este pioneirismo, um dos vários pioneirismos da minha vida.

A seção “As Dicas” d’O Pasquim (O Pasca, para alguns, pois brasileiros têm a mania de reduzir palavras) consistia de notícias culturais, tipo lançamento de livros, shows etc., incluindo comida boa, uma vez que gastronomia também é cultura.

A vida me ensinou a ser prática. Assim, inventei de dar os preços dos pratos nos restaurantes, o que na época provocou um escândalo. Todos me diziam que era um horror, que eu estava sugerindo que o freguês era “sovina”. Resultado da minha praticidade: hoje todos os restaurantes exibem os preços na rua, à vista de todos, até lei existe, e os consumidores foram beneficiados com essa forma transparente e clara.

Embora discreta e reservada, sempre fui ousada. A cantora Elis Regina surgia. Quando ela foi contratada a dar um show no extinto Canecão, à época a grande casa de shows e espetáculos, dei uma nota entusiasmada, afirmando-a “o maior cantor brasileiro, entre homens e mulheres”. Todos estranharam o “o”. Não devia ser “a”? Só sei que a partir daí ela estourou de fato. Bombou, como hoje se diz. E olhem que reinava nesse tempo a voz de veludo do cantor Lúcio Alves, a voz do “cantor das multidões” Orlando Silva — como era chamado — e tantos mais esplêndidos cantores e cantoras. Não é à toa que o Japão e o mundo reverenciam e adoram a nossa música brasileira, que é de verdade a melhor do planeta.

Jaguar, considerado por quem entendia de humor no Brasil, e na famosa publicação suíça significando “quem é quem?”, junto com Millôr Fernandes, Ziraldo e Fortuna, eram considerados os maiores humoristas brasileiros do traço.

Jaguar era a alma d’O Pasquim, idealista, desejando tornar o mundo melhor por meio do humor do seu “grande nanico”, como era denominado o jornal. Ele criou o ratinho SIG, espécie de alter ego, uma brincadeira-homenagem ao psicanalista Sigmund Freud, dava pitaco em tudo, sempre presente em qualquer assunto apresentado no jornal, sendo seu legítimo representante.

Uma circunstância ignorada por todos os leitores, e até pelos amigos mais próximos: sempre pródigo de ideias para os seus desenhos de humor, os chamados cartuns, Jaguar distribuía as inúmeras anotações em dezenas e dezenas de cadernetinhas sobre seus cartuns a outros humoristas. Nunca foi avaro de sua criatividade. Afinal, ele criava tanto, tinha tanto, que podia se dar ao luxo de distribuir as charges anotadas nas tais cadernetinhas de capa preta.

Considerado ícone d’O Pasquim, Jaguar colaborou também em outros jornais e revistas, como Última Hora (criado no Rio de Janeiro pelo jornalista Samuel Wainer, e que durou 20 anos em meio a períodos prósperos e, ao fim, na derrocada, uma época tumultuada) e na Manchete (revista de Adolfo Bloch, que depois teve a TV com o mesmo nome).

Uma charge imperdível do Jaguar, blasfema, carregada de humor negro, exibia o Cristo crucificado dizendo para uma mulher ajoelhada: “Hoje não dá, Madalena, estou pregado!” Literalmente e em duplo sentido.

Conheci-o antes de sua entrada no Banco do Brasil como funcionário da seção de Telegramas, cargo que abandonou para dedicar-se somente ao Pasquim, perdendo a aposentadoria que já estava próxima. Arrependeu-se depois, após a perseguição implacável e sistemática da ditadura militar, que confiscava tiragens inteiras do jornal, o que acarretou prejuízos óbvios e dívidas bancárias impossíveis de pagar.

O Rio de Janeiro foi pródigo em títulos de jornais, entre antigos e novos, fossem matutinos ou vespertinos: Jornal do Brasil, O Globo, Diário de Notícias, Correio da Manhã, O Jornal, Jornal do Commercio, Diário Carioca, Tribuna da Imprensa, Jornal dos Sports, fora os chamados “populares”, O Dia, Gazeta de Notícias, A Notícia, Luta Democrática — este último do qual se dizia que, se a gente espremesse, saía sangue.

A Última Hora/Rio, depois a Última Hora/SP, resultaram em caso especial, principalmente a UH/Rio (com colaborações memoráveis de Nelson Rodrigues e Sérgio Porto, sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta). Hoje só sobraram Jornal do Brasil (em nova fase), O Globo, O Dia e Jornal do Commercio. Porém, nenhum deles foi tão revolucionário quanto O Pasquim, nem tão amado. E aquilo que é amado de verdade permanece no imaginário das pessoas.

Foi o que constatei, perplexa, com plateias numerosas às conferências que proferi em várias cidades, junto com o poeta Ronaldo Werneck, antigo colaborador d’O Pasquim. Plateias não só de gente da época do início do jornal, mas principalmente da turma mais jovem, universitários dos 18 aos 20 e poucos anos, interessadíssimos em todos os aspectos do chamado “grande nanico”, que ditou comportamentos e falares no final da década de 1960 até o início dos anos 1990. A curiosidade foi imensa, demonstrada por meio de perguntas pertinentes e inteligentes durante as palestras. O Pasquim estava ali vivo, vivíssimo, inesquecível e amado. Em 2019, estarei de novo convidada a comemorar os 50 anos de sua fundação como a única jornalista fundadora d’O Pasquim. E tendo a certeza, ainda, de ele ser lembrado, jamais esquecido, incluindo pelas novas e novíssimas gerações. O Pasquim foi, é e será sempre um fenômeno no Brasil, em Portugal, nos países lusófonos, no mundo.

Para quem exerce a consciência e a lucidez — os dois bens supremos do ser humano —, ganhar é ganhar somente de si mesmo. Quando se morre, se a gente pudesse medir o peso, aquele que está exalando o último suspiro perde 21 gramas. Vinte e um, portanto, é o número da vida. Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro é igual ao peixe cego, mas que por isso mesmo tem luz, luz própria.

Tudo isso parece referir-se ao Pasquim, que foi, e ainda é. É sonhar transformando. Importantes não são apenas os instantes em que você respira, mas os momentos em que perde o fôlego. Nada do que é humano deve ser ignorado. É no humano que nós nos reconhecemos e nos aprimoramos. O Brasil não foi pensado para ser nação, e sim para ser pilhado, tipo “vamos ver o que podemos pegar e levar embora para as nossas terras etc.”. Só que o Brasil é um colosso como a própria natureza. O Pasquim não fica atrás. Assim, apesar das incompetências dos “desperdícios”, das incompetências várias, dos desmandos, o País continua de pé com sua poderosa cultura.

Não devemos viver só de passado, porém é necessário e saudável refrescarmos nossa memória e voltar o pensamento, filosofando sobre tudo aquilo que rendeu passos à frente, aquilo que deu certo.

O Pasquim foi um desses passos à frente, muitos e muitos passos na dianteira do nosso país, contra os inúmeros retrocessos. O Pasquim andou pela trilha dos luminares Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e tantos mais nas diversas áreas do saber maior. A educação, com lucidez e consciência, traz luz e benefício a todos. A cultura jorra luminosidade e dá sentido a uma nação. Sem educação e cultura, uma nação não é nada, é puro obscurantismo e cegueira. Com leveza e humor foi o que fez pelo Brasil o semanário O Pasquim. Claro que não foi o único, mas imprimiu indelevelmente a sua marca registrada. E é por tudo isso que ele é lembrado e amado até hoje, 2019, 50 anos depois do seu lançamento. Creio que será sempre: um marco.

O Pasquim, nascido exatamente em 26 de junho de 1969, teve circulação ininterrupta de 22 anos, um recorde na história da imprensa nanica. Considerado um jornal de jornalistas e cartunistas, parecendo mais falado do que escrito, daí talvez (eu diria com certeza) seu poder de comunicação. Pretendia ser um jornal “sem patrão”, ideal de todo criador. Vingou até 1991. Para uma comparação: o Pif-Paf, do Millôr, só durou oito números.

Com entrevistas praticamente não editadas, para dar mais espontaneidade, sem o ranço acadêmico, usou à vontade comentários ente parênteses, tipo (risos), copiados desde então e até hoje em toda a imprensa nacional. O público leitor adorava aquela espontaneidade toda e logo se apaixonou pelo jornal, fazendo sua circulação disparar de 14 mil exemplares do número 1 para 94 mil no número 19, 117 mil do número 22 (com a entrevista de Leila Diniz cheia de asteriscos no lugar dos seus palavrões), 140 mil do número 23, até alcançar os 200 mil do número 27, conservando e se estabilizando nesses 200 mil por um bom tempo — este recorde é considerado ótimo até hoje. O Pasquim, considerado “alternativo”, “nanico”, superava as tiragens d’O Globo e da revista Veja, que à época possuíam tiragens bem menores, por incrível que pareça. Nascida quase um ano antes d’O Pasquim, Veja tirava a metade dos seus 200 mil exemplares.

A censura surgiu cerca do número 39, recrudesceu pra valer a partir de 1970 e no começo de novembro prendeu 11 dos componentes do jornal, uns soltos dias depois, a maioria nos últimos minutos do dia 31 de dezembro, na Praça Mauá, sem dinheiro nem pra pegar um ônibus.

Desfalcado de matérias, obviamente, saí, e não só eu, em busca dos nomes importantes de escritores e jornalistas para que escrevessem matérias que cobrissem os espaços faltantes. Entre muitos simpatizantes e admiradores d’O Pasquim, esteve presente o escritor, filósofo e dicionarista Antônio Houaiss. Chico Buarque, Jô Soares e tantos mais colaboraram heroica e generosamente com “a gripe” coletiva, nome metaforicamente inventado para simular a grossura injustificada. Procurei os artistas plásticos, pintores, desenhistas e gravadores que, em peso, doaram suas obras para serem impressas no jornal. Os leitores, já alertas e conscientes, lúcidos, entenderam o recado, sabendo o que esta “gripe” significava. A censura dentro da redação durou até o número 300, propondo então que o próprio O Pasquim se autocensurasse, coisa dificílima de ser feita, talvez pior que a outra. Assim seguiu o heroico O Pasquim.

Por um triz não fui presa também, ameaçada pelos censores do jornal e da Tribuna da Imprensa. Explico: trabalhava nos dois periódicos como jornalista profissional, escritora e tradutora, já com uma obra que ia se tornando gigantesca. Hoje integro mais de 1.500 livros, entre pessoais e coletivos, e além de inúmeros outros trabalhos, traduzi vários poemas de Pablo Neruda após sua morte. Esses poemas eram de amor e saíram publicados por três semanas. Na terceira semana o censor me avisou: “Só sai hoje. Não sairá mais, pois, errando o nome do poeta Neruda, este Arruda é comunista, a senhora não sabia? Se sair na próxima semana, a senhora será presa. Vai em cana!”. Na frente do troglodita segurei o riso, mas depois ri muito, embora fosse sério.

Aliás, a única vantagem da censura — se podemos dizer assim — foi trazer a poesia para as primeiras páginas dos jornais. Eu mesma tive vários poemas, de muitos versos, publicados nas primeiras páginas dos jornais dessa época, ocupando os espaços das matérias cortadas pela censura. E todo mundo sabe, sem poesia, sem humor e sem amor não se vive.

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