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O Pasquim

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João Carlos Rabello

Bicha!? Quem? Eu?

O ÚLTIMO JORNAL APREENDIDO PELA CENSURA
Quase em coma, O Pasquim ainda aprontou muito.

Por João Carlos Rabello

Tinha lá meus 16 pra 17 anos quando, numa das esquinas da Ipiranga e Avenida São João (e aqui não é licença poética), li letras garrafais estampadas num jornal, no ano da graça de 1971, que atiravam a pecha "TODO PAULISTA É BICHA".

Epa! Sou não, moço. Mas comprei o tal jornal chamado Pasquim e dessa forma foi apresentado ao humor do melhor jornal do mundo. Numa das charges, o personagem afetado, perdido numa dezena de viadutos, dizia que São Paulo era a cidade mais aVIADOtada do mundo. Abaixo, a assinatura de Ziraldo, o mesmo da revista Saci Pererê, que tinha marcado a minha infância. Apaixonei-me de vez, mesmo levando um tempo para descobrir uma entrelinha em letras miúdas no título da capa: "que não é homem".

Anos mais tarde, o próprio Tarso de Castro me contaria que o título era uma tentativa de conquistar o mercado paulista, onde O Pasquim ainda não ia tão bem. Deu certo.

Já morando no Rio e jornalista desde os 19 anos, via o Pasquim como admirador, tiete dos deuses da comunicação, olimpo a que pobres mortais como eu não tinham acesso. Afinal, trabalhava n’O Globo, em que alguns membros da redação ainda insistiam em cometer o sacrilégio de grafar nosocômio como sinônimo de hospital. Que pena dos leitores. Até que um dia...

Eu entrei no nosocômio (epa!)... Um dia entrava na Santa Casa de Misericórdia de Angra dos Reis, para uma reportagem da qual nem me lembro, e vi a cara conhecida do pernambucano João Francisco dos Santos na enfermaria masculina. "Você é Madame Satã, né?" A resposta veio literalmente chorosa e agarrando meu braço como quem pede socorro: "Enfim, alguém me reconheceu. Tô dizendo que sou famoso, mas ninguém me dá bola". Pediu para que chamasse Jaguar e Norma Bengell. Tentei ligar para o Pasquim. Era fim de tarde e Jaguar não estava, mas emplaquei uma nota no Globo e na manhã seguinte Jaguar me liga dizendo que estava procurando uma ambulância para transferir o paciente. Não precisou. Madame Satã já estava num quarto especial, tratado como autoridade, e teria uma superambulância, de graça, para remoção.

Norma Bengell ficou atarantada e, sem condições psicológicas, não foi. Jaguar e o advogado Machadão (me desculpe por não lembrar do nome inteiro) chegaram de ônibus na manhã da remoção. Claro que reuni um grupo de amantes do Pasquim para recepcioná-los e, enquanto organizavam a transferência, fomos todos para um restaurante para almoçar e beber (mais beber, é claro).

Hora da remoção, foto histórica, Madame Satã é colocado numa maca. Ao lado, vai Jaguar deitado noutro leito completamente bêbado. Machadão, no banco ao lado do motorista, entregou-se ao sono alcoólico antes da partida da ambulância. Pouco tempo depois, o mais famoso malandro da Lapa foi vencido pelo câncer no dia 12 de abril de 1976, no Hospital da Lagoa, no Rio. Deixou um legado para mim. Cinco anos depois de ser atraído pela manchete de Tarso de Castro, minha foto saía no Pasquim. Era a glória.

Escrevi algumas colaborações para o Pasquim e, mais de que isso, virei amigo de alguns membros da Patota. Jaguar e Ziraldo foram recepcionados como reis para uma palestra em Angra, recebendo a chave da cidade em formato de saca-rolhas. Desfilaram em carro aberto pelas ruas e um coral cantou peças clássicas. "Nem em Caratinga foi recebido assim", definiu Ziraldo. Se você acha que é pouca coisa, precisa lembrar que em 1976 ainda vivíamos numa ditadura militar, Angra era considerada área de segurança nacional e seu prefeito era um almirante nomeado para o cargo. Claro que todos passamos a ser vigiados com lupa.

Nos anos 1980, o Pasquim vivia seu declínio e Jaguar me pediu socorro. Pessoalmente somava uma carreira de sucessos como empresário de comunicação. Tanto que Ziraldo arriscou que, na virada do ano 2000, eu e Marius Fontana (que brilhava com sua churrascaria) seríamos milionários. Quanto ao Marius, não sei, mas em relação a mim, errou feio.

Virei dono do Pasquim sem ter noção do que fazer, embora achasse que sim. Tanto que Millôr me perguntou quais eram meus planos e dei uma boa enrolada na resposta.

Ainda deu pra fazer mais um pouco de história. Quando Paulo Maluf disse numa palestra na UFMG a frase infeliz "Estupra, mas não mata", bolei um pôster de página dupla em que Maluf era literalmente enrabado por um negão, enquanto no balão da fotomontagem o estuprado repetia a frase que marcou a eleição presidencial de 1989 junto com o "aquilo roxo" do Collor.

Por ordem do ministro da Justiça Saulo Ramos, O Pasquim seria apreendido pela Polícia Federal. Num tempo em que celular era raridade, cheguei às 18h num hotel tradicional em São Paulo. Tinha um jantar com o dono de uma agência de publicidade lá pelas 22h. Banho tomado, liguei a TV no Jornal Nacional quando Sérgio Chapelin anunciou a apreensão do Pasquim. Engasguei feio com a fumaça do cigarro que tragava. Tossindo, liguei para a redação do Pasquim e ninguém atendeu.

Recorri ao meu amigo Marcelo Beraba, na época editor de política na Folha de S.Paulo, que me passou as informações e me entrevistou. Liguei novamente para o Pasquim, no Rio, e aí alguém informou que Jaguar estava no Bar Luiz. Liguei e Jaguar, com a língua já enrolada pelo chope com steinhäger, nem disse alô. "Estou comemorando a invasão da Polícia Federal na redação." Então, caiu a ficha. E pela primeira vez gargalhei com Jaguar. A apreensão era mesmo um motivo para comemorar.

Mesmo assim, cancelei o jantar e peguei o último voo para o Rio. No dia seguinte, o advogado Nilo Batista preparou um mandado de segurança, já que a novíssima Constituição promulgada no ano anterior proibia a censura. Levei em mãos para Brasília e no mesmo dia, 21 de setembro, o ministro do STF, Carlos Velloso, concedia liminar proibindo em definitivo a apreensão de jornais, onde declarava "impõe-se seja concedida a liminar... porque é preferível errar em favor da liberdade do que contra esta, como bem acentuava, na Corte Suprema americana, o Juiz Frankfurter".
Protagonizar a última apreensão de um jornal no Brasil já valeu minha passagem pelo Pasquim.

Não paramos aí. Fomos ácidos com as medidas econômicas de Collor e, quando ele raspou poupanças e contas bancárias dos incautos, estampamos a manchete "VOTARAM NELLE, FODAM-SE".

Logo o velho Pasca deixaria de circular, por uma questão da macroeconomia. O jornal vivia basicamente do resultado das vendas em bancas. Com distribuição nacional, a primeira prestação de contas das vendas ocorria com 35 dias de, no máximo, 60% dos exemplares, ou reparte, no jargão das bancas. Só se encerrava a prestação de contas com 90 dias. Com a inflação batendo em até 80% ao mês, quando recebíamos, a grana das vendas em bancas tinha virado pó. Se colocássemos um valor de capa mais alto para compensar a desvalorização, encalharíamos.

Paramos de circular. Anos mais tarde, Ziraldo quis relançar o Pasquim e anunciou no Programa do Jô Soares. Eu estava vendo o programa e pensei com meus botões: "Esqueceu de combinar com os russos". Mas logo entramos num acordo e vendi o título a perder de vista. O novo Pasquim não teve o mesmo sucesso e fechou mais uma vez. Veio um certo alívio por ter a certeza de que não era a minha incompetência que me levara a ser o coveiro do Pasquim. Na verdade, a razão de existir do Pasquim (a ditadura) tinha deixado de existir e toda a imprensa havia bebido na fonte revolucionária da genialidade da patota, incorporando a linguagem irreverente e até a informalidade das entrevistas, que passaram a incluir um (risos) ou #&*#" para completar um palavrão.
O Pasquim já era história. Dei-lhe uma sobrevida divertida com o jeito de quem faz suas últimas estripulias antes de estrebuchar. Sou feliz e agradecido por isso.

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