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O Pasquim

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Nani

Não preciso dizer da importância que O Pasquim teve para o fim da ditadura, como arejou a engravatada imprensa e o sopro de esperança que ele foi para várias gerações. Sobre isso já escreveram e vão escrever muito mais e muito melhor do que eu. Além do combate ao regime militar, três campanhas começaram no jornal de humor: Anistia, Diretas Já e a divulgação da palavra “ecologia”.

Quando cheguei ao Rio de Janeiro, em 1973, a primeira pessoa que procurei foi o Henfil. Estive na casa dele no bairro Peixoto. Eu tinha 22 anos e ia começar a publicar em O Jornal. O Ziraldo, em passagem por Belo Horizonte, trouxe alguns desenhos meus e foi o Henfil que os publicou, dando-me uma página em que me apresentava com um desenho dele e um texto do Millôr. O Henfil me deu um conselho: “Fique na redação do Pasquim e cole no Jaguar”. Foi o que eu fiz. Ia para O Jornal de manhã e passava a tarde enchendo o saco do Jaguar. O Henfil me ajudou muito. Foi meu fiador no apartamento que aluguei em Botafogo.

Eu, novato, feliz e orgulhoso, envaidecido mesmo por estar no tão sonhado hebdomadário com meus mestres, tive um grande presente dias depois. Ziraldo reuniu na sala os colaboradores, os funcionários, dona Nelma, a cozinheira, o vigia e anunciou:

— Reuni todos aqui para vocês presenciarem o dia em que Nani conheceu Millôr Fernandes — e foi assim que fui apresentado ao Millôr.

No prefácio do livro 13 pragas do século XX, que ilustrei, o guru do Méier disse que tinha por mim (e o autor Jaab) uma relação fra-paternal. Meu desenho era ruim, mas todos gostavam das minhas ideias. Eu era bastante publicado. O Ziraldo, preocupado com a repressão, passava para as namoradas e esposas dos cartunistas o telefone de um advogado, para o caso de alguém sumir.

O jornal estava sob censura. O material para fazer o semanário era enviado para Brasília e, cansados de ver nossos originais sendo rabiscados com pilot, nós, desenhistas, mandávamos apenas esboços para a Censura Federal. O material voltava dias depois e, com o que sobrava, era feito o jornal. Vibrávamos quando passava algum desenho que considerávamos mais “porrada”. A paranoia dos censores era tanta que um cartum que fiz sobre Chapeuzinho Vermelho foi censurado por sua roupa ser... vermelha. Numa dica, um colaborador escreveu “uma próspera comuna mineira”. Foi censurada a palavra “comuna”. Outro texto comentava uma notícia de jornal que dizia haver urânio no Pão de Açúcar e que para procurá-lo precisava usar um “contador Geiger”. O artigo voltou rabiscado com uma observação do censor explicando que o “Geisel” não era contador, era general.

Além de ver de perto nossos ídolos, eu convivia com o que se chamava o novo humor do Pasquim: Reinaldo, Claudio Paiva, Hubert, Duayer, Guidacci, Hélio Bueno, Marco, Lapi, Luscar e muitos outros. Convivíamos ali também com os “picleiros”, que eram os que faziam frases de humor na seção “Picles”: Silvio Abreu, Luis Pimentel, Jaab, Aldu etc. Todos nós, jovens talentos, em busca da glória. O Pasquim ajudou muito a abrir o mercado para o cartum. Todo jornal do Brasil queria ter seu chargista. Eu publiquei até no Jornal do Selo, uma publicação para filatelistas. A gente fazia muito frila, dava pra pagar as contas e levar uma vida cultural que, apesar da censura, no Rio de Janeiro era efervescente.

Eu tinha cabelos naturalmente encaracolados e uma barba negra, por isso era sempre escalado para fazer o papel de mendigo nas fotonovelas. Digo que posso botar no meu currículo que já contracenei com Fernanda Montenegro e Marília Pera.

Além de aprender observando o mestre Jaguar, lá estava o Ivan Lessa, que gostava de horrorizar os mais jovens. Às vezes estávamos na sala ilustrando dicas ou fazendo charges e ele surgia fazendo ”bundão”. Ivan era do tipo nervosinho e sem paciência com a burrice. Uma história dele que ficou famosa foi quando uma estudante de jornalismo foi entrevistá-lo. A pobre da garota não tinha feito o dever de casa e fez algumas perguntas óbvias, mas depois ficou sem assunto. O dia estava nublado e ela suspirou e comentou: “Dia esquisito, né?”. O Ivan respondeu: “Bom pra comer pastel de queijo e dar a bunda”.

Era no tempo da redação na Rua Saint Roman, numa noite em que chovia pra cacete, quem nos visitava era o ator Stepan Nercessian. Ele e o Jaguar conversavam e tomavam uísque quando o vigia, seu Oscar, entrou apavorado dizendo que estava entrando água no quarto da empregada idosa que morava nos fundos da casa. Stepan correu até lá no meio da tempestade, escalou a janela e veio com a dona Marta nos braços. Ela sorria como uma mocinha de novela salva pelo galã.

O fechamento do jornal entrava madrugada adentro. Ficávamos ali ilustrando dicas e artigos e às vezes acompanhávamos o Jaguar no uísque nosso de cada dia. O Jaguar, além de grande cartunista, também é um comediante. Quando resolveu fazer vasectomia, escolheu o doutor Cesar Nahoum, que tinha sua clínica em Niterói. Jaguar morava no Leme. Ele foi pela primeira vez à clínica e disseram que ele tinha de fazer o espermograma. Tinha de entrar numa sala com revistas eróticas, filmes pornô — o que ele quisesse — e colocar o esperma no potinho. Jaguar tentou, mas não conseguiu. Disse para a enfermeira: “Sozinho eu só consigo em casa ouvindo a Voz do Brasil”. Disseram que ele podia levar o potinho, mas tinha que ser rápido para entregar o material para não prejudicar o exame. No dia seguinte, às 19h, em casa com o rádio ligado, ouviu: “Em Brasília... 19 horas”. Mandou ver. Desceu pra rua com o potinho na mão e pegou um táxi dizendo aflito ao motorista: “Vamos para Niterói que eles não podem morrer!”. O taxista se assustou e ele explicou que eram os espermatozoides que ele estava levando para o exame. Dias depois da cirurgia, Jaguar, que se vangloriava de ter cara de gringo e nunca ter sido assaltado, foi abordado na praia do Leme por dois ladrões. Cutucaram a barriga dele com o cano do revólver. Jaguar disse: “Cuidado aí que eu fiz operação para não ter neném”. Os bandidos acharam que era zoação. Jaguar explicou a cirurgia para eles, que vasectomia era coisa de macho, coisa e tal. Os ladrões ficaram tão impressionados que deram parabéns a ele e iam saindo quando o Jaguar perguntou: “Ei, e o assalto?”.

Publiquei no Pasquim de 1972 até os últimos números do jornal. Jaguar, que ainda insistia em botar o semanário na rua, lutou até o fim com seu exército de Brancaleone (eu, Amorim, Loredano e uns gatos pingados) num prédio da Rua da Carioca.

Termino com este fato, que, dizem, aconteceu quando a turma do Pasquim foi presa. No quartel onde ficaram detidos, um tenente arrogante disse para o Flávio Rangel: “Você acha que só vocês são intelectuais? Pois fique sabendo que eu já li toda a obra de Dostoiévski, sei tudo sobre o escritor russo”. Flávio Rangel então perguntou pro militar: “Se sabe, sabe que ele foi preso e escreveu Recordações da Casa dos Mortos.

Então me diga o nome do carcereiro de Dostoiévski”. O tenente disse que não sabia. E ele respondeu: “Pois é, a história não registra o nome do carcereiro de Dostoiévski, como não registrará o nome de quem prendeu Flávio Rangel e a turma do Pasquim”.

É isso. A história registra os nomes dos que fizeram o Pasquim. Quem se interessa por seus carcereiros e censores?

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