BNDigital

O Pasquim

< Voltar para Dossiês

Tarso de Castro

MORTE DE HUGO BIDET
POR TARSO DE CASTRO


MORREU HUGO BIDET
RIO-SUCURSAL - NR 32 - MORREU ONTEM (20), NO HOSPITAL DO INPS DE IPANEMA, O JORNALISTA E CINEASTA HUGO BIDET. FUNDADOR DA BANDA DE IPANEMA, HUGO BIDET ESTAVA INTERNADO DESDE A SEMANA PASSADA, QUANDO TENTOU O SUICIDIO COM UM TIRO NA BOCA. SEU CORPO FOI TRANSFERIDO PARA O INSTITUTO MÉDICO LEGAL E ATEH O FINAL DA NOITE DE ONTEM SEUS FAMILIARES AINDA NAO SABIAM A HORA E O LOCAL DO ENTERRO, QUE ESTAVA DEPENDENDO DA LIBERACAO DO CORPO PELO IML. FINAL 20-04-77

NA BOCA E NO CORAÇÃO
Morávamos na Rua Jangadeiros, ali no final, perto do hospital Ipanema, justo onde ainda visitaríamos os Últimos dias de Paulo Pontes. Morávamos, não: eu é que pegava carona na casa de Hugo Bidet. Eu e também o Paulo César Peréio. E o Claudio Marzo, que mais usava a casa nos dias em que se desentendia com a namorada. Era um apartamento em "U", decorado mais pelos quadros de Hugo.

Tinha uma bela pequena mesa de mármore, que um dia roubamos de um botequim de Praia, que dava só para quatro pessoas. Mas lá, naquela mesa, havia sempre uma farta amizade que nos reunia no dia a dia. Assim sendo, lá descobrimos Hugo Carvana, Martha Alencar, Roniquito, Ivan, tanta gente, meu Deus.,

Vocês podem ficar com inveja, que não nos importa. O fato é que éramos uma espécie de festa em torno de nós mesmos, viciados, bem viciados, tínhamos como preocupação máxima a busca da alegria. Eu diria que fomos, em nossa geração, os precursores da decadência. Amada decadência, bela decadência. Um dia escrevi, no "Pasquim", ao sair da prisão:
— Sempre que estou na pior fico pensando: esse Hugo é meu.

Não era. Era de toda uma equipe. Tinha mania de tudo. De escrever. De pintar, De ser ator. De estar permanentemente vivo, Êta bicho sofrido, bebido, ardido. Quando lhe morreu o pai, antes que disso soubéssemos, eis que o Hugo chegou no final da tarde trazido no colo por um velho Mercedes-Benz.

— Quanto custou esse carro, Hugo?

— Um pai.

E assim tinha ele esse jeito de comunicar suas tragédias. Ah, sim, naquele tempo ele tinha aquela namorada que andava sempre de preto e que volta e meia ficava enchendo. Até que o Hugo pôs ela pra fora. Mas com tanto carinho que ela voltava sempre. Antes que esqueça de contar essa agora estranha possibilidade de dizer uma coisa engraçada: às vezes o acordávamos no meio da noite para fazê-lo sair do quarto (cama de casal), para a poltrona-sofá da casa.

Quero dizer que era nessa poltrona-sofá que eu dormia, como resignado hóspede. Ou seja: eu dormia em "L", pois a junção, devido ao tamanho do apartamento, se situava no canto da mini-sala. De onde, um dia pela manhã, ouvi a triste súplica de Hugo:

— Tarso, Tarso — suplicava ele, em sua voz grave. — Pelo amor de Deus, uma coisa pra beber.

Ressaca da braba, pode crer. Quanto a mim, ainda tonto, saltei no rumo da geladeira, no meio sem jeito de ver, pus no copo aquela bela coisa cor-de-laranjada, geladinha, gostosa, dei para. Hugo beber, coisa que ele tentou fazer de um gole só: o cara ficou aos uivos eu lhe aplicara uma insuportável dose de "Lanjal" puro. Ele ficou uma fera, mais ou menos. Aliás, menos. Tanto que à tarde, no Jangadeiros, nos divertíamos com essa nova história-folclore pra contar.

No Jangadeiros comíamos "Risoto à Iugoslávia", o que quer dizer: arroz misturado com os restos de carne de ante-ontem. Custava cinco cruzeiros. Nós pendurávamos. Pendurávamos, até que nos cortaram o crédito. Aí quem nos salvava era o garçon Cabeça. Que hoje deve estar lá, ao lado do caixão, chorando.

Não há mais nada a dizer. Estou triste, apenas isto, penso que Hugo, se estivesse aqui, faria uma brincadeira:

— Fui no "pacote", Tarso.

(TARSO DE CASTRO - FOLHA DE S.PAULO - ILUSTRADA - 21/04/1977)


Parceiros