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O Pasquim

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Amorim

Aquele cheiro de mofo e jornal velho, meu habitat

Era finalzinho de ano e ia pras bancas a última edição do Pasquim em 1983. Edição entupida de cartuns de Natal, matérias esculachando o ano que passou, a inevitável entrevista, fotonovela e previsões nada animadoras para o ano novo que brilhava em raios fúlgidos. Era a edição nº 756 e custava a módica quantia de Cr$ 400,00. Essa edição veio com Jaguar, Henfil, Nássara, Nani, Reinaldo e a inacreditável página de Gabriel García Márquez, entre outros. Nem isso garantia a venda em banca.

Saía também a famosíssima seção de cartas, garantia única de que alguém ainda lia o combalido Pasquim, ferido e cansado. Hoje em dia chamaríamos isso de feedback (ou fidibéqui, em português castiço). Nessa seção de cartas o Jaguar inventou um concurso meia-boca em que os aspirantes a Ziraldo poderiam cometer e enviar seus cartuns, inclusive este que vos digita. Nosso primeiro cartum publicado saiu espremido, socado em uma coluna. O jornal saía às quintas-feiras e ao comprá-lo no jornaleiro valeu mais que uma Copa do Mundo (tá bom, nem tanto), com direito à volta olímpica em torno da árvore ao lado da banca. Na época, era como se tivesse saído em um outdoor.

Cabe aqui uma explicação: para quem nunca ouviu falar, o Pasquim era um site analógico, de papel, que o internauta necessariamente deveria atravessar a rua para acessar, num jornaleiro próximo. Não sabe o que é jornaleiro? Dá uma googada.

Então... a ressaca daquele primeiro cartum durou exatos 14 minutos. Animado pela façanha de ter meu primeiro cartum publicado pelo Pasquim, passei o fim de semana seguinte bolando uma tonelada de cartuns podres — afinal, o mais difícil havia sido feito. Aí lembrei que estávamos no final de ano. Não tinha jeito. Outra tonelada de cartuns para sobreviver ao Natal e Ano-Novo. Meados de janeiro de 1984, peguei a maçaroca e passei antes no xerox (outra googada, por favor) rumo à tal da Rua da Carioca, 59. Desde o começo guardava meus originais, mesmo sem saber se algum dia eles teriam serventia. Simplesmente entregava as cópias. (Como, caro leitor? Sim. Ainda tenho os originais dessa época.) Do bairro da Tijuca embarcava num chacoalhante 217 que me desovava no ponto final, exatamente na Rua da Carioca. O prédio não impressionava muito — “deve ser um endereço temporário, vacas magras, talvez”. Aquele elevador, sim, com a porta pantográfica automática (você puxava com a mão e ela automaticamente fechava), era uma coisa a ser estudada. Elevador esse com o qual convivi durante anos, e que foi muito importante para manter minha saúde. Como vivia quebrado e a redação era no terceiro andar, não tinha outro jeito. Tome escada. Mas a coisa melhorou muito depois que o Jaguar passou a usar a sala do terceiro andar (ele sempre se cansou mais rápido) e fomos lá pro quinto andar. Uma formosura de paisagem, se a janela abrisse. Teve até incidente diplomático ocorrido dentro do referido elevador. O responsável pela circulação do jornal, o gigantesco Luis Rosa, e eu pegamos a coisa que, previsivelmente, parou entre dois andares. Ato contínuo, dei uns pulos de leve pra ver se o calhambeque pegava no tranco. Tranco levei eu do falecido Luisão, por tentar matar ambos. Bons tempos...

Voltando à maçaroca de cartuns que religiosamente entregava na redação. Tecnicamente jamais deixei nada na redação do Pasquim, pois, definitivamente, aquilo lá não poderia ser chamado de redação. Depósito, almoxarife, mocó, muquifo, tudo bem. Primeira vez que entrei lá (ainda no terceiro andar), umas mesas sobre as outras, laudas pelo chão, outras pregadas na parede, um paste-up com as janelinhas recortadas (depois eu explico), foi o que deu pra guardar. E aquele cheiro inenarrável de mofo e jornal velho. Definitivamente estava no meu habitat natural. Os únicos rostos reconhecíveis no meio daquele ritual satânico eram os do Jaguar e do Rick Goodwin, que conhecera semanas antes ainda na Saint Roman, quando da minha primeira tentativa de publicar no jornal. Lá quem me recebeu foi o Reinaldo, editor de cartuns. Enquanto tentava ardilosamente engambelar o Reinaldo, lembro que o Rick passou com dois desenhos do Ziraldo na mão que seriam publicados naquela edição. De relance deu pra ver uma tremenda caricatura do Mário Andreazza, então ministro do Interior. A vontade na hora era de deixar o Reinaldo falando sozinho, pegar aquele desenho e meter o pé na estrada. Mas eu fiquei...

De cara, o Reinaldo foi cortando: tá fraco, estuda o que o pessoal anda publicando, uma merda (não falou, mas pensou). Desci a ladeira da Saint Roman lamentando que na época o Estado Islâmico não existisse. Com o tempo vi que ele estava certíssimo.

Voltando... deixei a maçaroca de cartuns numa daquelas mesas (eu acho que era mesa) e fui embora. Era o seguinte: o Pasquim fechava na terça-feira à noite, rodava na quarta e ia pra banca na quinta, numa rotina que rolou até o final. Toda quinta de manhã lá ia eu, garboso, até a banca e voltava puto quando não publicavam minhas abobrinhas. O ódio aos infiéis durava uma sexta-feira e um sábado. Domingo, cabeça arejada, lá ia eu tentar de novo. Fiquei nisso durante meses.

Com o tempo foi se criando uma regularidade meio incerta, nada que desse acomodação. Tempo de Tancredo, Sarney e companhia. Em meados de 1985 sai o Haroldo Zager, então responsável pela redação, e entra Cesar Tartaglia. Com isso passei também a ilustrar matérias, além das charges. Nessa época comecei a pescar uns frilas por pura ganância, já que o Pasquim, esse colosso, supria tudo. Num desses frilas o cidadão me perguntou se também fazia diagramação. Como um hábito que levei pela vida toda, disse na lata que “claaaaaro, pode deixar comigo que eu resolvo”. Em pânico, mas sereno, procurei o lendário Toninho, diagramador do Pasquim há anos. Expliquei a situação: “Toninho, me salva! Sei porra nenhuma de diagramação!!”

Não só salvou como ainda o guardo como amigo.

A vantagem que tive de frequentar, ainda que semanalmente, o jornal foi a de ter conhecido dezenas de outros cartunistas pessoalmente. Coisa que hoje é quase impossível fora das curtidinhas dos feicebuques da vida. Era comum parar naqueles botecos da Rua da Carioca esperando pintar uma ilustração de última hora. Logicamente que, quando voltávamos, ninguém mais tinha condição de fechar nada. Enfim... Na edição 864, de janeiro de 1986, rolou nossa primeira capa do Pasquim. Se tivesse acontecido alguns meses antes, certamente teria havido outra volta olímpica em torno da árvore. Dessa vez, não. Já estava familiarizado com o jornal, de ver a assinatura impressa. O que era novidade virou rotina.

De tempos em tempos voltava o encalhe do distribuidor, cada vez maior. Até que tentaram inovar, mas não funcionou muito. Vieram as edições regionais do Pasquim. São Paulo e Porto Alegre republicavam material do Rio e complementavam com produção local. Ficavam parecendo três Frankensteins perambulando por aí, sem um alinhamento mínimo. Eram três jornais diferentes sob o mesmo título. Nenhum verdadeiramente Pasquim. Sentíamos que os dias de Pasquim já não seriam os mesmos. E o que é pior, já estávamos completamente contaminados com essa coisa de humor.

Em 1986 passamos a trabalhar também como diagramadores/arte-finalistas (não pergunte, essa profissão não existe mais), indo até final de 1990, por aí. O tempo de calcular as batidas de uma lauda, régua de paica e paste-up. Paste-up, pra quem escapou dessa tranqueira, era uma cartolina com uma grade quadriculada, com cada quadradinho medindo 4,23 mm, onde se colava, com cola de sapateiro ou cera, umas tiras de texto, títulos, produzidos numa maquiavélica IBM Composer. Com vasta tipologia (Times, Franklin, Bodoni, Garamond e só). Fotos e cartuns iam pra gráfica com o tamanho a que deveriam ser reduzidos e aplicados nas páginas fotolitadas. Tudo muito insustentável, o que nos ajudava sobremaneira a atrasar o serviço. Quando alguma coisa saía trocada na edição, foto em página errada, título truncado, a culpa era sempre do pessoal da gráfica. Fica aqui minha salva de palmas para esses mártires.

Em 1987 a coisa apertou ainda mais. Com a venda em banca despencada, sem rumo, inflação acumulada de 250% ao ano, o dólar disparado (cabe lembrar que o papel jornal é cotado nessa moeda), o Jaguar inventou uma entrevista com o Brizola (edição 940, de 16 de julho de 1987). Misteriosamente os cartuns citando Brizola desapareceram (já não eram muitos). Só uma caricatura do Lula Palomanes e só. Começou a pingar um anúncio aqui e ali, um tijolaço, tão discretos que mal davam pra cobrir a impressão. Mas nada de cartuns sobre o Brizola ou o PDT. Não era censura direta. Simplesmente o pessoal estava acompanhando os fatos e fechava os olhos. Nessa época ele já não era o governador, mas a prefeitura do Rio continuava nas mãos do PDT. Aliás, o problema recorrente do Pasquim sempre foram os salvadores da pátria. Mas isso é outra história.

Veio a eleição direta para presidente da República em 1989 e o jornal entrou bem devagar na onda. Lembro que até houve uma série (incompleta) de entrevistas com os presidenciáveis, que nem de longe lembrava a repercussão das antigas entrevistas. Outros tempos. Mas o Collor e o Maluf continuavam a receber marcação especial dos cartunistas em meio a uma grande imprensa com Síndrome de Hebe Camargo — tudo muito gracinha. Já naquela época prenunciava-se o fim da imprensa, não por culpa da internet, mas por seus próprios erros. E os cartunistas continuavam atirando.

Na edição nº 1024, de 7 de setembro de 1989, o então candidato Maluf, aquele do “estupra mas não mata”, ganhou uma página central, digamos assim, não muito higiênica. O jornal foi pra banca e acabou sendo apreendido. Pra variar, a repercussão ficou longe do esperado.

Collor acabou levando a presidência, e o velho Pasquim de guerra deu o mote na edição nº 1032, de 12 de janeiro de 1990. “Votaram nelle? Fodam-se!”. Não deu outra. Cabe aqui registrar o que aconteceu à época. Desde o primeiro panfleto jogado no chão até o impeachment, o Pasquim semanalmente despejava quilos de cartuns contra o candidato vitorioso. Após o resultado das urnas, os eleitores do Collor começaram uma onda de “deixa o homem trabalhar, vocês estão torcendo contra”... isso em 1990, sem internet nem redes sociais. Não é à toa que Ivan Lessa dizia: “A cada 15 anos, o Brasil esquece os últimos 15 anos”.

Continuei no jornal até a edição nº 1055, de 13 de dezembro de 1990. Hoje, revendo as edições para este texto, percebo que saí no mesmo mês em que publiquei meu primeiro cartum na vida, sete anos depois. Deve ter algum significado. Se tivesse consultado alguma numeróloga na época, saberia. Significaria que perdi o dinheiro da consulta. Quase três décadas se passaram desde então, mas até que não pesam tanto assim. O que chateia mesmo são os jornais que eu guardava semanalmente, branquinhos, branquinhos. Hoje estão todos amarelados e manchados. Os que não estão sujos nem empoeirados estão guardados na memória, lugar sabidamente seguro e protegido da ação do tempo.

Amorim
Setembro de 2019

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