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O Pasquim

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Haroldo Zager

O PASQUIM ERA ASSIM...
MEMÓRIAS DA REDAÇÃO


Não era bem uma redação. Quarto, sala, banheiro e cozinha em 25 m2. Centro do Rio, pertinho da Lapa. O prédio, daqueles de fachada fininha, está lá até hoje, Rua do Resende, 100. O edifício era da Distribuidora de Imprensa — grande responsável pelo vertiginoso sucesso de vendas d’O Pasquim. Distribuía as publicações da Bloch Editores (a maior potência editorial na época, dona de dezenas de revistas — Manchete, Pais & Filhos, Ele & Ela, Fatos & Fotos, Sétimo Céu — e mais tarde, da TV Manchete), e a reboque levava as edições do hebdomadário do Oiapoque ao Chuí.

De dia, seu Murilo e eu. Murilo Reis era o sócio capitalista, “laranja” de Altair de Souza — poderoso empresário no ramo de distribuição de jornais e revista, dono da Distribuidora de Imprensa. Eram tempos em que as bancas de jornal se espalhavam pelo Brasil. A televisão não imperava ainda, e a internet era coisa de ficção científica nas páginas de quadrinhos.

Com o baixo preço do papel imprensa e tiragem de 20 mil exemplares, uma venda pequena já proporcionava relativo lucro. O jornal era vendido a NCr$ 0,50 e gastava NCr$ 0,08 de papel. Não é nada, não é nada, poderiam aumentar um pouco suas rendas mensais e melhorar seus meios de sobrevivência. O salário médio de redator estava na faixa de NCr$ 900,00.

Tarso de Castro, Jaguar (Sergio Jaguaribe) e Sérgio Cabral formaram a sociedade com Murilo. O desenhista Claudius Ceccon e o designer Carlos Prósperi fizeram o projeto gráfico do novo jornal. Claudius colaborou publicando seus trabalhos até ir para o exterior, em novembro daquele ano — 1969. O Pasquim nascera no dia 26 de junho.

O que ninguém esperava foi o estrondoso sucesso do pequeno hebdomadário. Em apenas 32 semanas, alcançou a tiragem de 225 mil exemplares — foram vendidos mais de 5 milhões de jornais. O que seria relativo lucro virou uma cornucópia que rendeu, em 40 semanas, só de venda em bancas, sem contar a receita de publicidade, algo em torno de NCr$ 1.016.600,00, ou mais de 250 mil dólares, de lucro bruto. Com essa dinheirama, equivalente a 6.517 salários mínimos, dava para comprar 58 carros de corrida Puma. O mesmo carro que, dez anos depois, explodiria com dois militares, quando um deles manipulava a bomba que seria detonada no Riocentro, Rio de Janeiro, em atentado terrorista da direita, no show em comemoração ao 1º de Maio.

Outra receita extraordinária vinha dos anúncios. Shell, Ducal, Varig, Vasp, Bacardi, Skol, Brahma e outros grandes do mercado. Motivo lógico. As tiragens das duas maiores revistas dessa época, Veja e Manchete, somadas, não alcançavam a tiragem d’O Pasquim.

E O Pasquim mudou também a linguagem publicitária. A patota criou a Cosa Nostra, oferecendo às agências de publicidade e empresas seu humor para atingir o público consumidor. Mais sucesso. Na edição nº 27, de março de 1970, das 36 páginas, 11 eram de anúncios, a maioria criada pelos humoristas e todas na linguagem pasquiniana:

“Isto é um anúncio, mas vale a pena ler”.

“Não seja bichona, compre calças...”.

“Ele é gaiato mas é Jeep”.

“Quem não é bicha pega de Dom Quixote”.

“Quem compra no Ponto Frio Bonzão pega sempre as melhores mulheres”.

“Não seja bicha!!! Voe n’Ela”.

“Case logo... Antes que a nobre instituição acabe!”.

“O coador é um saco”.

“O homem usa cueca Alert, ou não usa nada”.

O humor foi definitivamente incorporado à linguagem publicitária.

Aos 16 anos de idade, O Pasquim foi como atravessar um portal, outra dimensão. Da minha vidinha alienada, cheia de não faça isso ou aquilo, lá estava eu no meio das cabeças mais privilegiadas do jornalismo e do humor carioca. Todos no ápice, aos 30 e poucos anos, cheios de testosterona criativa. Rompendo convenções e colocando os reis nus. Mas o custo foi alto.

Entrava no jornal às 14h, fazia as tarefas de apoio administrativo indicadas pelo seu Murilo. Às 19h, vindos de outras redações, Tarso, Cabral, Jaguar começavam chegar com matérias, para diagramar as páginas que seriam levadas para as oficinas gráficas do jornal Correio da Manhã, onde O Pasquim era impresso. O processo gráfico era conhecido como impressão “a quente” por usar chumbo derretido — composição por linotipos e impressão tipográfica com as chamadas “telhas” de chumbo. A imagem da caldeira com o chumbo borbulhante descendo por uma canaleta, o ar impregnado de antimônio liberado pelo chumbo, temperatura asfixiante, ficou marcada na minha memória, parecia a sucursal do inferno. Só faltou aparecer o cara do tridente. Eu ficava até as 22h. Servindo pouco café, muito uísque e ouvindo coisas nunca antes escutadas. Querendo aprender tudo o que aquele mundo novo desnudava.


O buraco era mais embaixo

Muitos já tentaram explicar o fenômeno editorial que O Pasquim representou: resistência à ditadura, válvula de escape do regime militar, etc. e tal. Talvez sim, talvez não. Os jornais e revistas exibiam manchetes sobre atos terroristas no Brasil, Guerra Fria entre norte-americanos e russos, ameaça de conflito atômico entre as superpotências. Medo generalizado de não haver futuro.

O Pasquim trouxe humor e deboche. As piadas desanuviavam o espírito. Nesses primeiros meses de circulação, não tinha nenhuma linha criticando governo ou governantes. O escracho era dirigido aos apoiadores do regime, à classe média conservadoríssima, aos caretas de plantão. Esses é que incentivaram a perda da liberdade de expressão do jornal, com a instituição da censura prévia a partir da edição nº 40. O cerceamento ditou a linha editorial de resistência que ele passou a aplicar após o fim da censura prévia — que durou cinco longos anos —, na edição nº 300, em março de 1975.

Todas as publicações periódicas, serviços de radiodifusão e serviços noticiosos, por lei (Lei nº 5.250/1967, assinada pelo marechal Humberto de Alencar Castello Branco, o primeiro presidente do Brasil após o golpe militar, do qual foi um dos articuladores), deveriam registrar o seu principal responsável, que responderia penalmente. Era a famigerada Lei de Imprensa, que prendeu muitos jornalistas pelos anos afora, revogada pelo STF apenas em 2009.

Seu Murilo foi o primeiro diretor responsável d’O Pasquim, ou seja, estava sentado no pepino, e grosso. Divergia nervosamente da ousada picardia em cada edição, mas sempre após estar impressa. Sua função de sócio era administrativa, olho no caixa — que crescia muito a cada semana. Motivo de sua permanência na sociedade, até começar a censura prévia, em março de 1970. Jogou a toalha e saiu da sociedade.

Tarso de Castro virou o diretor responsável. Gaúcho. Chovinista. Depois que a grana começou a entrar, virou um extravagante. Antes, chegou a morar no sofá da sala do ator Hugo Bidet, um excêntrico de Ipanema que morava em um quarto e sala e virou personagem do Jaguar nas tirinhas Os Chopnics: o Capitão Ipanema. Tarso comprou um Puma, o carro esporte do momento, contratou um motorista, o Calazans. Bolso recheado, noite adentro, rodava bares e boates da cidade. Chegou a fechar só pros amigos, em várias ocasiões, a boate Flag, em Copacabana. A Flag era o point.

Moreno, alto e sensual, vestia-se como um latin lover. Botinhas de cano curto, calça de veludo, camisa aberta no peito ostentando vários cordões. Falava bem alto, autoritário, entremeando com risadas e gestos largos. Figura, pode-se dizer, histriônica. Totalmente porra-louca.

Mulher bonita, solta na noite? Cantada à vista.

— Você tem olhos lindos — falava, se chegando. Tinha certeza de seu sucesso, eram várias investidas por noite.

Jaguar e Sérgio Cabral, com filhos para alimentar, foram mais devagar.

Jaguar, funcionário de carreira do Banco do Brasil — operava telex e dividia a sala com Sérgio Porto —, por meio de permuta de anúncios, adquiriu um Jeep amarelo, de fibra de vidro, e batizou de Aquilante — o pangaré amarelado e atabalhoado que acompanhava o cavaleiro Brancaleone no filme italiano O Incrível Exército de Brancaleone. Com a grana extra, alugou uma casa na beira da Praia Grande, em Arraial do Cabo, mas não sabia dirigir. Por isso, sempre convidava alguém que soubesse para passar o fim de semana. Foi o único que ficou até o final d’O Pasquim. Figura. Sempre de jeans e camisa social de mangas curtas, no bolso da camisa ia colecionando papéis e anotações. Sacava a maçaroca:

— Porra, cadê o número do telefone do Carlos Drummond?

Sérgio teve o sonho da casa própria. Morava em uma casa alugada no Engenho Novo. Deu entrada em um apartamento em condomínio na Barra da Tijuca, ainda na planta. Mas o tempo de bonança foi curto, e não conseguiu pagar as prestações intermediárias quando as vendas começaram a cair, por conta das apreensões do jornal, e anunciantes preferiram não se comprometer, parando de veicular. A barra de grana ficou tão pesada que poucos meses depois teve de se mudar para São Paulo e trabalhar na Editora Abril, ajudado por amigos — tinha uma legião. Bom caráter, sua casa vivia aberta, bastava chegar, a porta sempre escancarada. Músicos, produtores culturais, jornalistas, intelectuais iam ouvir as histórias da MPB, pesquisar em uma das mais completas coleções de discos do Rio ou simplesmente bebericar e curtir um dos melhores bons de papos d’então.

Que país é esse?

Os dois primeiros meses de trabalho foram me mostrando uma realidade diferente da que tinha vivido até ali. Durante a noite, quando eles chegavam, eu arregalava os ouvidos e abria os olhos para as conversas. Política, militares, censura nos jornais, nas peças teatrais, artistas exilados, mulheres, trepadas, gargalhadas etílicas. Que Brasil é esse ao qual eu não havia sido apresentado ainda?

Na redação, acompanhando o fechamento de cada edição, comecei a aprender como se diagramavam as páginas do jornal. Almeida, o diagramador, morador de Bonsucesso, foi me ensinando. O maior boa-praça. Quando soube que eu havia largado os treinos de basquete no Vasco da Gama, quis que fosse treinar no Bonsucesso. Até tentei, faltou fôlego para estudar, trabalhar e ainda jogar basquete. Ele foi o responsável pelo meu gosto por artes gráficas. Aprendi como fazer jornal. Quando ia levar as páginas diagramadas para a oficina do Correio da Manhã, ficava por lá vendo os linotipos(*) compondo os textos, as ilustrações virando clichês. Fascinava a efervescência da gráfica, o barulho das dezenas de linotipos funcionando.

— Garoto, fica longe do linotipo. Cuidado que pode voar uma chumbada no seu rosto —, aconselhou um linotipista apontando pro companheiro na máquina ao lado, que tinha apenas um olho; o outro recebera a tal chumbada.

(*)Linotipo é uma máquina de composição de texto e fundição em linhas de chumbo. O operador trabalha sentado, digitando em um teclado em cima do colo. A cada linha composta, o linotipista aciona uma alavanca e libera o chumbo derretido para fundir a linha. Um pequeno desajuste podia espirrar um jato de chumbo derretido.

Impressionava a velocidade da aceitação do jornal. Já no primeiro mês de existência chegavam cartas de Norte a Sul do Brasil e sua publicação ocupava uma página inteira. Eram leitores elogiando, mandando contos, poesias, fotos e o escambau. As respostas redigidas pelo Cabral eram bem-humoradas e com muita intimidade. Sentiram o jornal como seu.

Os entrevistados iam de Simonal a Vinicius de Moraes; de Ibrahim Sued a Di Cavalcanti; de Denner a Alceu Amoroso Lima; de Elis Regina a Maysa; de Danuza Leão a Florinda Bolkan. Inovou as entrevistas na imprensa brasileira. Totalmente por acaso: a entrevista da primeira edição, com Ibrahim Sued, não ficou editada a tempo e Jaguar enviou da maneira como tirou do gravador cassete. Perguntas, respostas e comentários entre parênteses sobre o clima do papo. Colou.

Famosos do mundo artístico e intelectual — outros nem tanto, mas que ficaram depois de suas entrevistas — foram frequentando as páginas. Chacrinha, Garrincha e Elza Soares, Anselmo Duarte, Jô Soares, Gal Costa, Martinho da Vila, Erasmo Carlos, Paulo José e Dina Sfat, Sérgio Bernardes, Grande Otelo, Dom Helder Câmara, Armando Marques, Agildo Ribeiro, Tostão, Paulo Mendes Campos, Baden Powell. Em comum, o papo descontraído e inteligente, recheado de humor e picardia.

O Pasquim e o ratinho Sig iam a todo vapor. Tiragem dobrando a cada semana. Grandes anunciantes aparecendo. O corretor de anúncios era o Bule, apelido carinhoso para o redondo cervejeiro, amigo do Jaguar das rodas de Ipanema. Ele nem saía procurando os anunciantes. As agências de publicidade ligavam, quase mendigando pelo escasso espaço reservado para anúncios. O jornal tinha poucas páginas, apenas 16. E lá ia eu pegar a arte do anúncio na agência. O troco do táxi era meu. (riso)

Quatro meses depois, já atingindo a tiragem de 100 mil exemplares semanais, entrou um diretor de publicidade chamado José Grossi. Chegou pilotando um Alfa Romeo.

— Haroldinho — o diminutivo pegou —, de zero a cem em dez segundos — gabava-se, acelerando na reta da praia do Flamengo.

E o Bule foi ultrapassado.

Grossi ganhou a confiança da diretoria. Todos eram artistas, boêmios, sem noção de administração. Alguns meses depois, já sem seu Murilo, para não terem que ir assinar cheques, deixavam talões assinados com ele. Bem loucos.

Bota os vagabundos na rua.

Veio a entrevista com Leila Diniz, na edição nº 22. A tiragem foi de 117 mil exemplares. Recheada de asteriscos substituindo os palavrões saídos da sua linda boca. A professorinha nascida em Niterói era a queridinha das noveleiras, em cinco anos havia participado de 11 novelas e dez filmes. Suas revelações chocaram geral. Fidelidade não fazia parte do dicionário dela. Sexo livre. Esgotou nas bancas, catapultando a próxima edição para 181 mil exemplares. Não pergunte o porquê do um.

E a famosa lei de Murphy? Um mês depois da antológica Leila, o entrevistado foi Juca Chaves, um compositor de sátiras, nascido Jurandyr Czaczkes Chaves. Ele se apresentava num circo montado no corte de Cantagalo, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Era crítico do regime militar, teve muitas músicas censuradas e chegou a se exilar em Portugal. Uma declaração nesta entrevista mudou radicalmente o destino do jornal. Perguntado sobre quem era o maior antissemita do Brasil, sapecou: Oscar Bloch.

E quem era Oscar Bloch? O dono da Bloch Editores. Judeu. Deu merda! Nós sifu.

Apoplético de nascença, Bloch ligou para Altair de Souza, o dono da Distribuidora de Imprensa, e deu o ultimato:

— Altair, coloca esses vagabundos na rua! Ou a Bloch ou eles!

O primeiro revés. O Pasquim não tinha mais distribuidora. Não tinha mais redação. Coloca tudo em caixas, fomos despejados. Ainda bem que era pouca coisa para carregar, coube em dois táxis. Seu Murilo correu e alugou uma casa: Rua Clarisse Índio do Brasil, 32 — onde seria a redação e meca de cartunistas, caricaturistas, leitores, intelectuais e jornalistas durante os próximos dois anos e meio.

Do apertado apartamento da Rua do Resende, ganhamos uma casa de dois andares. O Pasquim Empresa Jornalística Ltda. finalmente começou a virar empresa. O departamento comercial agora tinha diretor, secretária e contatos. A administração também cresceu. No andar de baixo morava o caseiro, seu Oscar, e sua mulher, dona Marta — cozinheira de mão cheia, fazia um sarapatel duca —; a garagem virou departamento de arte; dois quartos abrigaram a contabilidade e o arquivo de fotos. Em cima, uma ampla sala com um janelão para a rua; um corredor dava acesso a três quartos; Tarso de Castro pegou o dos fundos, o Comercial ocupou outro: o terceiro virou redação com Jaguar, Fortuna e quem mais aparecesse. Eu aparecia sempre, queria aprender tudo, me oferecia para tudo. Fortuna me chamava de Mãos de Fada. Eu tinha pouca habilidade manual: ia lavar os pincéis e entornava a tinta nanquim. Mas melhorei muito. (riso)

A casa não existe mais. O metrô levou.

E como resolver a distribuição do jornal para as bancas? Os quatro sócios foram para São Paulo e paramos nas garras da Distribuidora Abril. Não foi o melhor dos presentes de Natal. A tiragem, antes crescendo vertiginosamente, chegou a 225 mil exemplares e estacionou durante quatro meses. Depois começou a cair. Afinal, ser distribuído por concorrente não podia dar certo mesmo. A Editora Abril, de olho no público jovem, logo lançou a POP, distribuindo brindes em cada edição — insossa, a revista durou pouco.

Coloca o cabresto neles.

Lá fora, os jornais e tevês viviam a caça às bruxas do comunismo, a apologia dos bons costumes, a defesa da Tradição, Família e Propriedade. Jovens de camisa e gravata, portando estandartes da TFP, faziam ponto nas esquinas do Centro do Rio e em outras capitais, na missão de catequizar a sociedade brasileira.

Na edição nº 39, em março de 1970, o jornal começou a sofrer censura prévia. Todos os textos e desenhos tinham de passar pelo crivo dos censores. Vários deixaram seus xiszinhos.

Carrascos de passagem, tinham apenas o medo de deixar publicar algo comprometedor para eles. “Isso pode; isso não pode; isso também não pode.” O que sobrasse era editado. O X com uma grossa caneta hidrográfica preta em cima das cópias dos originais e, às vezes, nos originais mesmo, tornou-se a nossa maldição nos cinco anos seguintes.

Um deles, logo no primeiro ano de censura, era um coronel reformado. Jogador de peteca na praia de Copacabana, mandava levar as matérias e desenhos ao seu point. Sentava debaixo de uma barraca de praia e ficava com os amigos rindo e censurando, censurando e rindo muito. Não demorou no cargo.

O regime militar resolveu cooptar universitários para fazer a censura. Duas foram destacadas para censurar O Pasquim. Iam à gráfica, pois queriam ver as páginas prontas, não bastava ver os originais: “Esse pessoal é muito malandro”, diziam. Uma morena, com uns 20 e poucos anos, estudando Artes na Esdi, e uma loura, ligeiramente mais velha. A morena era mais acessível, conversava e ouvia. A loura era ferrabrás. Com ela não tinha conversa: “Censurado!”. O insólito: a morena era censora. A loura, não. Apenas estava preocupada que sua namorada não perdesse a boquinha.

A censura prévia não evitou que algumas edições fossem apreendidas. Os agentes da repressão não tinham condições de ir a todas as bancas do Brasil. Mas a notícia fazia com que os jornaleiros não prestassem contas de eventuais vendas.

— A polícia passou aqui e levou tudo — diziam.

Como a polícia não passava recibo do que apreendia, nem sequer se identificava, adeus, edição. A zona era geral. Tremendo prejú!

Bomba, bomba!

Cercado por todos os lados — censores, apreensões em bancas, pressões nos anunciantes para abandonar as páginas do jornal, veio a bomba, jogada por cima do muro alto da redação. Na edição seguinte ao atentado, o jornal publicou a foto da bomba com o texto:

“Na madrugada de 12 de março, quinta-feira, foi colocada uma bomba na sede d’O PASQUIM. Não houve a explosão porque os responsáveis pelo atentado apertaram demais a ligação do estopim com a espoleta, de maneira que, apesar de ter queimado todo o estopim, o fogo não chegou até o carregamento de dinamite e TNT.

O detetive Penteado, perito do Dops, após examinar a bomba, afirmou que foi a maior que encontrou num atentado terrorista. A sua carga pesava cinco quilos, isto é, o dobro daquela colocada na loja do Correio da Manhã, na Avenida Rio Branco, que destruiu não só a loja como todas as janelas do prédio de cerca de 25 andares. Se a bomba explodisse, atingiria a sede d´O PASQUIM – matando o vigia e sua família – e alguns prédios vizinhos. O total de vítimas poderia ser de algumas dezenas. Sendo um petardo poderoso, os seus estilhaços poderiam ainda atingir um gasômetro instalado aproximadamente a cem metros d´O PASQUIM. Caso isso ocorresse, o resultado seria, sem dúvida, a maior catástrofe já ocorrida no Brasil.

A bomba tinha um cano plástico de 30 centímetros, ligado a uma lata de Toddy através de uma rosca e de rebites. Estava envolvida por um saco de aninhagem, um papel das Casas da Banha e duas folhas de jornal retiradas do Caderno B do Jornal do Brasil. Ao examiná-la, o detetive Penteado ficou impressionado com a técnica adotada no mecanismo da bomba e afirmou que seus autores conhecem profundamente a arte de construção e de petardos desta natureza.

Os jornais noticiaram o fato, cada qual com maior ou menor grau de solidariedade a´O PASQUIM. O jornal O Dia, de propriedade do presidente do Sindicato dos Proprietários de Empresas Jornalísticas, sr. Chagas Freitas, cujos repórteres estiveram n´O PASQUIM, assim informou aos seus leitores: Bomba num quintal de Botafogo (título). “O vigia do prédio nº 32 da Rua Clarisse Índio do Brasil, sr. Oscar Domingos dos Santos, procurou ontem de madrugada a 10ª Delegacia Policial para comunicar que um objeto, que ele temia fosse uma bomba de alto poder destrutivo, fora atirado no quintal. Os policiais encontraram um garrafão enrolado num saco de estopa e com um pavio apagado. No prédio, funciona a Cosa Nostra, editora de um semanário”. O jornalista Hélio Fernandes, por sua vez, colocou a brava Tribuna da Imprensa à disposição d´O PASQUIM.

Até o momento em que escrevemos esta nota, desconhecemos qualquer providência governamental para descobrir os autores do atentado ou para proteger O PASQUIM. Por causa disso, contratamos os serviços de uma firma especializada em segurança de empresas particulares. A nossa segurança está sendo paga por nós mesmos e não através dos impostos.”

Dez anos depois, durante a Abertura Política, em uma série de atentados terroristas de direita com a intenção de tumultuar o processo, a própria Tribuna da Imprensa foi vítima de uma bomba que destruiu o seu parque gráfico, em março de 1981. Um mês depois, explodiu a bomba do Riocentro no colo de um sargento, que não resistiu e morreu — ferindo ainda um capitão do Exército, ambos dentro de um carro, preparando o atentado na comemoração do Dia do Trabalho. Outro atentado covarde, à sede da OAB, em 1980, vitimou Lida Monteiro da Silva, secretária da presidência da instituição, ao abrir uma carta, na verdade, uma carta-bomba.

Os Anos de Chumbo teimavam em não querer acabar.

A gripe pegou todo mundo.

Não fazia mais trabalhos de rua ou administrativos. Colei como carrapato na sala dos editores. Na edição nº 52, a impressão passou a ser o sistema offset, na Editora Mory, Rua do Resende, 65, Lapa. Com mais qualidade gráfica e definição nas fotos, as páginas eram montadas em um gabarito e fotografadas. O chumbo e sua impressão quase grotesca ficaram para trás. Virei pestapista, ou arte-finalista de páginas. O Mãos de Fada morreu. Para comemorar a entrada no offset, um superpôster da Leila Diniz, posando de estátua da liberdade, com uma garrafa na mão e, na outra, um exemplar d’O Pasquim. As fotos desse ensaio sumiram quando os militares, naquele mesmo ano, invadiram a redação.

A rotina na noite de fechamento de cada edição do jornal, quando fazíamos a montagem das páginas que iriam ser impressas, era sempre a mesma. Ficávamos até meia-noite nesse preparo, com um intervalo para comer alguma coisa no boteco da Rua Marquês de Abrantes, esquina com a Rua Clarisse Índio do Brasil, sempre por volta de 22h. Naquela terça-feira, final de outubro de 1970, no fechamento da edição nº 72, não foi diferente. Na redação só tinha o pessoal da chamada cozinha do jornal. Fomos eu, arte-finalista; Alcino, secretário gráfico; Waltinho, arte-finalista de anúncios; Calazans, motorista, para o lanche habitual antes de finalizar as páginas e levá-las para a gráfica.

Na volta do boteco, o segurança, contratado após o atentado da bomba, abriu o portão e, ao entrarmos, fomos rendidos. Eram seis homens armados com revólveres e fuzis, à paisana. Estavam ali para levar todos os redatores. O Alcino, responsável naquela hora, explicou que não tinha mais nenhum redator, coisa e tal.

— Cadê o Paulo Francis? Queremos ele primeiro — vociferou o que parecia chefe do grupo, brandindo um revólver enorme.

— O Francis quase não vem aqui — respondeu o titubeante Alcino.

— Não interessa. Liga para ele vir — apontando o telefone —, inventa qualquer coisa.

Pobre Alcino, ligar logo para quem? Ele liga e inventa, sob a mira do revólver:

— Perdemos sua matéria, você pode trazer pra gente?

Francis soltou vários impropérios. Se quisessem, que fossem pegar.

Sobrou para quem? Haroldo.

Dois deles pegaram o carro do jornal e foram comigo para a Rua Barão da Torre, em Ipanema, no apartamento de dois quartos do Francis. Subimos os três. Cada um deles se postou de cada lado da porta para não serem vistos pelo olho mágico. Toquei a campainha. Abre a porta um Paulo Francis transtornado, de pijama, já com o pau na mão para me dar uma mijada.

— Porra, Haroldinho, que merda é essa?

E os dois passam na minha frente:

— O senhor precisa vir conosco!

— Vocês podem esperar eu trocar de roupa e fazer uma malinha, por favor? — disse, tranquilo, escolado por várias detenções anteriores.

O apartamento tinha um corredor com quadros e um dos quartos era seu escritório. Um o acompanhou ao quarto de dormir. O outro ficou comigo e começou a olhar a estante de livros à procura, provavelmente, de material subversivo. Recolheu alguns encapados de vermelho e um quadro de ilustrador francês, que teve breve passagem pelo Rio tentando a sorte e publicou alguns desenhos no jornal O Globo. O quadro era uma alegoria de uma passeata com estandartes, mas nos estandartes não tinha nada escrito. Apenas grafismo. Levaram, afinal, sabe-se lá o que pode estar escrito.

Talvez um código. Preparados pra cacete. Argh!

Me deixaram na redação. Francis foi com eles, soubemos depois, para o Batalhão Santos Dumont, na Vila Militar.

Para não haver nenhuma repercussão da invasão da redação e das detenções, nos fizeram pegar todo o material (O Pasquim nº 72), levar para a gráfica, imprimir e mandar para as bancas, como se nada tivesse acontecido. Não sem antes vasculharem os arquivos de fotos. Levaram várias pastas. Curiosamente, todas as pastas com fotos de artistas seminuas (na verdade, muito vestidas para a época atual) sumiram. Leila Diniz foi alegrar a solitária vida de algum deles.

Escoltados pelos ainda não identificados, fomos para a Lapa, Rua do Resende, 65. Endereço da Editora Mory, redação e gráfica do jornal Brazil Herald — pasmem —, órgão de imprensa publicado em inglês para a comunidade norte-americana. Possivelmente com vários agentes da CIA infiltrados entre os repórteres. Como a nossa tiragem beirava os 225 mil exemplares, pela impressão pagava-se uma fortuna semanalmente. Os americanos não viam o perigo comunista representado pel’O Pasquim — que sofria censura prévia desde março daquele ano —, mas nossos algozes foram mais realistas que o rei: “Taca todo mundo na cadeia. Cadê o ouro de Moscou financiando isso?” — pensavam.

Tomaram a gráfica de assalto. Não sai, nem entra ninguém. Madrugada tensa, continuávamos sem saber quem eram e o que pretendiam. Mas boa coisa estava na cara que não era. Terminado o trabalho, jornal conferido e pronto para entrar em máquina. Dia amanhecendo. E agora?

Fui levado por dois deles em um fusquinha. Sentado, ou melhor, espremido no banco de trás, olhando o fuzil no banco da frente. O carro pegou a Avenida Brasil em direção suspeita. Território do Esquadrão da Morte, que matava e desovava dezenas de cadáveres deixando cartazes pendurados no pescoço.

Pobre de mim, no início da vida. “Só podem estar me levando para lá. Vou virar presunto!”. Conforme o carro ia deixando os subúrbios para trás, essa ideia martelava a minha cabeça. Perguntei, humildemente, para onde estávamos indo. Recebi a resposta lacônica e imperiosa: “Não fala nada!”.

Pronto, morri. Chegando à altura do bairro de Deodoro, para a direita era a direção da área da desova mórbida. Para a esquerda, estava a Vila Militar e o Campo dos Afonsos, principal base da Aeronáutica. Fechei os olhos. Só pensava na minha família, pai, mãe e irmãos mais novos. Um trajeto de 30 minutos pela Avenida Brasil. Pareceram horas.

Senti o corpo sendo empurrado para a direita pelo movimento do carro. Viramos para a esquerda. Ufa. Menos mal, não vou mais virar presunto. Devo ser torturado na Vila Militar. Resignado, preferi. Mifú.

Cadê o ouro de Moscou?!

Fui levado para o Batalhão Santos Dumont, uma unidade de paraquedistas.

Me deixaram sentado em um corredor do quartel:

— Fica aí esperando — disse um deles. E entraram na sala em frente.

Fome? Não lembro. Medo? Muito, ainda. As Forças Armadas eram o principal braço repressor do regime. Bem ali perto, na pista de pouso do Campo dos Afonsos, assassinaram o Stuart Angel, asfixiado no cano de descarga de um jipe.

Depois de um tempo interminável, me mandaram entrar na sala e se postaram atrás. Pronto, agora vem a tortura, o alicate arrancando unhas, o pau-de-arara, choque no saco. Porra, por que não obedeci ao meu pai e joguei fora as roupas apertadas?

A sala era um escritório. Um oficial, do qual não saberia dizer a patente, começou a me interrogar. Cena de filme. Um garoto de 17 anos, que nem baseado fumava ainda, sendo inquirido sobre as atividades do Paulo Francis, sobre como chegava o ouro de Moscou, de onde vinha o dinheiro que financiava as atividades do jornal. Falar a verdade era a melhor atitude. Falei que o jornal vendia muito, que tinha bastante publicidade. Se eles eram comunistas, isso não se refletia no meu salário.

Interrogatório feito, um jipe me levou para o xilindró, a cadeia do quartel. Construção baixa, com um corredor de acesso para três celas. Cada uma tinha 3 metros de largura, 4 de comprimento, mais quatro catres. Nos fundos, um chuveiro frio, um buraco no chão para necessidades fisiológicas e uma pia — acima, bem no alto, uma janela quadrada gradeada, com uns 40 centímetros. Ficava no alto de um morrinho. Pela janela dava para ver o campo de pouso. Me esperavam o Alcino, o Calazans e o Waltinho. Alívio ao encontrá-los.

Cansados da virada na noite anterior, depois de comer um cozido com legumes mal descascados e bananas com casca, a tensão diminuiu e caímos mortos naquelas camas. Se é que podia chamar-se assim, com estrado de molas e um colchão de capim com 5 centímetros de altura. Travesseiros? Tá de sacanagem.

Durante os dias seguintes foram sendo engaiolados: Jaguar, Ziraldo, Paulo Garcez, José Grossi e Flávio Rangel. Fortuna e Sérgio Cabral — que havia assumido a presidência substituindo Tarso — estavam fora do estado e se entregaram quando retornaram ao Rio no dia seguinte. Tarso de Castro e Luiz Carlos Maciel foram levados para outro regimento. Maciel foi o único que sofreu constrangimento físico, cortaram no estilo reco sua vasta cabeleira — o pai do underground foi adornado com um corte militar.

Véspera do feriado de Finados. Efetivo reduzido no quartel. Um convite inusitado: fomos almoçar na cantina dos oficiais, com soldados calçando luvas nos servindo e com direito a pudim de leite na sobremesa. O Oficial do Dia fez questão de receber os ilustres detentos. Durante o almoço, dizia que aquele gesto era para sabermos que alguns nas Forças Armadas não concordavam com o que estava acontecendo no Brasil da ditadura militar.

Jogou verde para colher maduro? Fato é que ninguém fez qualquer manifestação. O assunto foi futebol, com o vascaíno Cabral e a recente conquista do tricampeonato mundial.

Finados. Que eu me lembre, foi um dos poucos em que não choveu. Assisti, literalmente, ao sol nascer quadrado. Estávamos incomunicáveis. Ninguém sabia do nosso paradeiro. Ironia, eu morava a menos de 3 quilômetros.

Na cadeia, ocupando duas celas, brincávamos para quebrar o péssimo clima e tentar também nos comunicar.

— Francis?

— Hein?

— Atende o 226.

Tínhamos dois números de telefone na redação — de prefixos 226 e 246. Lá, sempre que tinha ligação, gritávamos para o solicitado: — Atende o 246.

Brincadeira boba.

Cenário de terra arrasada

Os principais articulistas e humoristas no xilindró. Redação desbaratada. E aconteceu a maior mobilização de solidariedade de intelectuais já vista. Antonio Calado, Rubem Braga, Rubem Fonseca, Glauber Rocha, Paulo Mendes Campos, Hugo Carvana, Carlos Heitor Cony, Noel Nutels e muitos outros, cortesmente, muniram o jornal com suas colaborações durante os dois meses de prisão. Chico Buarque batizou o sumiço dos redatores das páginas de a gripe, em carta publicada no jornal — “Eu queria abraçar vocês, mas não tinha ninguém aqui. Deve ser por causa da gripe. Ninguém segura essa gripe. Assim mesmo, estimo melhoras”. A pièce de résistance nesse momento foi Martha Alencar, chefe de Redação, que mobilizou toda a turma.

Oito presos. Faltava Tarso para completar a coleção de figurinhas. Estava em lugar não sabido e ignorado, se escafedeu. Para forçá-lo a se entregar, prenderam a Bárbara, sua mulher. Ela era diretora administrativa do jornal. Foi levada para o Dops (Departamento de Ordem Política e Social)¬, na Rua da Relação, conhecido por dali desaparecerem presos políticos e por seus tenebrosos métodos de tortura. Ficou presa em uma sala. Contou depois as ações de constrangimento por que passou. Quando ia ao banheiro, ouvia vozes do lado de fora:

— Olha como ela é gostosa.

— Muito gostosa.

Era mesmo. Eles, covardes.

Tarso não teve alternativa, entregou-se. Foi o último a ser solto. Passou o Natal e o réveillon atrás das grades, foi libertado em janeiro do ano seguinte. Os outros presos foram soltos em 20 de dezembro.

A ordem da repressão era não escrever sobre a prisão. Mas nossos leitores já estavam acostumados a ler nas entrelinhas desde o começo da censura prévia. Driblando os censores, a primeira edição, nº 73, após a “gripe” trazia na capa uma gravura da fábula do lobo e o cordeiro, bolada por Millôr Fernandes, com o lobo falando:

“ENFIM UM PASQUIM INTEIRAMENTE AUTOMÁTICO:
SEM O ZIRALDO
SEM O JAGUAR
SEM O TARSO
SEM O FRANCIS
SEM O MILLÔR
SEM O SÉRGIO
SEM O FLÁVIO
SEM O FORTUNA
SEM O GARCEZ
SEM A REDAÇÃO
SEM A CONTABILIDADE
SEM GERÊNCIA
SEM CAIXA”.

Millôr omitiu os nomes de José Grossi e Luiz Carlos Maciel, presos, e incluiu o seu — mas ele e Henfil não chegaram a ficar gripados. Amigos lhes deram refúgio até a coisa serenar. Epa!

Quando a gente acha que não pode ficar pior

No Brasil havia vários grupos de resistência armada. Chamados de guerrilheiros pela esquerda, e de terroristas pela direita, executavam assaltos, sequestros e execuções. Os mais ativos foram: MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), ALN (Ação Libertadora Nacional), VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), Colina (Comando de Libertação Nacional) e VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares).

Houve 15 sequestros de aviões: “Desvia para Cuba”.

Sequestros de autoridades diplomáticas estrangeiras foram quatro. O resgate era sempre exigindo a troca por presos políticos, que seguiriam para o exílio.

Em setembro de 1969, Charles Elbrick, embaixador norte-americano.

Em março de 1970, Nobuo Okuchi, cônsul japonês.

Em junho de 1970, Ehrenfried von Holleben, embaixador da Alemanha.

E em dezembro de 1970, Giovanni Enrico Bucher, embaixador suíço.

O embaixador suíço foi sequestrado pela VPR, sob o comando de Carlos Lamarca — ex-capitão do Exército que desertou e roubou armas do quartel para montar seu grupo de resistência armada. Um agente da polícia federal que estava no carro resistiu, foi baleado e morreu. Cinco dias depois, foi deixada uma lista na caixa de esmolas da Igreja Santa Teresinha, na Tijuca, com a exigência de libertação de presos.

Essa lista levou pânico a’O Pasquim e muito medo aos familiares de seis dos jornalistas presos. Via de regra, os nomes dessas listas iam para o exílio.

O jornal O Globo, na edição do dia 12 de dezembro, havia publicado a notícia: “A reportagem apurou que da lista constariam os seguintes nomes, que publicamos com reserva, já que ainda não tinham sido confirmados pelas autoridades”. E incluído os nomes de Ziraldo, Sérgio Cabral, Paulo Francis, Tarso de Castro, Bárbara de Castro e Fortuna. Na mesma reportagem, paradoxalmente, registrava, segundo as autoridades, que: “a inclusão dos redatores de O Pasquim na lista visaria causar confusão, pois a atuação deles não seria, notadamente, vinculada à área de subversão terrorista”.

A lista teria 70 nomes. Na reportagem, além dos seis de O Pasquim, a matéria informou apenas quatro outros nomes. Acreditou-se que a publicação visava, mais uma vez, desacreditar e comprometer o pessoal do semanário. O Globo era o maior colaborador do golpe militar, e sempre muito satirizado nas páginas d’O Pasquim. Uma vingança perversa e odiosa. No início de janeiro apareceu nova lista, só com 24 nomes de presos a serem libertados. Nenhum do pessoal de O Pasquim.

1971, o ano do leite derramado

Foi o ano do revés. Tarso ainda preso, sem perspectiva de liberdade. Tiragens caindo assustadoramente — os jornaleiros se recusavam a vender o jornal, com medo de terem suas bancas incendiadas. Os leitores não tinham coragem de levar O Pasquim na mão — quando muito, compravam e escondiam dentro de outra publicação qualquer. Grandes anunciantes cancelando contratos, com receio de retaliação do regime militar. Ninguém queria se arriscar.

Casa onde falta pão...

Tarso finalmente foi solto no final de janeiro. Mas sua volta não foi triunfal. A falta de dinheiro para quitar as dívidas da empresa foi colocada na sua conta. Os salários começaram a atrasar. Gráfica e papel cobrando suas faturas. Aqueles que no último ano pareciam “amigos de infância” se estranharam. Millôr Fernandes capitaneou a revolta, dizendo que se faltava dinheiro, ele devia ter sido desviado, e Tarso seria o responsável. Podia ser que sim, podia ser que não. Se foi, na verdade, não se viram sinais exteriores de riqueza — talvez ele tenha bebido tudo. Eu tinha uma pista, mas não fazia parte da diretoria, era apenas um arte-finalista. Não podia falar nada. O contínuo Zé Carlos, paranaense, comentava que vultosos cheques eram depositados na conta do Grossi. Esse negócio de deixar talões de cheques assinados em branco não podia dar certo. Dura lição para Jaguar e Sérgio Cabral.

A pressão do Millôr fez com que, quatro meses depois, Tarso fosse afastado da sociedade — e Bárbara, sua mulher, demitida. O Pasquim nº 96, em maio, publicou a última matéria do cara que todos consideravam o maior (ir)responsável pelo sucesso do valente hebdomadário.

A Patota do Pasquim nunca mais foi a mesma. A porra-louquice perdeu. Ficamos muito sérios. Viramos oposição.

HAROLDO ZAGER, o Haroldinho, começou a trabalhar n’O Pasquim como boy, aos 16 anos. Durante grande parte da existência do jornal foi secretário de Redação, e nos anos 80 foi um de seus editores.

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