BNDigital

O Pasquim

< Voltar para Dossiês

Maria Lúcia Rangel

No início de 1969, último ano do jornal Última Hora, de Samuel Wainer, Tarso de Castro um dia me levou para um canto da redação da Rua Sotero dos Reis, na Praça da Bandeira, RJ, e me contou um segredo. Ele estava com a ideia de criar um jornal de humor. Pensava em convidar Jaguar e Sérgio Cabral para sócios. Os futuros sócios trabalhavam com ele na UH. A publicação não tinha nome e ele nem sabia se os dois aceitariam. Entendi que me contava sobre seu projeto porque Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, tinha morrido há poucos meses e deixado órfão o jornal de humor que editava, A Carapuça. Sérgio era meu primo-irmão.

Foi naquela mesma redação comandada por Samuel Wainer, um ano antes, que vi Tarso de Castro pela primeira vez: um homem muito bonito, falando ao telefone de pé, levando o fio do aparelho de um lado para outro. Vestia um terno azul-marinho. O mesmo terno era usado diariamente. Inteligente - assinava a coluna política Hora H que chegou a ser a mais lida do jornal, dividindo a página 2 com Moacir Werneck de Castro, Jaguar e Danton Jobim - era sedutor, atrevido, irreverente, polêmico, empreendedor e muito, mas muito mulherengo. Otto Lara Resende dizia que ele era o menos convencional dos homens. Tinha acabado de completar 27 anos. Ficamos amigos até sua morte.

Outro amigo de vida toda, o jornalista Luiz Carlos Maciel, conta no prefácio do livro de Tom Torres “Tarso de Castro, 75 kg de músculos e fúria” que pouco antes de 1964, no Rio, Tarso o convidou para escrever no jornal que começava a editar, o Panfleto, de Leonel Brizola. A publicação durou pouco porque foi fechada com o golpe de 1964. Os dois, ambos gaúchos, se reencontraram na Última Hora.

Nascido em Passo Fundo, no interior do Rio Grande do Sul, Tarso era filho de jornalista. Seu pai, Múcio de Castro, foi dono do maior jornal da cidade, O Nacional, onde ele começou a trabalhar ainda garoto. Com 15 anos passou a assinar a primeira coluna, que chamou de Observando, onde comentava os principais acontecimentos da cidade.

Naquele mesmo ano de 1969 em que me anunciou a ideia de lançar um jornal de humor, O Pasquim (mais tarde virou só Pasquim) foi lançado: dia 26 de junho. Foi um ano difícil, a ditadura apertando e pouco tempo depois de decretado o AI-5. Saiu com uma tiragem inicial de 14 mil exemplares. Mas a propaganda boca a boca, a qualidade dos textos e desenhos e sua oposição ao regime militar elevaram a tiragem, cinco meses depois, para 100 mil exemplares. O Pasquim caiu no gosto popular e intelectual não à toa. Tarso escolheu a dedo seus colaboradores: Ivan Lessa, Paulo Francis, Flávio Rangel, Fortuna, Luiz Carlos Maciel, Ziraldo, Henfil, Martha Alencar e tantos outros que foram sendo arregimentados.

Um ano depois teve início a censura prévia ao jornal. A oposição do semanário ao regime militar incomodou os militares e parte da equipe do jornal foi presa pelo DOI-CODI em 1º de novembro. O militares achavam que, saindo de circulação, as pessoas perderiam o interesse pelo Pasquim. Mas uma cruzada foi feita e os amigos ocuparam suas páginas: Chico Buarque, Rubem Braga, Gláuber Rocha, Rubem Fonseca, Odete Lara, entre outros. Em 31 de dezembro foram todos soltos, menos Tarso de Castro, que com seu jeito intempestivo, “desacatou” um autoridade. Ficou mais uns dias preso.

Era uma época em que a cidade do Rio de Janeiro fervia. Quem não estava lutando contra a ditadura, preso ou escondido, frequentava a noite. Eram bares e boates que juntavam intelectuais, ricos, deslumbrados, artistas e jornalistas. José Hugo Celidônio inaugurou o Flag em Copacabana, um misto de casa de show e restaurante. Foi lá que o fecho-éclair do vestido da então modelo Tânia Caldas arrebentou. Tarso não titubeou. Deu uma nota de 100 cruzeiros - uma fortuna na época – para o garçon e pediu que providenciasse outro fecho-éclair. Isso por volta de 1 hora da manhã. Muito na moda também era a primeira boate de Ricardo Amaral, Sucata, na Lagoa, a churrascaria Plataforma, onde Tom Jobim fazia ponto e o bar/restaurante Antonio´s, no Leblon. Ali se reunia diariamente a fauna ipanemense, jornalistas, arquitetos e os amigos dos amigos. Era pequeno, com cerca de oito mesas no interior, um bar onde Milton, o barman, anotava os recados telefônicos para os fregueses e onde se esperava mesa ou se bebia de pé. No lado de fora, uma varanda com sete mesas, uma delas do cronista Carlinhos de Oliveira e sua máquina de escrever. Frequentador desde a manhã, aí escrevia sua crônica para o Jornal do Brasil, almoçava, bebia uísque como gente grande, namorava e brigava com as namoradas. E, claro, conversava com os amigos, os habitués, como Tom Jobim, Cacá Diegues e Nara Leão, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Marcos Vasconcellos, Nelsinho Motta, Cristina Gurjão, Tonia Carrero, César Thedim, Leila Diniz, Maria e Maurício Roberto, Nelson Baptista e a turma do Pasquim, Tarso o mais presente. No balcão do Antonio´s esperando mesa com o jornalista Renato Machado encontrei-o uma noite com Candice Bergen. Acabamos jantando juntos. Renato foi quem mais conversou com a atriz, já que Tarso não falava nada de inglês. Quando a atriz voltou aos Estados Unidos Tarso telefonava para ela do Antonio´s. Em que idioma falavam não se sabe.

Sobre Candice Bergen vale abrir um parágrafo. Para conquistá-la Tarso aplicou um golpe que quase sempre dava certo. Mandar diariamente dúzias de rosas brancas. Ela se apaixonou. Tanto que, como me contou o consultor de moda Julio Rego, fazia sopinha para os dois curarem a ressaca quando iam os três para Búzios.

Muito jovem e com aquele sucesso todo, Tarso se deixou fascinar pela vida boêmia. Passou a tomar uísque diariamente, frequentava os lugares da moda, deixou O Pasquim, criou outros jornais e teve um filho, João Vicente. Imediatamente virou pai e mãe. Morava sozinho com o menino e com ele andava pelo Leblon. No Antonio´s, João Vicente confraternizava com amigos e namoradas de Tarso. Aos sete anos o menino ganhou um livro, escrito pelo pai, dedicado a ele e à avó, Pai Solteiro e Outras Histórias. Os onze capítulos iniciais são sobre o filho: “...Cá pra nós, que inteligência! Coisa que, aliás, em nada me surpreende...”. O lançamento foi no corredor de entrada do Shopping da Gávea. Era seu primeiro livro, mas só os amigos mais íntimos compareceram. Tarso já estava bem doente. Guardo o meu com uma dedicatória especial, que diz muito do entre pais e filhos: “M. Lucia, és Rangel, graças a Deus e Lucio”. Cinco meses depois, em maio de 1991, Tarso morreria de cirrose hepática. Tinha 49 anos.

Mas vida breve e intensa, longe de afastá-lo do jornalismo, levaram-no a criar outras publicações alternativas, como o Já, A Careta e O Nacional. Também foi o criador e editor do polêmico suplemento dominical de cultura Folhetim, na Folha de S. Paulo, que estreou com a capa: 50 Anos no Tom dos Jobim, uma grande reportagem com Tom Jobim escrita por ele. O caderno deu origem ao atual Ilustríssima.

Além da biografia de Tom Cardoso, Tarso ganhou também um documentário, de Leo Garcia e Zeca Brito. Em ambos os trabalhos ele é bem retratado, mas sempre com um viés oba-oba, como se dizia na época. Tarso também sabia ser sério e defendia suas crenças e pontos de vista com grande ênfase. Pena que já tinha morrido quando Darcy Ribeiro e Nilo Baptista deram seu nome a um Ciep, localizado na Vila Kennedy, em Bangu, inaugurado com a presença de amigos e de João Vicente no dia 14 de março de 1994.

Lembrando dele hoje em dia, me dou conta de que todo o charme não escondia seu machismo. Era o perfil dos homens da época. Quando Leila Diniz deu a famosa entrevista ao Pasquim, na casa – casa mesmo, quase na esquina da Av. Vieira Souto - dele e de Barbara Oppenheimer, a linda gaúcha com quem foi casado, nós duas estávamos presentes. Assistimos do princípio ao fim. Leila chegou da praia com a toalha de banho enrolada na cabeça, com a simpatia de sempre, todos tomando uísque, mas eu e Bárbara mudas ficamos. Não fomos lembradas em nenhum momento e nem nos colocamos. E só hoje, olhando pra trás, chego à conclusão que caímos na armadilha machista. Não reclamamos.

Claro que era divertido e eles respeitavam as amigas. A maneira de viver é que era diferente. Todos machões.

Parceiros