BNDigital

O Pasquim

< Voltar para Dossiês

Mariano

Memórias do Pasquim

Quando mandei meus primeiros desenhos para o Pasquim, incentivado por alguns colegas de faculdade, no início dos anos 1970, estava inadvertidamente iniciando uma transformação radical na minha trajetória de vida. A surpresa de ver um desses desenhos publicado na edição daquela mesma semana me estimulou a continuar mandando, e desde então, passei a ser um colaborador permanente do Pasquim, sem deixar de ter alguma coisa publicada em todas as edições do jornal, até a sua extinção, em 1991. E virei cartunista pro resto da vida.



A censura

Do início, assim que dona Nelma permitiu que eu subisse à redação, o que lembro com destaque eram os dias em que o material voltava da censura. Todo mundo na expectativa, putos quando seus desenhos voltavam riscados com um “X”. Enquanto eu, aguardava ansioso para que os meus também tivessem sido. Quando isso acontecia, era um troféu, que exibia depois com orgulhosa indignação aos colegas de militância estudantil (eu era vice-presidente do DCE da PUC).

A escola

Aquele convívio inusitado com as feras me encorajou a pedir ao Jaguar, um dia, que desse uma opinião sobre o meu desenho. Depois de desconversar, evitar, já de saco cheio, ele acabou concedendo:

— Acho uma merda! He he he...

Com o rabo entre as pernas, saí magoado, incapaz de apreciar a piada que ele estava fazendo. Mas foi importantíssimo pra eu perceber que era ruim mesmo. Era uma mistura desordenada de influências, que a partir dali passei a observar, criticar e melhorar.

Minha indisfarçada falta de humor e a percepção dela por parte do Jaguar geraram um certo constrangimento no nosso relacionamento, por algum tempo. Até o dia em que fiz uma ilustração para uma matéria sobre o sucesso que o filme Vai Trabalhar Vagabundo estava fazendo na França. Jaguar passou por mim na escadaria e falou: — Olha, o Hugo Carvana pediu o original desta caricatura que você fez. Fala com a Nelma, manda pra ele. — Desceu mais dois degraus e completou:

— Ah, estava muito boa mesmo, he he he.



A convivência com os mestres era estimulante, divertida, e muito enriquecedora também. Jaguar tinha uma pequena biblioteca com livros de Siné, Sempé, Wolinski, Steinberg; uma coleção da revista New Yorker; e a preciosíssima História da Caricatura no Brasil, do Herman Lima, que foram minha introdução ao universo do desenho de humor, como autodidata.

Fortuna me ensinou a “só entregar a charge para o editor no último minuto. Assim, não dá pra ele querer fazer nenhuma alteração”. Sábio expediente que me foi muito útil na profissão.

Millôr foi meu maior exemplo de ética, integridade, civilidade e cordialidade.

Henfil me convidou a acompanhá-lo numa caravana a Brasília, para fazer lobby no Congresso pela aprovação da Lei de Direitos Autorais. Graças ao seu empenho, foram incluídas importantíssimas proteções para os autores de charges e ilustrações, como a posse dos originais, por exemplo.

Ziraldo e sua generosidade imensa; Redi, a modéstia sincera do gênio cujo maior orgulho era saber tocar tamborim; os colegas do baixo clero do traço, Agner, Calicut, Lapi, Nani, Guidacci, Duayer, Reinaldo; Edson, o magistral letrista que desenhava à mão todos os títulos, contando histórias dos baloeiros do subúrbio; Beto, Miro e Toninho, da montagem; Pachequinho, o revisor “acadêmico” (da ABL); Walter Ghelmann, o fotógrafo; dona Marta, a cozinheira; Luizão, o segurança sentimental; Vavá, o motorista marolado...

“Vivendo e aprendendo” era uma expressão muito usada na época. Fui aprendendo e praticando ao mesmo tempo.







Aldir Blanc



Uma dádiva do destino foi o meu “casamento” com o Aldir Blanc. Além das charges que levava prontas, sempre pegava uma ilustração para fazer, distribuídas pelo Haroldo Zager, que editava a parte gráfica. Quando o Aldir Blanc começou a escrever suas crônicas, fiquei encantado com elas, e sempre trocava quando estavam disponíveis. Até que um dia o próprio Aldir pediu para me darem suas crônicas para ilustrar. Essa parceria ainda rendeu dois livros, e alguns raros privilégios, como ter lido em primeira mão a letra de “O Bêbado e A Equilibrista”, que ele mandou entregar na minha casa, no dia em que fez, no lugar da crônica.





Os personagens do Aldir eram todos reais, e estavam vivos. Mas eu só fui saber disso, e conhecê-los, na festa de lançamento do primeiro livro, quando o Aldir marotamente me apresentou um por um. Graças a Deus eles também curtiam os desenhos que eu inventei para caracterizá-los. Foi uma catarse geral.

A maior felicidade

Foi a oportunidade de firmar uma amizade com o meu ídolo, o Nássara.

Sempre fui fascinado pela simplicidade certeira de suas caricaturas, pelo mini-malismo visionário do seu desenho. Com tinta e papel, Nássara inventou uma solução ideal para o desenho vetorial, que só viria a ser criado muitas décadas depois, com a digitalização e a computação gráfica.

Nássara estava desaparecido havia déca-das, no ostracismo do nosso contumaz “alzheimer” cultural. Mas eu o havia reco-nhecido, certa vez, pela calçada da Av. Rio Branco, e arrisquei uma abordagem. Era ele mesmo. Conversamos muito e passamos a nos encontrar muitas vezes, pois eu ficava de plantão ali nos dias que sabia que ele podia aparecer.

Coincidiu que o Jaguar também o encontrou e o levou imediatamente para o Pasquim. Nosso relacionamento então deslanchou. Primeiro, porque eu já era uma cara conhecida, e segundo, porque sabia que o Nássara estava surdo de um ouvido e quase totalmente do outro. Vaidoso, ou tímido, ou por aflição, constrangimento, ele não deixava transparecer. Então, nas conversas em grupo, eu me posicionava estrategicamente próximo ao seu ouvido melhor, e ia fazendo comentários que esclareciam o que estava sendo dito, para ele se referenciar. Essa cumplicidade disfarçada acabou estreitando uma amizade que me abriu as portas da sua casa e me permitiu, inclusive, presenciar, com intimidade, seus momentos de trabalho. Ainda guardo, com carinho, as peninhas speedball que ele insistiu em me dar para experimentar. No Natal e em aniversários, trocávamos mensagens desenhadas, que também guardo como um tesouro, claro.



O maior infortúnio foi tirar o meu “emprego” no Globo

Eu havia conseguido um frila fixo, como ilustrador na seção de Economia do Globo (Ismar Cadorna, Luizinho Bittencourt, George Vidor), onde nunca ganhei tão bem na minha vida. Como o Globo não tinha charge oficial, naquele tempo, minhas ilustrações na Economia eram modestas charges, não oficiais. Já estava ali há mais de um ano, na expectativa já cogitada de que fosse criado, e eu viesse a ocupar, o espaço específico da charge no jornal.

Até que um dia rolou de fazer uma caricatura do Roberto Marinho para uma capa do Pasquim, numa edição que denunciava como ele se aproveitara do acordo MEC-Usaid para a criação da sua famosa Fundação.

No dia seguinte ao que o Pasquim foi para as bancas, fui barrado na entrada do Globo. Falei com o Ismar Cadorna, editor de Economia, e ele contou que foi proibido, pelo chefe de redação, de continuar publicando meus desenhos.

Mas não havia nenhuma explicação, e depois de especularmos bastante, Ismar topou fazer o teste de continuar publicando meus desenhos sem assinatura, pra ver o que acontecia. Como não aconteceu nada, continuei ainda por uns seis meses trabalhando anônimo, antes que o tal chefe de redação (pelo visto, mais realista que o rei) percebesse o arranjo e me impedisse de vez de entrar na sede do jornal.

A perda foi grande. O que eu ganhava com um único desenho no Globo era mais do que um mês inteiro de pagamento do Pasquim.



O dia em que fui expulso do Pasquim

Ironicamente, também acabei, mais tarde, sendo expulso do próprio Pasquim. Não da publicação, do jornal, mas das suas dependências, da sede, na Rua Saint Roman.

Eu estava de férias, verão de 40 graus. Aí, trabalhei durante a noite e de manhã fui à praia, passando na volta pelo jornal para deixar minhas colaborações. Quando me viram entrar só de sunga, os burocratas da administração, que funcionava no andar de baixo, correram apopléticos mandando, à vera, eu me retirar.

— Tá pensando que isso aqui é a casa da mãe Joana?!

Em vez do “sabem com quem vocês estão falando”, eu mandei:
— Vocês não sabem onde vocês trabalham?!

Como era muito cedo, início da tarde, não havia ainda ninguém na redação. Deixei os trabalhos com a dona Nelma e fui embora, sem saber se ria ou se ficava puto.

Na semana seguinte, por via das dúvidas, fui de bermuda, fingindo estar ressabiado, mas o incidente tinha virado piada.

Causos e figuras

Era comum esbarrar com personalidades pela casa da Rua Saint Roman. Do Andrade Carlos Drummond ao Castor de. De Zé Keti e Nelson Sargento a Elke Maravilha. Muitos tipos malucos, como o Alemanha Fargney, de aparência desleixada mas linguajar erudito, que à noite vendia o jornal num sinal da Praia de Botafogo.

Um caso desses, muito interessante, era um mulatinho (infelizmente não me lembro o nome) bem viadinho (desculpem, mas naquela época ainda não tinha consciência LGBT, e era assim que a gente falava. Sem preconceito), bem afetado, exagerado nos trejeitos, que ostentava pródiga e festivamente sua opção sexual com a intenção mesmo de alegrar o ambiente.

Até que, um dia, ele aparece fazendo pose de homem, de braços dados com uma morenaça monumental. Foi lá pra dentro da sala do Jaguar e ficou todo mundo curioso, perplexo, sem entender o que estava acontecendo. Quando saíram, alguém chegou perto dele e perguntou, discretamente: — Que porra é essa? Tu não era viado? — Era não — ele respondeu — Ainda sou... só que virei lésbica!

Ziraldo

Em 1982 haveria as primeiras eleições para governador do Rio depois da ditadura. Ziraldo e Jaguar divergiam quanto às suas preferências, Ziraldo pelo Miro Teixeira e Jaguar pelo Brizola. Instados a declarar também nossos votos, fui o primeiro a publicar minha opção pelo Brizola.

Ziraldo tinha assumido o comando do jornal, que vinha mal das pernas, promovendo várias mudanças, do formato às grandes entrevistas. A disputa eleitoral gerou uma espécie de aposta: se Miro vencesse, Ziraldo continuaria, senão, o jornal ficava com o Jaguar. Deu Brizola, e o jornal voltou ao seu formato original, mas ganhou propaganda do Banerj. Vida que segue. Nessa fase, Reinaldo foi o braço direito de Jaguar, e depois, durante muito tempo, foi o editor-imediato-prático do jornal.

Daquela fase “standard”, vou contar então um caso melindroso, do desenho que eu e Ziraldo fizemos a quatro mãos, e que nenhum dos dois quis assinar depois.

Eu andava numa fase pessoal meio crítica, inseguro, sorumbático (Ziraldo via “uma nuvenzinha escura sobre a minha cabeça”).

E aconteceu que me incumbiram de fazer uma caricatura do Chico Buarque para a capa daquele número, com uma sensacional entrevista dele.

Embora tenha conseguido muitos resultados de que eu gosto muito, nunca tenho certeza de que vou conseguir quando começo uma caricatura. Naquela época e naquelas circunstâncias, então...

Beirei o pânico diante da oportunidade.

O fato é que levei o melhor que consegui depois de uma noite inteira riscando e rabiscando... e o Ziraldo não gostou.

Me cedeu sua prancheta e mandou fazer de novo, instruindo como devia ser a boca, que não tinha aquelas bochechas, que eu fizesse as linhas grossas, pois ia sair grande, no novo formato “standard”, que fizesse o Chico bonito etc. etc.

Eu jogava a cabeça para trás, pra não cair suor no desenho.

Depois de alguns pitacos, e até uns retoques aqui e ali, ele deu o desenho finalmente como aceitável. E encerramos.

Juntei minhas coisas e fui saindo, quando ele perguntou:

— Ué, não vai assinar?

— Não — respondi. — Assina você, que tem mais de seu do que de meu nesse desenho.

E fui embora, emburrado.

Essa edição fez muito sucesso. Volta e meia é cita-da. E a todos a quem pergunto de quem é a capa, são unânimes em responder: — Do Ziraldo, claro. Embora ele também não tenha assinado, claro.



Obs.: Ziraldo é um cara extremamente generoso, longe de mim qualquer ingratidão. Foi só uma caturrice de discípulo impertinente.

Para exemplificar a generosidade do Ziraldo, lembro uma vez em que ele, enquanto falava comigo, ia escrevendo nomes numa enorme lista que já tinha mais de 30. Muitos apelidos, pude bisbilhotar. Notando a minha curiosidade, ele explicou: — São pessoas que dependem de mim. E continuou acrescentando.

Alguns preciosos elogios:



Atestado de insanidade (Millôr Fernandes)
"Para seu projeto, Mariano, esplêndido artista gráfico, e tinhoso organizador, necessita apenas de natural amparo econômico, pois a insanidade para a realização ele já nasceu com ela. Foi nele que George Bernard Shaw pensou quando disse: "Todo homem sensato aceita o mundo como ele é. Só os loucos tentam melhorar o mundo. Portanto a realização de qualquer projeto depende dos loucos. Dou fé.”

(1998, sobre meu projeto Charge Online)


Alguns micos e gozações (epa!):






Não sei onde foi parar esse talento para as artes dramáticas. Fiz muito o papel de machão nas fotonovelas, “dirigidas”, sempre de improviso, pelo Rafael Siqueira.

Uma referência especial ao saudoso Fausto Wolf, enorme de tamanho e coração, que me chamava de “Marianinho”. Tão incorruptível ideologicamente que, em alguns momentos, só teve o Pasquim para publicar. Cuja convivência foi um curso completo de caráter.

E uma saudade imensa, de quando eu tinha a maior moral:




www.mariano.art.br
www.chargeonline.com.br

Agradecimento

Esta iniciativa da Biblioteca Nacional, além da óbvia importância do registro e sua disponibilização, é imensamente providencial como referência para os colaboradores. Porque o Pasquim nunca teve um arquivo organizado do material que era publicado. Terminada uma edição, os originais que voltavam da gráfica eram armazenados precariamente na garagem, onde eram deixados também os encalhes.

Fora o Henfil, que recolhia rigorosamente seus originais, ninguém tomava essa providência, e os originais iam se acumulando lá.

Como o espaço era pequeno, o motorista Vavá foi autorizado a vender o encalhe como papel a quilo, de tempos em tempos. Só muito tarde se descobriu que, esgotados todos os encalhes, ele passara a vender também "aquela papelada toda", que eram as pastas com os originais. Muito pouca coisa se salvou.

Agora podemos ter acesso, pelo menos, a uma cópia de tudo.

Parceiros