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O Pasquim

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Iza Freaza

MEMÓRIAS DO PASQUIM ou ANTES QUE O ALEMÃO ATAQUE

Quando penso em meus primeiros tempos no Pasquim, me vejo na recepção do jornal que ficava na Rua Saint Roman, uma ladeira entre Copacabana e Ipanema, numa casa de dois andares muito esquisita porque as grades de proteção nas janelas imitavam pautas musicais com notas, colcheias, semicolcheias etc. Sem dúvida as pautas indicavam que ali morara um músico, compositor ou melômano, amante da música de muita imaginação, cujo nome ninguém sabia e nem mesmo se as notas formavam uma melodia, quem sabe uma mensagem cifrada para os aliados indicando que os alemães estavam chegando.

Estava ali chamada por Millôr Fernandes, diretor responsável do jornal que queria conversar comigo porque gostara da minha primeira matéria publicada dias antes, relatando reações de brasileiros na Copa do Mundo de 1974 — isso, se a memória não me engana, e nesta idade ela me engana muito (houve Copa do Mundo em 1974? Quem ganhou?). Sonia Nolasco, amiga que já colaborava no Pasquim com o nome de Sonia-Piauí, tinha me animado a escrever para o jornal. Gostei da ideia porque adorava o Pasquim — quem não? — e porque estava desempregada e com certa dificuldade para conseguir emprego — era uma ex-presa política, e não podia sair do país por causa de dois processos a que respondia. Enfim, a coisa estava meio sinistra, como dizem hoje.

Escrevi o artigo e Sonia me ajudou a escolher meu nome para o Pasca — vai assinar com que nome? Iza Barreto de Salles nem pensar. Conhecido da repressão, facilitaria a vida da censura. Começamos a examinar as possibilidades de pseudônimo e aí Soneca partiu pro meu nome de casada — eu me casara há pouco e passara a me chamar Iza de Salles Castro Freaza. Foi assim que surgiu Iza Freaza, que ela inventou. Anos depois, na Bundas, voltei a ser Iza Salles. Ziraldo protestou, alguns leitores também, mas era meu nome verdadeiro. No Pasquim sempre fui Iza Freaza. Dia desses, agora em 2019, José Luiz Alqueres, da Edições de Janeiro, editor da nova edição de meu livro O coração do rei, quis conhecer Iza Salles. Entrei na sala, ele abriu os braços e exclamou: “Iza Freaza, faz tempo que eu queria te conhecer”. Isso, 45 anos depois.

Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, sim, na recepção do Pasquim num dia de 1974, há quase meio século, para conversar com Millôr Fernandes, imaginem minha aflição, ansiedade, entusiasmo etc. O homem era o MÁXIMO, e eu ali chamada por ele, eis que entra Ivan Lessa, com aqueles olhos ariscos por trás dos óculos ariscos, com aquele cabelo arisco, aquele jeito charmoso arisco e não me deu a mínima, Vocês não podem imaginar o que é ser ignorada solenemente por Ivan Lessa. Dá uma dor!

Neca de bom dia ou boa tarde. Chegou, deitou displicentemente num sofá na minha diagonal e em frente à mesa de Nelma, abriu uma revista e pôs-se a ler. Minutos depois, começou uma pantomima — sempre lendo a revista, de vez em quando a afastava do rosto para me examinar rapidamente e voltar a me ignorar solenemente. Isso depois de dizer para a Nelma coisas que me faziam corar e ter vontade de sair correndo, deixando para trás o sonho de colaborar com o Pasquim. Mas me mantinha firme, repetindo mentalmente uma frase que, mais tarde, ensinei ao Obama: I CAN.

Mas voltemos ao início, porque não está fácil lembrar o passado hoje em dia, com o alemão sempre à espreita. Antes que ele ataque apagando minha doce memória, retorno ao ponto de partida: eu aflita naquela sala esperando que Millôr Fernandes me chamasse, e logo eu, subindo para o segundo andar onde era o escritório do diretor-chefe. Antes disso, eu me vira com uma dúvida atroz: conto ou não para ele que acabara de sair da prisão? Claro que nunca me passara pela cabeça ocultar aquela parte da minha biografia, e intuía que não seria obstáculo para a minha colaboração, mas ele é quem tinha que decidir.

De modo que, depois de ouvir de Millôr que queria mais colaborações minhas, aproveitei uma pausa — difícil quando se falava com o Millôr, porque ele falava muito, sempre coisas interessantes, engraçadas, inteligentes, que a gente não podia perder, e todo mundo se calava porque o espaço era seu de direito, era Millôr inventando o “lugar da fala”, que nego pensa ter descoberto hoje — e falei de um fôlego só: “Tem uma coisa que tenho obrigação de te dizer”, e aí disse que acabara de sair da cadeia, respondia a dois processos, no Rio e em Sampa, e era acusada de pertencer à Vanguarda Popular Revolucionária, do capitão Lamarca. Ufa!

Pausa, silêncio, e a resposta que veio depois não esqueci nunca, porque era bem Millôr e Pasquim. Muito calmo, ele explicou que, como eu sabia, o Pasquim era um jornal liberal que abrigava as mais variadas tendências progressistas, um jornal em que todas as ideias eram bem acolhidas, um jornal em que todos os que lutavam contra ditaduras tinham espaço etc. e finalizou: “Mas devo acrescentar que você preencheu completamente a cota terrorista e agora não entra mais um”. E rimos os dois. Não, eu não era terrorista, mas não dava pra explicar. Assim, depois de preencher a única cota da minha vida, saí dali feliz para uma nova etapa na minha caminhada.

Era 1974, estávamos na ditadura militar, no período mais duro, o do governo Médici. Minha participação no jornal passou por diversas etapas. Na primeira delas eu só trabalhava no Pasquim, único ganha-pão que tinha desde que a Rio Gráfica fechara, em meados de 1973. Por breve período, a Rio Gráfica, de Roberto Marinho, havia se tornado, sem que ele se desse conta, abrigo de ex-presos políticos, um chamando o outro pra ninguém ficar desempregado. O que permitira a revoada de pássaros opositores da ditadura em direção à Rua Itapiru, no Rio Comprido. Fora uma experiência tentada por Roberto Irineu, filho mais velho de Roberto Marinho que queria criar novas revistas e competir com a Abril. Trouxe um grupo de São Paulo que juntou com cariocas da mesma linha — era comunista demais pra Roberto Marinho.

Uns três meses depois, a gráfica foi fechada abruptamente, sem aviso prévio. As redações foram invadidas pela polícia política porque o patrão temia reações, uma guerra, sei lá, quando só queríamos nosso emprego. Incrível lembrar dos policiais ocupando os corredores e todo mundo rasgando papéis, descartando folhetos, atendendo à ordem de retirada. Nem de longe poderíamos supor a evolução do grupo Globo que, anos depois, acolheria muitos perseguidos em sua redação e se tornaria defensor da democracia e do estado de direito — ironias da história.

Desempregada, adorei o bico no Pasquim e logo fui convidada para o Opinião, mais um jornal da “imprensa nanica” que marcou época, fundado pelo empresário Fernando Gasparian, fantástico político e editor que tinha a seu dispor a elite intelectual paulista, tudo da USP, PUC, Unicamp, com graduação, pós-graduação, cursos em Harvard etc. Elite que passou a colaborar com o jornal onde nós, da redação, mais jovens, menos cultos, inexperientes, éramos a mosca do cocô do cavalo do bandido, mas tratados pelos intelectuais com muito respeito porque a história nos definia como uma espécie de tropa de choque. E nos agradava muito participar de uma experiência com aquele grupo que “pensava” o Brasil, que mudaria o Brasil, um conselho editorial que tinha Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Alceu Amoroso Lima, Paul Singer, Francisco de Oliveira, Antônio Cândido, Antônio Callado, Millôr Fernandes, Francisco Weffort.

Meu trabalho no Opinião, onde fui redatora, editora-assistente e depois editora política, antes de partir para uma nova bolsa na Europa, em 1977, correu paralelo à minha colaboração com o Pasquim. Tinha salário no Opinião e ganhava por matéria no Pasquim, como todos os colaboradores. Eu me dividia entre os dois jornais — o dia quase inteiro no Opinião e subindo a ladeira da Saint Roman uma, duas vezes por semana, para entregar minha colaboração ou para participar de alguma entrevista.

Ivan implicava com minha ida para o Opinião, insinuando, sempre que podia, que eu me dedicava mais ao jornal de Gasparian que ao Pasca etc. Creio que foi dele a ideia de mudar minha relação com o Pasca. O certo é que ele, Ivan, Jaguar e Ziraldo um dia me chamaram para um almoço no restaurante Ouro Verde, um dos melhores do Rio naquela época e que ficava no hotel do mesmo nome, onde me convidaram para ser editora de entrevistas do jornal. Havia uma tendência de o Pasquim se tornar mais político, entrevistar mais políticos que artistas. Estávamos, na verdade, no início do processo no país que nos conduziria à abertura democrática. Aceitei, mas expliquei que seria por pouco tempo, porque havia ganhado uma bolsa de estudos para a Europa que só dependia de um dos meus processos a ser julgado no Rio — eu já fora absolvida no de São Paulo.

A primeira entrevista que organizei foi com Teotônio Vilela, senador do MDB, um dos comandantes da campanha pela democratização; depois entrevistamos Castelo Branco, o Castelinho, o mais famoso jornalista da grande imprensa na época; o ex-presidente Jânio Quadros, de quem todo mundo queria saber os motivos de sua renúncia; o procurador Hélio Bicudo, que, praticamente sozinho, enfrentava os Esquadrões da Morte em São Paulo (foi fundador e depois desafeto do Partido dos Trabalhadores); Terezinha Zerbini, minha colega na prisão de São Paulo, uma das mulheres na linha de frente da luta pela anistia; o jornalista Alberto Dines; o poeta Ferreira Gullar etc. etc.

As grandes entrevistas eram geralmente na sede do Pasquim com um monte de entrevistadores. Em casos especiais, íamos à casa do entrevistado (caso de Sobral Pinto, Jânio Quadros, Dines). A mais famosa foi a de Jânio, feita em São Paulo e que o Canal Brasil reproduziu recentemente com atores nos interpretando. Por economia, fizemos no mesmo dia Hélio Bicudo e a escritora Cassandra Rios. Os entrevistadores — Jaguar, Ziraldo, eu, Ricky Goodwin e Walter Ghelman — fomos para Sampa pelo trem noturno. Mas havia também um grupo reduzido, quase sempre um quarteto (Jaguar, Ricky no gravador, Walter nas fotos, eu e, raramente, Ivan) para entrevistar gente menos política, tipo Jararaca (da dupla Jararaca e Ratinho), Elvira Pagã, o compositor Adelino Moreira, o fazendeiro milionário Tião Maia etc.

Aconteciam coisas incríveis durante as entrevistas: na de Jânio fui encurralada pelos cachorros da casa e chegamos a temer, Jaguar e eu, que Ziraldo, com a desenvoltura de sempre, terminasse um longo preâmbulo que fazia com a pergunta de que mais gostava: “O senhor é bicha?” Ainda acrescentou, para nosso espanto: “O senhor não acha que Juscelino Kubitschek foi o melhor presidente do Brasil?”. Jânio respondeu que não — tinha sido ele, acho que disse. Com um entrevistado desconhecido, Ivan morreu de rir porque eu, sem saber por onde começar, perguntei: “Quem é você?” Na de Ferreira Gullar, um poeta menor perguntou quanto tempo ele levava para fazer uma poesia, e quando o poeta respondeu que, às vezes, um tempo enorme, o menor replicou: “Pois eu faço de um folego só”. Foi um silêncio!

Na de Hélio Bicudo, que nos recebeu em sua casa, em São Paulo, Jaguar pensava que íamos entrevistar um membro do Esquadrão da Morte, o Bicudo, e insistia para eu convidar para a entrevista o Pena Branca, famoso repórter policial que escrevia para o jornal. Na de Castelinho, temi que terminássemos sem entrevista porque, por um bom tempo, ele respondeu às perguntas com monossílabos: sim, não, talvez. Na de Elvira Pagã, Walter levou uma surra da vedete porque a fotografara, dizia ela, no seu pior ângulo — furiosa, ela perseguiu o fotógrafo pela casa enquanto Jaguar, Ricky e eu nos escondíamos atrás do sofá. A confusão só terminou quando Jaguar tomou coragem e, fingindo indignação, expulsou Walter da entrevista: “Fora, que desrespeito com nossa estrela”. Na de Alberto Dines, quando contou que, em Telaviv, ao explodir uma guerra, ele pegou um táxi pra ir para a frente de batalha, Jaguar interrompeu: “Um táxi pra ir pra guerra?” E acrescentou: “Bandeira 2, naturalmente”.

Eram sempre divertidas as entrevistas, mas do lado de fora, a vida sob a ditadura seguia complicada. Os anos finais da década de 1970 foram agitados por reações da direita aos primeiros sinais do que ficaria conhecido como “abertura democrática” — graças ao crescimento da ala moderada no poder e ao afastamento da turma da linha dura. Começou, então, uma escalada de bombas colocadas em lugares de resistência, e que culminaria com o atentado ao Riocentro, no início dos anos 1980. Uma bomba foi colocada, certo dia, no Opinião, de madrugada. A Tradição, Família e Propriedade (TFP) reivindicou a autoria. Depois veio a bomba no Pasquim.

O jornal sempre fora um tanto desligado sobre os perigos que corríamos, mas àquela altura dos acontecimentos decidiu contratar seguranças, decisão que Nelma informou solenemente aos colaboradores que lá iam entregar seus artigos. Não, o Pasquim era um jornal sério, não seria mais apanhado desprevenido. Lembro de Nelma ao telefone me dizendo que eu viesse tranquila, o segurança estava lá para nos proteger. E lá vou eu ladeira acima, no meu Volks, levando minha matéria e dois pacotes com números do jornal ou livros do Opinião.

Cheguei ao Pasquim e ali estava o nosso segurança, junto ao portão fechado, sentado numa cadeira. Para maior comodidade, e também para evitar problemas de circulação, tinha os pés apoiados num encosto mais alto. Lia um exemplar de Anedotas do Pasquim, rindo muito. Quando, finalmente, se deu conta da minha presença, a contragosto largou o livro de anedotas, olhou pra mim e perguntou: “Trabalhas na casa?”. E me deixou entrar sem ao menos procurar saber o que havia naqueles pacotes que eu carregava, de modo que quando Nelma me perguntou: “Tudo bem?”, eu, mostrando os pacotes, afirmei: “Se fosse bomba, tudo tinha ido pelos ares porque nosso segurança, sei não”. Mas o que vocês esperavam de um segurança do Pasquim?, alguém me perguntou.

A vida era uma aventura no Pasquim e no Opinião, cada dia um dia, como nos Alcoólatras Anônimos, de susto em susto. E foi ainda ali no Opinião que recebi um telefonema de Nelma, com quem eu falava sempre. Um telefonema diferente. Com aquela voz dengosa, carioquíssima, Nelma perguntou: “Escuta, Iza, a censura acabou aí?” “COMO??? A CENSURA ACABOU AQUI??! — perguntei, e ela explicou que havia recebido um telefonema informando que não precisava mandar mais nada para Brasília ou para os censores, porque a censura tinha acabado, tipo, como diríamos hoje, papo reto: “Olha, a censura acabou e ciao”.

Incrédula, passei a nova para a redação do Opinião: “Nelma telefonou dizendo que um cara ligou informando que a censura acabou”. Ninguém acreditou. Concluímos que era mais um trote de gente que não tinha o que fazer. Pois não é que tinha acabado mesmo?! A ditadura ainda não — estávamos em 1977 —, mas a censura, sim. Claro que eles não podiam mandar um ofício informando do fim da censura, o que seria o reconhecimento de que ela existira. Telefonaram. O telefonema mais estranho da nossa vida.

Saí do Pasquim e do Opinião por volta de 1977, para a Europa, onde me esperava a bolsa de estudos Journalistes en Europe. Nos anos seguintes morei em Paris, Madri e Roma, de onde continuei a enviar matérias e entrevistas para o Pasquim. De Paris mandei uma das matérias mais tristes que escrevi, sobre a morte de Frei Tito, aniquilado pela tortura — fui ao lugar onde ele tinha se suicidado e os dominicanos me puseram pra dormir na cela que era dele. Madri foi uma festa — era a democratização. Ali conheci os anarquistas, com suas belas histórias e teorias, e deles veio a inspiração para escrever meu primeiro livro, Um cadáver ao sol. Em Roma fiquei mais tempo, quase sete anos, e tinha dificuldades para entender as Brigadas Vermelhas, a Lotta Continua e outros grupos que combatiam a democracia — enquanto nós lutávamos por uma no Brasil.

Durante o Congresso pela Anistia (“per un Brasile libero e democrático”), minha casa da Via Santo Alessio, no Aventino (uma das sete colinas de Roma), virou uma espécie de sede do Pasquim em Roma, pois ali morava a correspondente do jornal. Quase um consulado da anistia: acolhi Arruda Câmara e companheira; ali dormiu Apolônio de Carvalho depois de uma longa entrevista; ali chegou certo dia João Amazonas, com um segurança, para ser entrevistado; ali entrou certo dia armado apenas de um descascador de batatas que me levou de presente o sargento Nóbrega. Ali recebi muitas vezes Denise Crispim, sua mãe, Encarnación Perez, ex- companheiras de prisão e amigas queridas, e Eduarda, filha de Denise e Eduardo Leite, nascida na prisão quando ali estávamos.

Mas no Congresso também houve momentos hilários que viraram dicas para o Pasca. Certa noite estávamos num clube siciliano de Roma — onde todos os presentes me pareciam da máfia — porque havia uma homenagem a exilados brasileiros, entre eles o comunista Gregório Bezerra. Em meio aos presentes estava o cantor Agnaldo Timóteo, então de esquerda, lembram? A certa altura ele quis prestar uma homenagem a Bezerra. Pegou o microfone e disse que dedicaria a música especialmente a ele, Bezerra, que logo retornaria ao Brasil para continuar a luta. Dito isso, Agnaldo atacou : “Boemia, aqui me tens de regresso”.

Aí veio o momento de retornar ao Brasil e começar uma nova etapa na minha vida. Logo que cheguei, recebi um convite do Jaguar para dirigir o Pasca, que ele queria ressuscitar. O convite foi no restaurante Plataforma. Depois me levou a um escritório no centro da cidade onde seria a nova redação, e onde me apresentou aos novos colaboradores. Eu me vi diante do Exército Brancaleone. Desisti da ideia ao ligar para Sérgio Augusto convidando-o para colaborar: “Você tá doida? Sai daí. Acabou”. O único a acreditar, em 1985, que o Pasquim poderia renascer das cinzas, era Jaguar, essa alma pura e generosa.

Verdade, o Pasca havia acabado e tínhamos dificuldade em perceber. Mas de vez em quando aparece alguém para nos lembrar que ele existiu. Dia desses veio uma estudante da PUC me entrevistar e, lá pras tantas, me perguntou o que havia acabado com o Pasquim. Respondi sem hesitar: “A democracia”. Ela de olhos arregalados, expliquei: “Antes da democratização, tínhamos um inimigo comum, a ditadura. Com a abertura, cada um adotou um partido e passou a defendê-lo. Ziraldo no MDB, Jaguar no PDT, Henfil no PT e assim por diante, e as desavenças explodiram”. Numa delas entrei certo dia em defesa de Brizola e do PT, sem ser petista ou brizolista, mas porque achava que tinham sido atacados injustamente. O pluralismo era um veneno para nós.

O Pasquim acabou, mas sinto saudades.

Saudades do Ivan, o mais anarquista dos anarquistas do Pasca, que zombava da minha timidez e, quando se ocupava de responder às cartas dos leitores, um dia veio me dizer, rindo, que um deles havia pedido para publicarem uma foto minha de biquíni. Nem pensar. Do Ivan que sofria quando o interpretavam mal — como no dia em que publicou uma dica sobre a morte de Vladimir Herzog e me parou no calçadão de Copa para falar de sua perplexidade com certas reações. Do Ivan que quase matou um office-boy porque ao anunciar numa roda o nascimento da filha, o jovem exclamara: “Oba, carne nova no pedaço”. Do Ivan que comprou uma briga enorme com a “máfia de branco”. Do Ivan que roía as unhas, refletindo muito sobre o que escrevia e um dia se desentendeu com outro office-boy (seria o mesmo?), que interrompeu seu silêncio perguntando: “Meditando, malandro?”.

Saudades do Ivan, que me ignorara solenemente no primeiro dia e depois se tornou o meu favorito naquele harém onde eu era uma das poucas mulheres, sempre atencioso e preocupado comigo. E ouso crer que fui a favorita dele, que nunca deixou de publicar um texto meu, nem cogitou de jogar um deles na gavetinha reservada exclusivamente para, dizia ele, textos sem humor: que ali desapareciam sem que o autor ficasse sabendo o que acontecera com eles. Acho que sentia um certo prazer em jogar os textos sem graça na gaveta. Afinal, o Pasquim era um jornal de humor.

Saudades do Francis. Por volta dos anos 1980 eu fazia uma imitação muito boa do episódio “meditando, malandro?”, que matava Paulo Francis de rir. Não convivi com ele no Pasquim, mas pelo mundo, porque ele já estava em Nova York e logo eu iria para a Europa. Eu me tornei sua amiga por meio da Sonia Nolasco, a Piauí, com quem ele se casou em Nova York. Acho que a amizade começou em Madri, onde morei em 1976/77: eu o levei à primeira festa do partido comunista na democratização da Espanha e depois fomos jantar com Gasparian e políticos do MDB que gestavam a democratização brasileira — fomos a um restaurante típico da Praça Maior e, para deleite dos nordestinos, comemos cabrito, que era o prato da casa; em Roma, onde vivi de 1979 a 1984, esteve muitas vezes na minha casa e adorava circular pela cidade em meu carrinho Mini Clubman, onde cabia com dificuldade. Eu, de volta ao Brasil, ele apareceu um dia no meu aniversário, com Millôr — e eu não tinha uísque pra oferecer, só vinho, que nojo! Em Nova York fez um mapinha para me ensinar a ir da Segunda Avenida para a Quinta subindo a Rua 47, onde ele morava e eu estava hospedada — eu me senti uma perfeita idiota, mas me divirto até hoje com a lembrança — era o Francis.

Saudades da Nelma, que faleceu pouco depois de eu retornar ao Brasil, de Henfil, do Millôr e até do Jaguar, que ainda está vivo e mora logo ali, com quem me encontro de vez em quando e que me deu uma charge, a primeira crítica à ditadura publicada na imprensa brasileira, representando um milico como um gorila, que está em lugar de destaque em meu escritório. Numa das vezes em que nos encontramos, num restaurante no Posto 6 ou num almoço em minha casa, recordou histórias divertidíssimas como aquele dia em que, preocupado com os assaltos aos colaboradores — o Pasca ficava numa rua que praticamente terminava numa favela — e temendo sobretudo por Carlos Drummond de Andrade, que, dizia ele, subia a rua para entregar suas crônicas e cortejar Nelma Quadros, ele, Jaguar, subiu o morro até a favela, mandou chamar o chefe do tráfico e fez um acordo com ele: o que queria para terminar com os assaltos? O cara respondeu: um orelhão. E Jaguar conseguiu fácil o orelhão.

Acho que lembrei tudo que minha memória pôde recordar e, no impulso das lembranças, mais uma vez, tive a certeza de que fiz parte de um jornal fantástico. O Pasquim foi fruto de uma época e nada surgiu depois em humor que se comparasse a ele. Existiu porque foi criado num tempo mais civilizado, menos polarizado. Não sei se sobreviveria aos tempos de hoje. Mas tenho certeza de que, desde aquela época, criou a expressão perfeita para definir os caras que hoje, 2019, estão nos governando. Afinal, são ou não umas ANTAS?

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