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O Pasquim

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Millôr Fernandes

Millôr Fernandes: “Olha, Léo [Léo Gilson Ribeiro], a história do Pasquim, muitas pessoas querem saber, vieram falar do Pasquim, o Pasquim foi uma coisa visivelmente importante na imprensa brasileira. Não é como na história escrita pelo Augusto Nunes em que o Samuel Wainer tenta transformar a diretriz numa coisa importante, diretriz foi uma coisa setorial. As coisas importantes dessa época... importante por um lado, pois em questão de venda foi O Cruzeiro, que ninguém pode ignorar, chegou a 750 mil exemplares, numa época em que o país tinha 40 milhões de... E do ponto de vista de realmente mexer com a mentalidade de jornalista, de quem informava no Brasil, foi o Pasquim. Houve outros movimentos, mas estou dizendo estes dois são visíveis. Agora, aquilo foi uma coisa inteiramente ocasional. De tudo o que eu passei na vida, fico impressionado com a programação não estar por trás disso. São coisas ocasionais, como a história é muito ocasional, está aí o Sarney que não me deixa mentir. O Pasquim seria uma longa história, mas vamos encurtar, foi feito por um saco de gatos. O Pasquim foi ídolo da juventude. A média de idade do Pasquim era 35 anos, a média de idade, você entende, 35 anos. Eu devia ter 42, 43 naquela época. Aquele negócio saiu com uma força extraordinária, cada um pensando o que a sua cabeça lhe ditava, e conseguiu uma homogeneidade de fisionomia que é extraordinária. Agora, ele tinha realmente talentos que você talvez não consiga reunir se você chamar para trabalhar por dinheiro. E aí nós estamos diante de uma coisa em que o ideal vence; de repente você precisou e todo mundo começou a trabalhar de graça. Agora, você tinha pessoas escrevendo extraordinariamente e desenhistas extraordinários. Dificilmente você vai reunir em um outro órgão tantos desenhistas bons e tantos escritores ou jornalistas bons. Aí, como sempre, começaram a chegar os urubus, alguns que já tinham entrado, uma roubalheira desenfreada, e o Pasquim sucumbiu a isso. Houve uma segunda fase, na qual eu entrei, como sempre também empurrado - desculpe Ethevaldo - quem salvou, quem ajudou a salvar Pasquim, surpreendentemente, quem teve a maior força, foi o José Aparecido e o Fernando Gasparetto [trabalhou como radialista, por vários anos, na Tupi FM de São Paulo], que nunca pediram nada, e nem teriam coragem de pedir a mim, evidentemente, nunca pediram nada. Deram o dinheiro que foi necessário naquele momento, foram os que mais me empurraram para entrar em 72, no Pasquim, para salvar aquele negócio que estava no fundo do buraco. E depois, eu também, por questão de ética, peguei todo o dinheiro que eles tinham dado, transformei em ações e devolvi para eles. Mas neste período de 72 a 75, que eu fiquei, nós conseguimos reorganizar o jornal, e reorganizado o jornal, foi aquela luta inacreditável, com prisão, aquela coisa toda... Quando chegou no número 300, que é um número histórico, 300, veio a suspensão da censura do nosso querido, dileto amigo Jaguar. Eu escrevi um artigo violento dizendo que o jornal seria apreendido. O jornal foi aprendido e não houve a volta da censura. O que é que qualquer jornalista faz diante disso? E eu pergunto ao doutor Augusto Nunes aqui. Você escreve um artigo muito mais violento, se não vem polícia para a máquina, você escreve um artigo muito mais violento. A dissensão entre nós foi isso. E eu saí porque o jornal estava salvo, tinha sede própria e tudo isso. Eu acho o Jaguar uma figura 50% idiota e 50% gênio, é uma figura que é encantadora, você não pode resistir. Eu resisto a tudo o que é defeito do Ziraldo. É um irmão meu que pode bater a minha carteira, ele pode me roubar, pode me dar porrada, mas três meses depois eu não aguento! Há um lado de amizade entre nós assim que superou as nossas próprias deficiências.”

(MILLÔR – PROGRAMA RODA VIVA - 03/04/1989)


(cartas do Millôr para O Pasquim)

Independência, é? Vocês matam de rir

“O MILLÔR ACHA QUE ELE É O INVENTOR DA LIBERDADE DE IMPRENSA”

(Cláudio Melo e Souza num momento de rara maledicência).

Meu caro Jaguar, você me garante que o Pasquim vai ser independente. Tá bem, Jaguar. O Claudius, o Tarso, o Prosperi e o Sérgio Cabral também acreditam nisso? Tá bem, Claudius Tarso, Prosperi e Sérgio. Podem começar a contagem regressiva. Independente, com larga experiência no setor, falo de cadeia (perdão, cadeira). Em 1946 trabalhei um ano na revista Papagaio, assessorado por J. Rui, Carlos Estevão, Roland e Carlos Thiré. Quando a revista já ia nascendo foi massacrada nas mãos dos parteiros de O Cruzeiro, a quem ela ameaçava com seu psitacismo. Em 1952 consegui publicar cinco números de Voga (“O melhor é o que está em voga”), uma revista no estilo de Veja, que ainda hoje pode ser lida sem vergonha. Morreu de tiro pelas costas dados por dois ou três asseclas de Leão Gondin de Oliveira, coronel do interior pernambucano, promovido por Chateaubriand a diretor dos Diários Associados. Ainda em 1952 (ano próspero) ajudei a fechar o esplêndido Comício (uma longa existência de 20 números) de Rubem Braga e Joel Silveira, onde projetaram, ó Deus, suas breves carreiras, Antônio Maria e Sérgio Pôrto. Comício morreu de leucemia administrativa mas teve a redação mais alegre do jornalismo carioca, onde só uma coisa era sagrada: a hora de fechar o expediente e abrir o Haig’s. Em 1962, dirigido pelo talento editorial de Paulo Francis e Mário Faustino, na Nova Fase da Tribuna da Imprensa, comprada então por Nascimento Brito, batemos um verdadeiro recorde: o jornal passou da glória à sepultura em apenas cinco dias. No governo JK consegui produzir na televisão dois programas de uma série chamada 13 Lições de Um Ignorante. Apesar de mais de cem terem sido publicados contra a interdição (havia falta de assunto na imprensa) o mais liberal dos governos brasileiros manteve a proibição até o fim. Em 1963, por motivos “religiosos” (mudaria a igreja ou mudei eu?), fui expulso de O Cruzeiro, onde trabalhava há vinte e cinco anos. Em maio de 1964 (data perigosa), ajudado, entre outros, por você, Jaguar, e o Claudius, Eugênio Hirsh, Yllen Kerr, Marina Colasanti, Ziraldo e Fortuna, consegui editar oito números do Pif-Paf. A revista recebeu dois ou três anúncios, mas assim que saiu foi chamada às falas pelo banco – é claro que não esperavam aquelas fotos-montagens do banqueiro – pressionada pelo Senhor Chefe da Polícia – é evidente que não gostavam daquelas fotos-montagens do governador, foi por fim fechada. Fiquei com alguns milhares de cruzeiros novos de dívida e o meu frescobol seriamente abalado.

Se não te basta isso, Jaguar, apostando com você como o Pasquim está cortejando o cano, eu te ofereço cinquenta casos de cerceamentos meus em teatro, cinema, tevê e jornalismo para cada um caso só que tenha havido contra, por exemplo, digamos, deixa eu pensar, digamos, por exemplo, O Globo. Morou? Foi despejado? Então deixa eu esclarecer; este primeiro número tem um anúncio da Shell. Pois ainda há bem pouco tempo a revista da Shell me pediu um artigo e não publicou porque escrevi a história de um elefante que brigava com um tigre. E olha que o elefante ganhava, pombas! Honra seja feita, não publicou, mas pagou. Só a Shell dá ao seu escritor o máximo.

Em suma, Sérgio Magalhães Jaguaribe, vulgo Jaguar, vai de Banda de Ipanema, que é mais melhor. Fazendo O Pasquim vocês vão ter que enfrentar: A) O establishment em geral, que, nunca tendo olhado com bons olhos a nossa atividade, agora, positivamente, não vê nela a menor graça. B) As agências de publicidade, que adoram humor, desde que, naturalmente, ele seja estrangeiro, lá longe, feito pelo Mad publicado no Play-Boy ou filmado pelo Jaques Tati (“Que mordacidade!” “Que mendacidade!” “Que crítica social!” “Que sempiternos pífaros!” ;C)A igreja, que, depois de uma guinada de 360 graus, é extremamente liberal em tudo que seja dito por ela mesma. D) A Família, as Classes Sociais, As Pessoas de Importância, Os Quadrados, Os TFM, Os Avant-Chatos que se fantasiam de Avant-Garde, etcetera.

Não estou desanimando vocês não, mas uma coisa eu digo: se essa revista for mesmo independente não dura três meses. Se durar três meses não é independente. Longa vida a essa revista!
P.S. Não se esqueça daquilo que eu te disse: nós, os humoristas, temos bastante importância pra ser presos e nenhuma pra ser soltos.

Millôr Fernandes

Escreve o leitor (o leitor é o Millôr)
Establishment e a netinha

Meu caro sr. Claujatar Prosca, diretor desse Pasquim: eu não gostei de vocês cortarem meu artigo não. Se vocês começam a censurar-me desse jeito, como é que eu vou conseguir fechar a revista? Assim não vale, pombas. (Cuidado, revisão, não deixe sair no singular, que é feio.) Eu escrevo um artigo bacana às pampas, onde digo o que estou pensando, e vocês vão e acham que assim também é demais? Que é que vocês estão pretendendo – ser mais medrosos do que eu? Isso eu não admito. Está pra nascer o homem que tenha essa coragem. Lembro-me que uma vez – só pra vocês verem, hein? – eu me meti a besta com um cara, ali no antigo Zeppelin, que – não sei se vocês sabem – ficava no mesmo local em que fica hoje o novo Zeppelin. Falta de imaginação do Ricardinho, zorra! (Atenção, revisão, é com Z mesmo, hein?) Mas, como eu ia dizendo e a revisão me interrompeu, ali no Zeppelin – era no Zepelin que eu estava? Ah!, era –, naquela parte onde antigamente ficava o Oscar e hoje fica o bidê (atenção, revisão, é com letra minúscula mesmo, porque o com letra maiúscula esnoba o Zeppelin), apareceu um sujeito e retratou o Oscar (isto é, disse o que pensava dele, tim-tim por tim-tim, ou melhor, Telê-por-Telê, que eu sou jovem Flu há mais tempo do que o Nelsinho Mota). Eu aí fui e duvidei da masculinidade do cara gritando: “Topobicha é Gigio!” (Naquela época não o havia, mas ainda mas vá lá o anacronismo; que é como o Ibra chama o colunismo dele.) Eu, com a inapetência para brigas que Deus me Deus (repararam no eufemismo pra medo?), já contava com a reação do cara, mas não sabia que ele era campeão dos mil metros rasos. Quando ele partiu pra cima de mim eu corri, mas ele correu atrás. Sabem o que aconteceu? Cheguei na Chácara 92 com três quarteirões de vantagem.

Isso é só pra provar que vocês deviam deixar sair, por exemplo, a palavra governo. Bola! (Revisão, nada de plural, hein?), com o medo que eu tenho, jamais iria usar a palavra governo me referindo ao nosso. É claro que me estava referindo ao governo de Alsácia (aquela coisa que se come na salada.) De modo que, se vocês querem continuar a receber a minha tremenda colaboração (sou tarado pra trabalhar de graça), me ofereçam uma fortuna e eu olho pro alto, assobiando desafinado. Agora, deem-me uma coluninha grátis e eu tou lá. Eu tenho a impressão de que, se o homossexualismo não desse dinheiro, eu há muito tempo…

Bem, cala-te boca.

Então, ficamos combinados, dagora em diante toda vez que eu falar em governo é o do Paraguai, sim, meus garotos? (Ué, não é que eu já peguei o jeito?) Só uma coisa mais. Vou processar vocês. Porque cortar a palavra governo eu ainda suporto. Mas trocá-la (gostaram da mesóclise no fim? Eu não sou feito o Jânio que só põe mesóclise no meio. Eu taco ela onde Deus mô-la inspira. Mas se insistem, da próxima vez mancar-me-ei, tá?) pelo epíteto establishement, essa eu não aguento. Que é que vai pensar meu leitor do Meyer? Que eu aderi às modinhas da roda? Que eu vou passar a escrever cri-cri? Vou repetir slogans. Conchas! (Revisão, cuidado com o n. Tirante isso, pode ir no singular ou no plural.) Passei a vida inteira irritado com as últimas que eu sei serem velharia recauchutadas – vivo desconfiado de qualquer ideia que tenha mais de seis meses e vocês me vêm com esse vocábulo serôdio (dicionário, rápido!) e alienígena. Querem desmoralizar-me? Vão dizer por aí que ando enturmado! Que entrei pro partido! (Qualquer partido.) Que sou escoteiro! Que comungo e resmungo! Essa não, como dizia a minha velha, sempre que recolhia maçãs no cais do porto. Cortem, mas não troquem. Sobretudo não troquem por palavras tão establishment como establishement. Sou um inventor, como Edson, não copiador, como a Xerox, ou um repetidor como aquele funcionário que fica fazendo tã-tã-tã-tã o dia inteiro na telefônica. (Ele agora anda trabalhando demais, coitado, está até com sua homenagem). E basta!

Voltarei, como dizia MacArthur (um dos fundadores do Mac).

Millôr Fernandes

PS: Morou na originalidade do título, Claujatar Prosca. Em vez de usar a vovozinha eu usei a netinha. Pra frente é isso!


Caro senhor Claujatar Prosca, diretor do Pasquim.

Alamares pra todos vocês!

Sem querer fazer a nigromancia de sua revista, já constato nela um declínio fatal. Comparando-se o primeiro e o segundo número conclui-se imediatamente que o segundo número está muitíssimo pior do que o terceiro. Embora esse seja um declínio para trás (mais conhecido como síndroma de Topo Gígio), ele pode se transformar rapidamente num declínio pra frente, pois meu olho cirúrgico (não uso olho clínico) viu logo que a vaca leitera da publicidade não deu seu precioso líquido na presente edição. Terá se mandado pro brejo em definitivo ou foi só realizar a alquimia do capim? Diz a publicidade da publicidade que “quem não anuncia, se esconde”. Será que a sua revista já é daquelas tantas em que o cara anuncia e se esconde ao mesmo tempo? (Governos de Estado e outros bichos?) Pois anúncio visível não vi nenhum. A não ser que essa campanha contra o Topo-bicha seja patrocinada pela Mickey Mouse Corporation. E aqui entro eu, como dizia o Ibrahim saindo da TV Globo. Como gosto de ajudar os fracos e oprimidos (sem mim o Papa Doc jamais teria chegado ao que chegou) envio-lhe um anúncio de mim mesmo, pois não pertenço a esse pequeno grupo de escritores que só se vendem e não anunciam. Eu, não –, recebo às claras mas pago pela tabela. Afinal, me considero um produto como qualquer outro. Isto é: um produto do meio. Como diria o Topa-Tudo: “Me consome, Agildinho, me consome!”

Millôr Fernandes.

The end ou A DESPEDIDA QUE NÃO FIZ

SHANE!
SHANE!

Nelma, nume tutelar do Pasquim, de onde saí em abril de 1975, vem, desde então, a cada nova efeméride do semanário, insistindo pra que eu volte a escrever aqui, como se isso tivesse maior importância, pra mim ou pro jornal. Não tem Nelma; a vida continua – continuou, né? –, o Pasquim segue seu destino, tantas vezes brilhante, tantas vezes corajoso, tantas vezes leviano, e eu sigo o meu destino, com sincera autocrítica menos corajoso e ... menos leviano.

Nestes últimos quatros (1) anos o Pasquim fez edições comemorativas de quatrocentos números, quinhentos números e não sei mais o quê, tudo marcos-motivos (o jornal precisa viver) promocionais e eu sempre me recusei a dizer o que não tinha mais a dizer, apesar de carinhosa insistência.

Mas agora o que se comemora são dez anos de vida do jornal, pô! (2), uma senhora efeméride (3)! E por isso, porque o Pasquim jamais fará dez anos outra vez, eu volto a escrever. Mas apenas para a despedida que não fiz em abril de 1975.

Leitores mais antigos e atentos estarão lembrados de que no número 300, o Ministro da Justiça, Dr. Armando Falcão, através de seu porta-voz, Dr. Romão de Tal, mandou suspender a censura deste jornal. Por quê, nunca ninguém soube, nem jamais alguém saberá. Ao que tudo indica, foi uma cilada. Que tivemos que enfrentar. No artigo publicado no primeiro número livre (4) do jornal (“Sem Censura”) prevíamos que o jornal seria apreendido. Foi. Apreendido e, mais uma vez, processado.

Quando entrei no Dops (quantas vezes cada um de nós, redatores do Pasquim, entramos naquelas salas e fomos interrogados por aqueles sinistros idiotas?), eu, um homem já então na quadra dramática dos cinquenta anos, pensei: “Deus do céu, que é que estou fazendo aqui? Aqui estou, sozinho, numa luta inglória, eu que não pertenço a nenhum partido, a nenhuma religião, clã ou grupo, eu, que acho toda ambição de poder uma ambição neurótica, que tenho alimentado meu ceticismo na visão de grupos violentos serem derrubados por grupos ainda mais violentos; que é que mais uma vez estou fazendo aqui? É bem verdade que há a tortura, sobre a qual não se pode racionalizar – tem-se nojo e basta. Mas pode-se lutar contra isso sem qualquer cobertura-partidária, econômica, militar, religiosa? Estou aqui, atravessando estes portais, sozinho e em mangas de camisa, numa idade em que todos os de minha geração são Grandes Advogados, Generais Impávidos, Líderes Impérvios, Membros Ilustres de Academias, donos de títulos, uniformes e posições que “eles”, de alguma forma, reconhecem e respeitam. Mas como exigir que respeitem a mim que a vida inteira recusei me “institucionalizar”, que sou apenas essa coisa indefesa chamada ser humano?”

O fato é que, sem nenhuma bravata, até com bastante senso de minha insignificância, eu sabia que, se morresse naquele instante – hoje isso pode parecer temor exagerado, mas, naquela época, ninguém podia ter certeza, ao entrar em qualquer departamento da polícia política, de sair com vida (5) – teria, no máximo, três linhas na quinta página dos grandes jornais.
Bem, encurtando a história, depois do número trezentos, com polícia ou sem polícia, bem o número 301. Apesar do 300 ter sido apreendido, o número 301 continuava, ironicamente, sem censura. Ora, sou um homem cheio de medos, como quase todos vocês. Bastam dois tiras de 1,80 de altura baterem à minha porta à meia-noite que tremo de medo. Um general, devidamente fardado, me interpelando em seu quartel, me enche de terror. Mas ainda está pra aparecer o general que me intimide pelo telefone ou o sistema de governo que me apavore por antecipação, e me impeça de escrever o que penso sem botar polícia na boca da rotativa.

No processo aberto contra nós (vários redatores do jornal) pelo Dr. Armando Falcão (sua letra incaracterística, à margem do processo, exigia apuração rigorosa) éramos todos acusados de crimes de lesa-pátria entre os quais os mais nefandos, sem dúvida alguma, eram duas referências pouco respeitosas ao traseiro de Ms. Jacqueline O. Os juristas da ditadura pretendiam, evidentemente, taxando-nos de imorais, esvaziar o conteúdo político do jornal.

Dessa forma, eu não tinha saída. Conhecendo o Dr. Armando Falcão há vinte anos era sobre ele que eu devia escrever o próximo artigo, no número 301. Ele se fizera um candidato natural a essa biografia. Mas isso seria fechar definitivamente o jornal.

Não houve briga no Pasquim, como muitos podem ter pensado, nem mesmo discussões em torno de ideias, ideais, “posições” e o escambau. Na verdade, não houve nada, nem mesmo a necessidade de um diálogo esclarecedor.

Minha missão estava cumprida. Em 1972 eu tinha aceitado a tarefa de dirigir a salvação do jornal, àquela data no fundo do poço. Minha tarefa era apenas a do catalisador, já que o esforço foi conjunto, de muitos, dentro e fora do jornal. Em abril de 1975, número 300, o jornal estava salvo. Ainda fraco, mas organizado – com casa própria – e economicamente solvente. Já caminhava com seus próprios pés, começava a editar livros, podia até correr pequenos riscos. Mas ter ajudado a salvá-lo não me dava, é claro, nenhum direito de enterrá-lo. Ao mesmo tempo, eu não podia permanecer no jornal sem escrever exatamente o que pensava. Só faço concessões em horas extremas, nas situações ditas limite. Essa hora tinha passado.

Sem falar com ninguém, peguei o meu boné, montei o meu cavalo, e desapareci na linha do horizonte.

1) Insisto em que 4 é plural.
2) Ah, o pô do Pasquim! Que abalo moral, que orgasmo nacional quando ecoou pelo Brasil!
3) Justiça que ninguém deixa de fazer ao Pasquim é a de ter liberado a linguagem falada e escrita do país. Hoje, por exemplo, nesta fase, posso escrever, indiferentemente, “uma senhora efeméride” ou “uma puta efeméride”. O Pasquim acabou com a diferença de classe entre puta e senhora. Como adjetivos, claro. Com relação aos substantivos o jornal é altamente conservador.
4) Como um táxi.
5) Quem disse aí “Continua assim” ganhou a lata de pessegada.


MILLÔR FERNANDES

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