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O Pasquim

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Flavio Rangel

PRISÃO
POR FLÁVIO RANGEL

SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA
Flavio Rangel


Quando cheguei ao local onde iria passar sessenta dias desta vide vã, fui recebido com um prolongado psssssiu.

— Estamos examinando o conteúdo deste vidrinho verde — disse Tarso.

— Julgo tratar-se de kriptonita. Pois já tentei usar meus super-poderes para sair daqui, em vão. Vê ai se você descobre o que é.

Peguei o vidrinho, cheirei, meti o dedo e decretei geléia.

— Pelo gosto, parece ser uma certa qualidada de patê de foie, duma região do pais de Geles — contestou o Grossi, que se revelou um consumado gourmet. (Nosso diretor financeiro é homem de hábitos civilizados)

— This is pure trash — definiu o Paulo Francis, folheando a biografia de Freud e anotando os erros de Ernest Jones.

Maciel jurava que a curiosa matéria verde era um extrato de certas ervas asiáticas usadas pelos budistas, quando Fortuna do banheiro e lançou luz nas trevas.

— Me dá meu Dippy-Di-Doo! — e atirou-se ao vidrinho, cujo conteúdo passou nos cabelos.

Fortuna usa Dippy-Di-Doo! Diante de tal fato, nosso moral baixou muito. Mas a solidariedade é a virtude que mais se deve quando se vive nas condições em que vivíamos, de modo que todos fizemos um ar de compungida compreensão. Sérgio Cabral, que rolomagava, rolomagando ficou. Este aparelho tem virtudes extraordinárias. Sérgio entrou com noventa e três centímetro de barriga, e saiu com cento e desessete. Em compensação seus pulsos estão duas manoplas.

Passei a inspecionar o lugar onde ia viver. Desde logo, considerei-o extremamente sofisticado, não tinha aparelho de televisão. O bom gôsto de meus anfitriões, nesse aspecto, foi coisa que muito me tranquilizou. Estava arrumando meu cantinho quando Ziraldo me sussurrou:

— Hora das orações.

Todos ajoelhados, uma espécie de litania.

— Flag nosso que estais em Copa, purificado seja vosso uísque, venha nós o vosso maitre, seja ouvida a vossa música, assim de noite como na madrugada; o caviar nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai nossas dívidas ou permiti que elas sejam resgatadas com o Diner’s.

Percebi logo que o pessoal tinha organizado perfeita vida comunitária, embora muito diferente de uma família comunal, como me esclareceu o Maciel. A meia hora de silêncio foi quebrada, aos dois minutos e meio, pelo Francis.

— This shit is very, boringy — e lançou as moscas o livro de Albert Speer. Aí começou a bora da especulação. Todo dia tinha uma hora de especulação.

— Acho que tudo isso terminará logo — começou o Grossi. O que ocorre conosco terá graves consequências no equilíbrio de balança de pagamentos com a Escócia. Poderemos esperar alguma interferência do premier Heath. Calculo uma queda no consumo semanal de uísque à volta de novecentos e trinta litros por mês.

— Isso sem falar na sensível diminuição do movimento das casas noturnas — acrescentou o Sergio Cabral — O Zugo Celidônio foi abrir novo botequim em São Paulo, com certeza por nossa causa, de nossa ausência.

— E o turismo interno, então? concorreu o Ziraldo. — Sem nós em Ipanema, o Rio de Janeiro não continua lindo, não continua sendo.

— Sem falar nas relações internacionais — acrescentou o Tarso. — Passa pela cabeça de alguém que Odile Rubirosa volte sem me ver?

— E provável que Paulinho Garcez esteja tratando desse assunto. Você sabe como somos — um por todos, todos por um — disse o Jaguar. Terminadas as especulações, oTarso se contemplava no espelhinho do Grossi, interrogando: "Espelhinho, espelhinho, haverá alguém mais belo do que eu?". O Grossi guardava o espelhinho na sua delicada necessaire, que guarda também alicatinho de unhas, alicatinho de pele, alicatinho pra outras coisas que não passo dizer, lima, lixa, pentinho e polidor. Uma gracinha.

O Fortuna a tudo olhava com olhar meditativo; o Fortuna é uma personalidade visual; o Fortuna não fala. Em sessenta dias, o Fortuna pronunciou apenas quatro frases:

1) Me dá meu Dippy-Di-Doo;

2) Meu Dippy-Di-Doo está acabando;

3) Acabou-se o meu Dippy-Di-Dco;

4) Vou comprar outro Dippy-Di-Doo.

Em compensação, o Ziraldo canta. Quando começava, o pessoal reclamava: "Isso é uma tortura", "Não posso tolerar tal choque", "Exijo um mínimo de respeito a meus direitos humanos". O repertório é eclético e variado: Maringá, Luna Lunera, Saudades de Diamantina, Meu Cavalo Baio, À Beira do São Francisco, Adeus, Porteira Velha e Coretos de Sabará.

Quando o pessoal se atirava sobre ele e o amordaçava, ainda conseguia resistir:

— Vocês, com sua música, esqueceram o principal! Que no peito do desafinado (no fundo do peito) bate calado — no peito de um desafinado também bate um coração!

No dia seguinte, à hora da especulação, Jaguar especulava na melhor tradição do Barão de Itararé:

— Não há motivo algum para receio. Vamos sair daqui, ou não; se sairmos, ótimo; é isso mesmo que queremos. Agora, se ficarmos aqui, teremos um processo ou nos***. Se não houver motivo, esplêndido; vamos embora tranquilitos. Mas havendo, seremos julgados — e aí, condenados ou absolvidos. Se absolvidos, rnagnífico; muita praia e muito chope. Mas se formos condenados, ganharemos pena leve ou grande. Se for leve, melhor: ficamos aqui um tempinho e depois vamos embora. Se nos derem pena dura, seremos anistiados ou não. Mas se não houver anistia, cumpriremos a pena. Morreremos durante seu tempo, ou não. Mortos, só teremos duas alternativas: céu ou inferno. E mais provável o céu, já que somos rapazes de excelente formação moral. Se formos para o inferno... bom, se formos para o inferno...

— Se fomos para o inferno? perguntavam ansiosos.

— Bom aí é fogo.

A especulação é novamente interrompida pelo Francis:

— I can assure that Krushev Memoirs are real! — exclamava o Conde austríaco, folheando o Life.

E diante de tal afirmação, absolutamente tranquilizadora, fomos para a caminha.

Para acordar, o Tarso inventou processo muito mais eficiente que é a alvorada. Consiste em saltar da cama e dirigir-se ao banheiro, derrubando no caminho todos os vidros que encontra à frente, fazendo os sapatos voarem, liquidando quatro sprays de Neocid de uma vez e num jato só, e inutilizando para todo o sempre o que houver de pasta de dente, sabonete, cream crackers e cigarros. Esta sinfonia de sons é completada com uma amável saudação aos companheiros:

— (*) (*) (*)!!! (*)! (*) (*), (*) (*): (*) (*) (*)!!!

Diante da cena. o Maciel é sublime. Sorri, diz "paz e amor", levanta-se, vai à folhinha improvisada na parede, acrescenta um x ao dia que começa e mergulha em sua lista. No início eu ficava nervoso ao vê-lo às voltas com uma lista, pois "lista" é palavra que não pretendo ouvir tão cedo, em virtude de certos detalhes expostos com mais profundidade em outro local desta edição. (Vide artigo de Paulo Francis). Mas como Maciel já nos dera uma conferência sôbre Spinoza, julguei que fosse retomar suas funções de professor de filosofia, e que na tal lista constassem os nomes de Kant, Hegel, Locke, Hume, etc. Tranquilizai-vos, bichos! O Lula continua nas suas pesquisas anti-racionalistas. Estendeu-me a lista:

— São umas providências que preciso tomar quando sair daqui — sorriu-me o guru.

Lista: um carneiro, um galo branco, um galo preto, um galo vermelho, onze pacotes de velas, uma dúzia de rosas brancas, defumadores, um ganso, duzentos e doze garrafas de Pitu. E diagramava seus orixalás, xangôs e efós.

— Deus está solto — concluía o Lula. O Sérgio Cabral sofria no rolomag.

— Não aguento mais o rádio alto dos vizinhos ai do lado — reclamava o gordinho. -- Considero uma verdadeira coação moral ser obrigado a ouvir, o dia inteiro, esse céu de certo receio. (Vide artigo de Sérgio Cabral). Quando chegou o Pasquim da Solidariedade, o pranto jorrou-nos em ondas, resistir quem-há-de? Pensei que todos chorassem de emoção, uma coisa linda tantos jornalistas trabalharem por nós, mas esse pessoal aqui do pasca é fogo. O Tarso é quem sofria mais:

— Durante setenta o dois números fizemos o possível para manter o mais baixo nível intelectual do nosso jornaleco, e agora me aprontam este traição? Estamos fulminados!

O Sérgio suava de pavor:

— O assunto é grave; o público vai perceber a diferença de qualidade entre eles e nós. Estamos fritos.

O Maciel, em pânico:

— O Glauber Rocha apresentava-se um notável estilista. Nossa carreira está encerrada.

— Quem é que escreve nesse número, afinal? — perguntei aflito. Quando vi os nomes de Rubem Braga, Antonio Callado, Cony, Fernando Sabino, Dalton Trevisan, Otto Lara, Carlinhos de Oliveira e mais de cinquenta nessa base, percebi que o desemprego rondava a minha porta.

— I want to go back to Bahia — suspirou o Francis.

De forma que lutamos com denodo para estarmos aqui de novo com vocês, a fim de tentar de novo acostumá-los à nossa mediocridade, que com tanto êxito mantivemos por mais de um ano. É o que tento fazer neste artigo.

Porque vamos precisar de muita imaginação, nós que vivemos sessenta dias sustentados exclusivamente nela. Claro que aprendemos muita coisa, pois certas experiências não se transferem; mas não foi propriamete uma curtição. Mas não tem nada não; já deu pra perceber que a inteligência, o humor, o pensamento, só podem ser extintos quando se extingue totalmente a consciência.

(FLÁVIO RANGEL - O PASQUIM Nº 80 - 14 a 21/01/1971)

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