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O Pasquim

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Martha Alencar

Quando o Pasquim nasceu, nascia o meu primeiro filho.

Foi no ano de 1969.

Eu era editora interina do Gabeira no Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil e estava de licença-maternidade, lidando com uma onda avassaladora de emoções que tomou o meu corpo por inteiro e o meu cérebro, que resistia com todos os meus neurônios àquele torpor, àquela felicidade difusa que se apossava de mim cada vez que segurava Pedro no colo.

Claro que eu estava rachada ao meio, já que o mesmo ser em estado de beatitude maternal era uma jornalista em franca ascensão na carreira e também uma militante política ligada a uma organização clandestina, a Dissidência GB. A gravidez se passara entre reuniões de pauta no jornal, assembleias de classe, incursões em fábricas durante a madrugada e algumas correrias fugindo da polícia.

E assim, em meio à minha revolução interna e ao combate à ditadura militar, a criação do Pasquim não me mobilizou.
Mas Jaguar, Sérgio Cabral, Ziraldo e Tarso eram amigos e companheiros antigos de boemia e vida noturna que eu e o Carvana, ainda recém-casados, nunca abandonamos. Assim como nunca deixei de exercitar o humor como jornalista, no jornal escola O Sol — um precursor do Pasquim em renovação de linguagem —, ou como cartunista, colaboradora do Cartum JS (do Jornal dos Sports), quando Ziraldo dizia que eu era a Nair de Teffé da publicação.

Tarso, de quem eu era mais próxima, me pediu um artigo para o primeiro número. Achei legal largar as mamadeiras e fraldas e minhas preocupações com os destinos do país por alguns momentos e escrever um artigo, sem compromisso.

Claro que o tema foi minha experiência mais recente. No artigo publicado na primeira edição, “Na Escola das Gravidinhas”, abri geral, sem pudor, minhas contradições de mãe, jornalista e militante rumo a uma sala de parto acreditando que a respiração “cachorrinho” aprendida no curso de Parto sem Dor teria o dom de controlar aquela dor que me atravessava em intervalos cada vez menores. Modestamente, o artigo agradou. Meu amigo e guru Armando Costa morreu de rir, o que para mim era como receber uma medalha.

Claro que tanta onipotência não ia dar certo. Pouco meses depois acabei tendo que fugir às pressas do país ao ser avisada, ainda na portaria do JB, que eu estava sendo procurada, passados alguns dias do sequestro do embaixador americano, quando a cara do Gabeira começava a aparecer nos cartazes de “terroristas procurados”. Assim eu e o Pasquim nos afastamos. Ainda mandei um ou dois artigos de Paris, mas seguimos outros caminhos.

Quando voltei ao país, o Pedro já com 2 anos, a onipotência em baixa total, uma sensação de quem perdera a guerra, muita culpa pelos amigos e companheiros mortos ou presos, afastada da grande imprensa, juntando os cacos com o Carvana para seguir adiante, reencontro O Pasquim. Ou melhor, meu amigo Tarso de Castro.

Mais uma vez Tarso me chama para trabalhar com ele.
Desempregada, acossada e cansada, topei na hora o generoso convite.

O Pasquim era uma festa quando entrei na casa-redação da Rua Clarice Índio do Brasil, em Botafogo, ainda com a forte lembrança dos dias cinzentos e angustiados em Paris. As discussões e ideias circulavam em alta velocidade pelas salas do segundo andar da casa, onde Tarso, Maciel, Paulo Francis, Paulo Garcez, Ivan Lessa, Jaguar, Fortuna e Sérgio Cabral se esgrimiam em tiradas geniais disputando o título de o mais brilhante. Reuniões de pauta? Aconteciam de forma pontual, nem sempre organizadas como o que convencionávamos chamar de reunião de pauta nas redações que eu havia frequentado. Tarso realmente precisava de alguém com experiência em fechamento para ajudá-lo a fazer o jornal chegar as oficinas e às bancas.

Ao me convidar para a empreitada, me oferecera o cargo de chefe de redação. Claro que era um delírio, chefe de redação de quem? Alguns dos jornalistas, chargistas e cartunistas mais brilhantes do país. Millôr Fernandes reagiu na hora: o quê? Essa garota chefe de redação??? Afinal, desde quando egos têm chefia? Consegui convencer o Tarso de que era melhor dar razão ao Millôr e entrei no expediente como Secretária de Redação. O que, na prática, consistia em ler e analisar as colaborações entregues pelos gênios e me debruçar com o Tarso sobre o espelho do jornal, definindo os espaços e os destaques, ou seja, administrando os feudos, pautar entrevistas, revisar as transcrições, procurando não criar inimigos naquela batalha de egos masculinos. Pouco escrevi, muito menos desenhei.

Fora uma certa tensão interna que já prenunciava uma divisão que explodiria meses depois, fazer o jornal era realmente uma festa. A certa altura do dia o uísque começava a rolar, o papo extravasava da redação para as mesas dos bares.

Criávamos e produzíamos o jornal driblando a autocensura e a censura prévia como se não houvesse amanhã. Cada vez mais o jornal se firmava como uma contestação irreverente e debochada à ditadura e a qualquer forma de autoritarismo. Sua popularidade crescia — já estávamos chegando aos 250 mil exemplares e os jovens aderiam incondicionalmente à linguagem irreverente e demolidora do jornal.

Fomos convidados várias vezes para palestras e debates nas grandes universidades e nos apresentávamos aos alunos em auditórios lotados. Os cardápios dos restaurantes badalados traziam pratos especiais com os nossos nomes (lembro de pedir em uma tratoria de Botafogo um fettuccine à Martha Alencar e reclamar que tinha muito creme na minha homenagem...). O palavreado que nos servia para driblar a censura (sifu, putzgrila, pqp, duca) virou gíria corrente na boca do povo e da garotada em geral. Nos dedicamos a solapar o regime moralista e ditatorial com uma alegria feroz.

Lembro quando Fortuna, Haroldo Zager e eu passamos dias produzindo uma arte em que as iniciais de Roberto Marinho foram moldadas em massa de pão em formato de fezes retorcidas pintadas com spray dourado e marrom, adornadas com caroços de feijão da cozinha da casa e moscas caçadas diligentemente pelo Haroldo. O resultado foi sensacional, uma premonição do emoticon do cocô literariamente aplicado. Mas a censura vetou. Mantivemos o artigo, que, pra variar, demolia o dono do império, mas refizemos o título em letraset. Só as moscas escaparam da tesoura, lembrando que algo cheirava mal naquele título. Mas valeu o trabalho, lembro até hoje disso com prazer.

Quanto à censura, a estratégia semanal era despejar sobre eles uma dose gigantesca de cartuns inofensivos, mas intrigantes, para distrair os censores e conseguir passar o que realmente interessava. E como funcionava... Lembro quando a censora designada na época aceitou analisar o material em nossa redação. De posse de um antigo recorte do Última Hora flagrando a censora em um momento etílico, preparamos a armadilha: uma irresistível bandeja com uma bela garrafa de Logan, muito gelo e todo o charme da equipe distraindo a censora. Tiro e queda. Deixou passar o que não devia, acabou sendo afastada.

Até que, em 30 de outubro de 1970, caiu a ficha para eles: aquele bando de loucos e bêbados irreverentes era realmente um perigo para a ditadura.... cadeia neles! Da noite para o dia, rapidamente, prenderam Ziraldo, Maciel, José Grossi (diretor de publicidade), Haroldo Zager, Paulo Francis, Paulo Garcez, Sérgio Cabral, Fortuna, Flávio Rangel e, last but not the least, Tarso de Castro. Na gráfica, o jornal rodou com uma charge inspirada no quadro de Pedro Américo sobre o Grito do Ipiranga em que D. Pedro I, espada ao alto, bradava “Eu quero é mocotó”. Era a expressão curta e grossa do perigo que representávamos para a ditadura. O número d’O Pasquim com a charge do mocotó foi apreendido antes mesmo de chegar às bancas e o bando de facínoras, levado para o QG dos paraquedistas.

Entramos no período da “gripe que assolou O Pasquim”...

Quando a gripe assolou O Pasquim, eu estava grávida de quatro meses da minha segunda filha, Cacala.

Estava em casa me recuperando da virada de fechamento do número que acabava de ser apreendido. Ainda sem saber de muitos detalhes, pensando se voltaria pra redação mais tarde, com quem poderia me articular.

Depois do almoço, a campainha tocou e policiais à paisana invadiram meu apartamento, me empurraram com o revólver nas costas para o quarto onde Pedro dormia no cercadinho e mandaram que eu me aprontasse rápido: estava presa, que levasse algumas coisas básicas. Aturdida, não peguei escova de dentes e calcinhas, não consegui arrumar uma maleta básica. Tentei resistir, disse que não tinha com quem deixar o neném. Levada para a calçada do prédio, fui empurrada para uma Kombi sem identificação e circulei com eles durante muitas horas, ouvi muitas ameaças, conselhos para colaborar no interrogatório. Levada para uma sala isolada, passei a noite respondendo a perguntas sobre o Tarso e os editores.
Lembrei do Millôr e agradeci ao seu machismo, que me colocara no cargo de Secretária de Redação. Sabia que aquele major baixinho e enfezado não saberia o que era uma secretária de redação. Me agarrei ao cargo, falei como datilografava textos, atendia o telefone e secretariava os “garotos”, que eram ótimos, muito engraçados, não sabia de nada. Na verdade, havia muito rancor e pouco conhecimento nas perguntas: “Você sabe quanto ganham os seus chefes? Sabe que ganham dez vezes o que você ganha? Como pode uma mulher trabalhar sozinha com um bando de machos de madrugada?”. Já era quase meio-dia no dia seguinte quando me deixaram na calçada de casa, sem explicações. Soube mais tarde que fora levada para o Quartel da Brigada de Paraquedistas e que o comandante da corporação na época, general Hugo Abreu, mandou me soltar quando foi informado de que prenderam uma jornalista grávida casada com um ator.

Solta, senti que havia recebido um habeas corpus e corri para a redação. Henfil havia se refugiado na casa de um amigo e Millôr Fernandes estava em seu atelier em Ipanema. Ao chegar ao Pasquim, dei de cara com um bilhete de Chico Buarque pregado na porta manifestando sua solidariedade e se colocando à disposição. Aquilo me aqueceu a alma. Glauber Rocha nem pensou, chegou enfurecido, gritando contra os podres poderes e ficou para o que desse e viesse. Encontrei Miguel Paiva e Barbara Oppenheimer, mulher do Tarso que já trabalhara na administração do jornal e que assumiria a gerência da empresa. Henfil se articulou conosco e procuramos o Millôr. Começamos a produzir o próximo número e não paramos mais até a libertação dos presos.

Não estávamos sozinhos. Claro que um pequeno pelotão dos paraquedistas (de verdade) ficou tomando conta da casa, mas a solidariedade e a ajuda chegavam por todos os meios. O telefone tocava sem parar, alguns dos maiores artistas do país queriam colaborar, a imprensa internacional espalhou a notícia.

Millôr e Henfil produziam sem parar, exercendo ao máximo o humor corrosivo do hebdô. Para enlouquecer nossos algozes, eles assumiam muitas vezes os estilos Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Francis, Flávio Rangel. Eu e Miguel recolhíamos as colaborações e fechávamos todas as semanas o jornal em nossa batcaverna da Clarice Índio do Brasil. Capas e edições históricas foram publicadas nesse período com o talento de Henfil, Millôr e Miguel Paiva e a solidariedade geral de amigos, jornalistas, cartunistas, artistas. A maior dificuldade era ter a cada semana material editado e paginado para substituir na hora as páginas que os censores cortavam. Para fechar uma edição, produzíamos praticamente duas.

Quando a turma da gripe do Pasquim voltou, em janeiro de 1971, eu já estava no sétimo mês de gravidez, cansada, louca pra passar o bastão. A circulação caíra dos 250 mil exemplares para menos de 100 mil. Para um jornal que não vivia de publicidade, a situação era precária. Mas O Pasquim estava ali, vivinho da silva, pronto para novas aventuras. Só que a vida real estava muito pesada. Nem uma linha de publicidade, venda em queda. Uma guerra.

A divisão quanto à linha editorial, que já vinha tensionando o grupo na época do auge do sucesso, agravou-se na volta da prisão. Duas tendências disputavam as decisões de pauta, entrevista, paginação, chamadas: um grupo liderado pelo Tarso, que pensava um jornal de humor, sim, mas antenado nos fenômenos de comunicação de massa, um jornal popular. Outro grupo, liderado por Millôr, Ziraldo e Francis, pensava algo como a antiga revista Senhor, só que em offset preto e branco e papel jornal. Os que vinham de redações de jornais diários fechavam com o Tarso, outros só queriam botar o jornal na rua e produzir, como Sérgio Cabral, Jaguar e Henfil. Uma tumultuada entrevista com Flávio Cavalcante encerrou o ciclo. Tarso e Ziraldo chegaram às vias de fato diante do entrevistado, que deitou e rolou.

Eu me afastei em “licença-maternidade”. Meses depois recebi outra vez uma visita do Tarso me convidando para projetar e editar com ele e Maciel um novo semanário. Mas essa é outra história.

Voltei ao Pasquim em 1979, no período pré-anistia, produzindo com Ramayana Vargens uma série de entrevistas com presos políticos, realizadas clandestinamente dentro da prisão da Frei Caneca: “Eis os terroristas” — defendendo anistia também para os acusados de terrorismo. O velho O Pasquim honrou sua tradição e corajosamente publicou a matéria com grande destaque.

Já contei um pouco dessa longa história em um artigo que eles me pediram para o segundo almanaque: “No Pasquim, lugar de mulher é na cozinha”. A velha guarda da imprensa, que sabe o que é a “cozinha” de um jornal, pode testemunhar que eles não foram tão machistas assim... Sem a cozinha, não havia jornal, principalmente em tempos tão adversos.

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