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O Pasquim

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Miguel Paiva

A GRIPE

Eu era o colaborador mais jovem do Pasquim. Quando entrei, tinha 19 anos e isso tinha um lado bom e outro nem tanto. O bom é que para um jovem de 19 anos trabalhar no Pasquim era maravilhoso. O lado nem tanto é que isso fazia de mim um pau pra toda obra, literalmente, um jovem pronto para qualquer sacrifício. Aprendi muita coisa e convivi com grandes jornalistas num jornal que acabou sendo um marco transformador da imprensa brasileira. Ilustrei, criei cartuns, escrevi e paginei o Pasquim durante o período em que lá estive. Depois de um tempo, pressionado pelas trevas medievais que assolavam o país nos anos 1970, fui embora para a Itália. De lá continuei a colaborar, escrevendo e contando um pouco do que acontecia em terras livres e, na minha volta, mantive uma relação afetiva com o jornal, que resistia graças ao Jaguar.

Hoje, preparando meu livro Memória do traço, percebi o tanto que realizei para o jornal. Acabei tendo um espaço nobre, fazendo matérias, cartuns e ilustrações, mas o começo foi bem difícil. Como já sabia na época que qualquer desenho de 1 cm2 valia a pena publicar, nunca desanimei. Só fiquei mais assustado quando a redação inteira foi presa, no final de 1969.

No início não entendemos bem o que estava acontecendo e se seríamos presos também. O momento era de acirramento da ditadura e o Pasquim, visto claramente como uma voz de oposição que fazia sucesso. Não interessava aos militares que o jornal continuasse a circular, e um caminho para isso seria prender seus colaboradores. Assim foi feito. Aos poucos soubemos que o núcleo duro do jornal, e mais um pouco, estava em cana. O núcleo duro significava tudo aquilo que publicávamos e que tanto sucesso fazia. Apesar da aparente desorganização, o Pasquim era uma empresa e as pessoas viviam dele. Não podíamos simplesmente parar de publicar. As informações se cruzavam e, dentro dessa confusão, tínhamos que continuar criando o Pasquim. Poderíamos até contar com a compreensão dos leitores, o que acabou acontecendo, mas não num primeiro momento. O jornal tinha que ir para as bancas e o pior, não podíamos dizer que o pessoal da redação estava preso. Muita gente mais informada ficou sabendo, mas o público de dezenas de milhares de pessoas não tinha como saber. Ia à banca e queria ver o jornal de sempre. Seria uma parada dura.

Imediatamente percebemos que pessoas fundamentais para o jornal não tinham sido presas — ou por não terem sido encontradas, ou por não serem importantes para os militares ou puramente por acaso. Eram elas Millôr Fernandes, Henfil, Martha Alencar, Chico Jr e eu. Esse acabou sendo o núcleo provisório da sobrevivência do jornal. A redação ainda era um local inseguro. Não podíamos dar mole permanecendo por lá. A polícia aparecia dia sim, dia não, principalmente perguntando pelo Pedro Ferreti, pseudônimo que Paulo Francis usava para escrever sobre assuntos variados. Era um dos perseguidos e jamais foi preso. Continuou "escrevendo" para o jornal no período da prisão, deixando os milicos loucos. Com isso, criamos a primeira redação móvel da história da imprensa brasileira. Íamos ao estúdio do Millôr Fernandes, na Praça General Osório, para preparar o jornal. Algumas vezes fomos alertados por dona Nelma, nossa amada secretária, de que a polícia tinha batido na redação atrás de nós. Juntávamos todo o material e nos mudávamos para o escritório que o saudoso arquiteto Sérgio Rodrigues tinha com o cartunista Juarez Machado em cima da loja da Oca, na mesma praça. De lá continuávamos até que a barra limpasse e, então, voltávamos para o Millôr ou dispersávamos por entre os bares de Ipanema.
Estavam na cadeia Paulo Francis, Ziraldo, Jaguar, Maciel, Sérgio Cabral, Flávio Rangel, Paulo Garcez, Fortuna, José Grossi — que cuidava das finanças — e Tarso de Castro. Seria muito difícil substituir esse time, escrever como eles. Desenhar, então, tarefa que coube a mim, mais difícil ainda. A primeira capa foi uma montagem com um lobo e uma ovelha e a frase: "Enfim, um Pasquim inteiramente automático" e uma lista de ausências, mas sem citar nomes. Uma tentativa sutil de passar alguma informação. Não estava funcionando e as vendas começaram a cair. Precisávamos fazer alguma coisa, reagir e, no fim do mês, pagar o salário dos redatores e cartunistas. Afinal, a vida, apesar de tudo, continuava.

O que mais afligia era não poder dizer que a turma estava em cana. A censura ficava em cima e a própria grande imprensa também estava cerceada. Surgiu então o rumor que acabou virando o bordão da “gripe do Pasquim”. A redação inteira tinha pegado uma gripe violenta, daquelas que derrubam, prendem você em casa e não te deixam sair. Foi a analogia mais próxima da realidade que se encontrou e acabou funcionando enquanto informação passada. Mas o Pasquim era o Pasquim porque tinha um time danado de bom e especial fazendo o jornal. Não era mole fazer igual sem eles. Mas tentamos. Junto com quem tinha sobrado da redação, desenhei feito um desesperado, paginei o jornal, escrevi dicas e tudo que pudesse ao menos tentar enganar o público e fazê-lo pensar que era a turma que estava trabalhando. Claro que não deu certo. As vendas continuavam a cair e ninguém entendia o que estava acontecendo.

Mesmo com a solidariedade de todo o meio artístico e intelectual brasileiro, que ia de Drummond a Chico Buarque, de Jô Soares a Callado e Cony, o futuro era preocupante. Foi uma mistura de momento lindo com momento crítico. Todo mundo ajudando e o barco afundando. Lembro de aprimorar meu traço “ziraldiano”, minhas soluções à la Fortuna e minha espontaneidade típica de Jaguar nessa época. Mas percebi logo que os pés e as mãos desenhados pelo Ziraldo, seu layout simples e preciso era um talento particular. Fácil se inspirar nele, mas impossível reproduzir. Fortuna, que tinha um traço solto e arrojado, ia desenhando livremente e depois tirava com guache branco tudo aquilo que não era cartum — era ainda mais difícil. Uma espécie de Michelangelo do desenho de humor. Criar como ele acabaria por me fazer apagar tudo com guache branco. A descontração do Jaguar, essa coisa meio "suja" e anárquica que é seu desenho, não é resultado de uma atitude pensada. É resultado de um talento e de uma desorganização criativa tão maravilhosa de que só ele é capaz. Não dá pra tentar imitar. Fica só um desenho sujo e malfeito. Mas era o que tínhamos e assim fomos tentando diminuir os danos.

Contávamos com uma intuição mágica do leitor que iria sacar, reconhecer nosso esforço e continuar comprando o jornal. Mas isso não existe. Quem compra quer levar o que pagou. E não levava mesmo. Henfil e Millôr não podiam se expor muito e não eram o bastante para suprir a falta do resto. Martha segurava a redação com Chico e eu paginava e desenhava o dia inteiro.

A luta foi longa e dura. No final do primeiro mês, nenhum colaborador recebeu o suficiente. O jornal estava em crise, seus donos em cana e suas famílias querendo receber o sustento delas. Crianças pequenas, mulheres, amantes e filhos espalhados. Todos dependiam do Pasquim. Vieram o Natal, as festas de fim de ano e a turma já fazia amizade com os soldados, que não entendiam o que estava acontecendo. Foi um Natal melancólico, que só o espírito esportivo dessa turma, e não o natalino, conseguiu superar. Houve ceia, cantoria, visita das famílias, mas liberdade não estava na lista do Papai Noel.

Durante o tempo em que trabalhei no Pasquim sempre quis fazer mais, sempre quis melhorar não só meu rendimento como artista e jornalista, mas também receber um pouquinho mais. A remuneração vinha de várias maneiras, até mesmo em dinheiro. Mas valia tudo: bônus de lojas de eletrodomésticos que anunciavam no jornal, agências de viagem, hotéis e companhias aéreas. No meu casamento em 1971, ganhei uma geladeira e duas passagens para o México, não como presentes, e sim como parte do pagamento. Mas isso não incomodava ninguém Não éramos nem heróis nem combatentes. Éramos jovens jornalistas tentando fazer um jornal num regime de exceção. E era divertido, apesar de tudo. Trabalhei anos com Ivan Lessa e Sérgio Augusto na mesma sala, que, aliás, era uma garagem. Ivan cantava e fumava o dia inteiro. Sérgio era um parceiro de risadas e testes sobre cinema. Ele sabia tudo e eu aprendia. Dava risada com as histórias do Paulo Garcez, humorista de primeira apesar de fotógrafo, e o aconchego materno de dona Nelma, que resolvia todos os problemas. Participei de várias entrevistas, testemunhei momentos históricos e aprendi muito. Queria ser diretor de arte do jornal. Fiquei um tempo paginando a seção Dicas, que vinha nas últimas páginas, e quando a redação foi presa fiquei no lugar do Fortuna, que era o diretor de arte. Já tinha aprendido muito com ele e quando tive que assumir sozinho, lembrei das soluções e das rotinas. Acho que deu certo. O jornal era feito, impresso e vendido. Um verdadeiro milagre que só foi superado pelo milagre da soltura da turma. Um dia aconteceu. Todos voltaram, abatidos mas aliviados e meio fora de forma para retomar os trabalhos. A turma que os substituiu permaneceu ali de prontidão, pronta para qualquer emergência. O pessoal voltou, assumiu seus lugares e nós — eu principalmente — ficamos ali esperando um agrado, um muito obrigado ou até mesmo uma promoção. Não pintou. A vida voltou ao normal como se nada tivesse acontecido.

Não sabia muito bem na época o que já havia de racha entre os redatores. Ziraldo pra cá, Tarso pra lá, Millôr sei lá onde... Via um jornal que antes já era estranho e que agora ficava ainda mais. Resistimos quanto pudemos. Colaboradores como Sérgio Augusto surgiram depois da prisão. Ainda vivemos um período ótimo de criatividade e trabalho político. Fomos censurados, perseguidos, prejudicados economicamente, mas continuamos. Nem sei como.

Uma vez , depois de ter reivindicado assumir a direção de arte do jornal por conta do trabalho durante a prisão, percebi, por acaso, que não ia rolar. Estava no banheiro que era ao lado da sala do Tarso quando ouvi claramente o Jaguar conversando com ele sobre mim: "Miguelzinho quer ser diretor de arte..." No que Tarso respondeu não me lembro bem o que, para que o Jaguar concluísse: "Pois é, marinheiro já quer comandar o navio". Senti um enjoo que nenhum marinheiro jamais sentiria, saí dali atônito e só fui me tornar diretor de arte alguns anos depois, pouco antes de ir embora para a Itália, pressionado pela situação política do país.

Essa pressão tinha começado lá na invasão da Reitoria, em 1968. Fui preso junto com vários estudantes e vivi aqueles tempos de medo e excitação como um jovem de 18 anos viveria. Anos depois, com Sérgio Augusto e Bruno Barreto, o cineasta que na época estagiava como fotógrafo no jornal, íamos entrevistar o empresário da noite Ricardo Amaral. No caminho fomos abordados pela polícia de metralhadora em punho na Lagoa, em frente ao Clube do Flamengo. O carro tinha sido confundido com outro que eles estavam buscando. Quando viram que éramos nós e o carro era do Paulo Francis, acharam que tinham tirado a sorte grande. Fomos levados para a delegacia, depois para o Dops, onde passamos a noite. Era aniversário do Jaguar, dia 29 de fevereiro, daí a lembrança. Fomos soltos ao amanhecer do dia seguinte, depois de uma sessão de terror psicológico. Bruno ameaçado de ter que passar pelo teste da farinha e eu sendo interrogado para entregar quem tinha me vendido a carteirinha falsa da faculdade de arquitetura que eu usava para pagar meia entrada no cinema. Nossos “nada consta” chegaram via telex do Instituto Félix Pacheco, que reunia as fichas dos cidadãos e mandava direto para a sala do delegado.

Fomos soltos e eu achei que com isso me equiparava ao resto da redação, que já havia passado pelo mesmo.

Não pude saborear muito tempo. Acabei vencido pelo terror e pelo medo e fui embora. Na Itália, por meio da minha mulher, que trabalhava no consulado brasileiro, fiquei sabendo que minha solicitação para ser correspondente não seria endossada pelo governo brasileiro. Minha ficha, apesar de insignificante, era decisiva. Acabei tirando a carteira de correspondente estrangeiro diretamente na Itália sem a concordância do Brasil. Continuei publicando no Pasquim até voltar, já com a Anistia em curso e com outras ideias na cabeça. Acabei sendo diretor de arte em algumas editoras, fiz capas e projetos gráficos no Brasil e na Itália, mas o que eu queria mesmo era ser diretor de arte do Pasquim. E fui. E quem não quereria?

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