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O Pasquim

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Claudius Ceccon

CLAUDIUS: PASQUIM, COMO ME LEMBRO

Memória: faculdade de reter e recordar o passado, diz o dicionário. Mas meu caso parece mais com a definição do Millôr: “A memória serve para esquecermos do que é que era mesmo?” Lembrar do que aconteceu há 50 anos é mexer num baú que mistura impressões, sentimentos, vivências e coisas que aparentemente nada têm a ver com o assunto em si.

Lá pelos meados de 1969, quando Jaguar me convidou para discutir a ideia de fazer um jornal de humor, lá fui eu, esquecendo experiências anteriores. Esqueci até que no dia 13 de dezembro de 1968, apenas seis meses antes, no lançamento do livro Dez em humor, no Garota de Ipanema, Ziraldo chegara com a notícia de que Costa e Silva, o ditador de plantão, havia editado o Ato V. Isso significava congresso fechado, direitos civis suspensos e, na primeira lista de pessoas presas, amigos bem próximos da gente. Fortuna dizia que não deveríamos nos preocupar, afinal, não éramos importantes. Mas, ponderava em seguida, havia um problema: “Somos fáceis de prender e muito difíceis de soltar”. Por via das dúvidas, abandonamos o Garota de Ipanema.

Então, quando Jaguar me chamou, o Ato V estava em plena vigência, reprimindo e censurando a imprensa e produções artísticas, invadindo teatros, espancando atores, prendendo quem se manifestasse contra a ditadura. Naquela conjuntura, só um grupo de porras-loucas poderia pensar em criar um jornal de humor para gozar as trapalhadas dos militares.

Pois é, éramos nós, Jaguar, Sérgio Cabral, Tarso de Castro, Prósperi e eu. Prósperi, um publicitário que tinha a conta da Shell, arrastou para aquela reunião um economista da múlti, para nos dar uma ideia dos números que teríamos de encarar. Estávamos de acordo que nossos planos deveriam ser bem modestos. Como não ia ter publicidade mesmo, o jornal deveria ter formato tabloide, impresso em preto e branco, no papel mais barato que houvesse, para custar pouco e se manter exclusivamente com a venda em banca.

O economista, munido de marcadores multicoloridos, aboletou-se à mesa, imóvel, concentrado, como um pianista antes de começar a tocar o seu concerto. Ficamos olhando em reverente silêncio ele traçar na folha em branco várias linhas de um gráfico que representava os custos de um jornal: quantidade de papel, gráfica, tiragem, distribuição... As linhas começaram a se cruzar no ponto em que o projeto se tornaria viável: para sobreviver, o jornal deveria vender 19.700 exemplares na banca.

Ninguém tinha ainda pensado como seria o jornal, qual a sua cara, número de páginas, seções, quem convidar ou desconvidar. E nem como se chamaria, o que deu muita discussão. A certa altura, Jaguar matou no peito: “Vão nos esculhambar, vão dizer que nosso jornal parece um jornal de bairro, que não passa de um pasquim. Então, vamos logo chamar nosso jornal de Pasquim!”.

E Pasquim ficou. O Pasquim número 1 saiu em 26 de junho de 1969. Na divisão de tarefas, eu tinha uma página por semana. Pelo sim, pelo não, minhas colaborações tomaram a forma de fábulas, gênero típico de tempos de repressão.(*)

(*) As páginas viraram um livro, Claudius, fábulas políticas, publicado lá fora em alemão, holandês e inglês e, finalmente, em português, editado pela Brasiliense, em 1980, recebendo o Prêmio Revelação de Autor pela Associação Paulista de Críticos de Arte.

Naquela época, havia muitos jornais no Rio, feitos por profissionais respeitados, competentes, que eram lidos por um público alfabetizado, que tinha o hábito de se informar lendo jornal. O Pasquim invadiu esse ambiente sisudo usando bermuda, copo de cerveja na mão e sorriso nos lábios. Era outra coisa, outro estilo, com uma liberdade de expressão inteiramente nova, usando linguagem coloquial e inventando bordões que pegaram logo.

Jornal de humor, sucesso instantâneo. O humor, já dizia o velho Freud, é a arma do oprimido contra o opressor. Ele tira o véu das coisas pretensamente sérias, revela mecanismos escondidos, mostra os pés de barro de quem se julga acima de qualquer crítica, expõe a verdadeira face dos que se consideram importantes. O humor é o maior inimigo de qualquer regime autoritário. O que imediatamente aconteceu entre nós, que fazíamos o Pasquim, e os leitores do jornal, foi uma espontânea cumplicidade. Ler o Pasquim era um ato de desobediência que tinha sabor de liberdade.
O jornal foi distribuído por todo o Brasil. A compra em bancas no interior do país eram vividas como um ato de desafio à autoridade, uma travessura juvenil. A maioria dos leitores era jovem, e não só das classes médias dos grandes centros urbanos, mas de outras capitais, de cidades menores, onde também havia uma juventude sufocada por um cotidiano de opressão e censura. O Pasquim serviu como uma janela que se abria para um outro mundo.

Colaborei com o Pasquim até meados de outubro de 1969, quando saí do Brasil com minha mulher, Jo e nossos dois filhos, e fomos morar em Genebra, Suíça. Fiquei sem colaborar com o Pasquim porque, naquele universo pré-internet, o Brasil ficava muito longe. Notícias, só no correio. Pelas cartas que nos chegavam soube que o Pasquim, em vez de se manter precariamente vendendo 20 mil jornais na banca, havia alcançado a espantosa tiragem de 250 mil exemplares! E, ainda por cima, carregado de publicidade, já que as agências haviam descoberto esse novo nicho de consumidores jovens. Um fantástico sucesso empresarial.

Meu mandato com a Instituição Internacional que me convidara terminou em meados de 1971. Era hora de voltar, mas parentes e amigos informavam que as coisas no Brasil de Médici, como dizia Chico Buarque, estavam pretas. Todos aconselhavam que era mais prudente adiar a volta. Mas como ficar, sem contrato e sem emprego? Por sorte, minha permanência em Genebra foi garantida porque houve um concurso para professor da Escola de Arquitetura da Universidade de Genebra, ao qual concorri e fui escolhido.

Talvez ali pelo final de 1971 recebi uma carta do Henfil, dizendo que ele e o Millôr haviam decidido segurar a onda do Pasquim, que estava sofrendo as consequências dos meses de prisão da equipe. Millôr, com seus múltiplos talentos, administrava as dívidas do jornal, iniciando um planejamento que acabou pagando todos os seus credores, transformando o Pasquim numa empresa com crédito no mercado. Mas ainda estávamos no início daquele processo. Henfil me convidava a voltar a colaborar com o Pasquim, dizendo sedutoramente coisas simpáticas, que a gente gosta de ouvir, tipo que eu era indispensável, que minha presença era importante, etc. e tal. Só que, bem lá no finzinho, informava que não tinha como pagar minha preciosa colaboração. O que fazer com um convite irrecusável como esse? Aceitar, claro!

A partir daí começou uma rotina em que Nelma Quadros, a musa e secretária do Pasquim, acionava a Varig, e passei a receber três pacotes por semana, com livros, revistas e jornais. É difícil, hoje, imaginar o que isso significava na época. Se uma notinha no Le Monde era motivo de muita discussão e especulações, imagine receber jornais brasileiros cheios de notícias, quentinhos, saídos do forno na própria semana! Eu lia avidamente os JBs, antes de distribuí-los aos amigos brasileiros. Ali estavam as pautas de minhas colaborações, que a Varig levava de volta, na mesma semana. Era puro prazer.

Eu também procurava tratar de outras questões que me preocupavam. Nelma me reenviou originais, marcados a pilot com enormes “xis”. Mas como a razão da censura nem sempre era clara, eu continuava. Criei um personagem, Malaquias, inspirado nos profetas do Velho Testamento, figuras corajosas, que denunciavam as arbitrariedades dos poderosos. Malaquias começou usando um camisolão de profeta, mas, pouco a pouco, ele foi se transformando num alter ego, um jornalista que tentava passar suas pautas aos editores do jornal, sistematicamente recusadas. Ou então, numa conversa aparentemente banal, dava seus recados sobre questões que ainda não eram muito discutidas, como, por exemplo, o machismo e o Women’s Lib.

Discutir essas questões de longe era difícil. Eu não sabia se tinham alguma repercussão. Havia toda uma série de ideias novas que eu achava que deveriam ser capitaneadas pelo Pasquim. Mas, quando voltei ao Brasil, em 1978, nove anos depois, percebi que, por melhores ideias que eu tivesse, a nau Pasquim já estava com seu trajeto definido. Ao me preocupar com a ligação com as novas gerações, isso parecia irrelevante. “Os leitores do Pasquim acompanham e envelhecem com o jornal”, dizia Ziraldo. Mas eu achava que os leitores do Pasquim estavam era morrendo. Ou pensavam diferente. A ideia de que era preciso renovar, aprender a falar com os jovens daquela conjuntura, entender sua realidade, suas preocupações, não parecia relevante.

Além disso, com o fim da ditadura, já não havia mais aquele inimigo único, que era identificado como sendo os militares e os civis que lhes haviam servido. Com a Anistia, voltaram líderes exilados e houve a possibilidade de criação de novos partidos. A situação ficou menos nítida, era mais difícil saber quem era o inimigo principal, a quem se aliar e a quem se opor. Acho que o Pasquim ficou meio perdido. Situação semelhante havia ocorrido na França, com o Charlie Hebdo, o Pasquim de lá. Depois de anos criticando os governos de direita — Pompidou, Chaban Delmas, Giscard D’Estaing —, os socialistas elegeram Mitterrand. A turma do Charlie Hebdo, ao perder seu inimigo principal, patinou muito antes de conseguir retomar seu papel como crítica. Ao contrário do Le Canard Enchainée, um jornal satírico que sempre fez oposição sistemática, denunciando os malfeitos de qualquer governo que aparecesse, fosse ele simpático ou não. Será que o Pasquim não soube encontrar seu papel no tempo da redemocratização? Perseguiu uma pauta de costumes que talvez não correspondesse a uma demanda reprimida que o Pasquim não teve sensibilidade para entender?

Quem sabe esse episódio dê uma pista:

Na primeira metade dos anos 1980, o Colégio São Vicente, no Rio de Janeiro, viveu uma crise, provocada pela demissão de um grupo dos melhores e mais amados professores. Revoltados, os alunos ocuparam o Colégio, durante semanas, exigindo sua volta. Houve um momento emocionante, não valorizado pelos jornais, quando pais e mães vieram celebrar o Natal com seus filhos e filhas, acampados no Colégio há semanas. Escrevi uma série de dicas no Pasquim sobre aquilo. Lá pelas tantas, perguntei à minha filha, então com 18 anos, se seus colegas haviam comentado o que eu escrevi. Sua resposta foi cruel: “Pai, ninguém lê esse jornal! Essa coisa de bunda, de sapatão, de bicha, isso é discurso de velho! Nossa geração já resolveu esses problemas!”.

O Pasquim não soube se renovar, já não tinha ligação com os jovens. Esse foi, a meu ver, o verdadeiro motivo de seu fim.

Com suas qualidades e seus pecados — venais ou mortais —, o Pasquim foi uma experiência única na imprensa brasileira. Se hoje estamos ameaçados de voltar a um tempo de repressão e censura, como o que vivemos há 50 anos, há de surgir algo novo, quem sabe um Pasquim virtual e interativo? As novas gerações encontrarão os meios mais adequados para defender suas ideias. Não faltam assuntos para glosar. Nem faltam nuvens ameaçadoras no horizonte.

Rio, 23/5/2019

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