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O Pasquim

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1980-1991 - por Ricky Goodwin

LENDO O PASQUIM, DO MEIO PARA O FIM

A história do Pasquim, a partir dos anos 1980, é a saga de um jornal de humor tentando manter a sua relevância num país em transformações, muitas das quais ocorrendo em decorrência do que o próprio jornal provocou nos anos anteriores.

A ditadura brasileira persistiria por metade da década de 1980, mas ralentando, finalmente, e à medida que a censura e os controles sobre os veículos de comunicação afrouxavam — mesmo que num simulacro de abertura —, janelas se abriam para a cobertura da realidade pela imprensa tradicional. Por muitos anos o Pasquim fora uma das poucas fontes de informação crítica e se transformara numa central da resistência contra o autoritarismo. Além da equipe talentosa que compunha seu núcleo central, recebia colaborações por ser um escoadouro para notas e reportagens impossíveis de serem publicadas em outros veículos. Isso mudou. E quando as trevas do autoritarismo que o Pasquim tanto combateu foram clareando, a chama do jornal como símbolo foi se apagando. Alguns nomes importantes do semanário inclusive saíram para trabalhar nessas possibilidades tradicionais.

A própria política foi se transformando, após o surgimento de um mundo binário em que todos se uniram contra um inimigo em comum. Os caminhos para os objetivos se multiplicavam: além do MDB anti-Arena, passavam pelo PDT trabalhista, pelo novo partido das massas que era o PT ou passeavam por campos desprezados pela esquerda tradicional, nas searas da ecologia, da liberdade dos corpos, dos direitos das mulheres, dos homossexuais e de outras minorias.

O jornal batalhou muito pelo retorno dos exilados, e quando alguns deles voltaram ao país, com sua vivência em outras sociedades, trouxeram ideias que por vezes destoavam dos conceitos dos editores do Pasca. O jornal se abriu para esses novos temas, em alguns breves períodos, mas o que prevaleceu foi o ranço da militância standard — por mais gloriosa que tivesse sido — e o bonde passou.

O Pasquim foi importantíssimo para fazer a cabeça da mulher brasileira. O impacto da entrevista com Leila Diniz, por exemplo, mexeu com muitas mocinhas e senhoras. Mas impulsionado por essa revolução nos costumes, que ocorria mesmo no seio de uma ditadura conservadora, o movimento das mulheres cresceu e foi além daqueles avanços, e o feminismo pichou nas portas do Pasquim a pecha de machista e ultrapassado.

O país mudou e o Pasquim não soube — ou não quis — acompanhar essas mudanças. Veio uma geração que não sentia o Pasquim como seu representante e porta-voz. As bandeiras portadas pelo jornal continuaram desfraldadas, porém pareciam desbotadas...

Além dos aspectos ligados ao conteúdo, houve os percalços financeiros. O que os militares não conseguiram pela repressão direta — dinamitar o jornal com porretadas de prisões e tesouradas de censuras —, de certa forma lograram por meio de estrangulamentos econômicos, com diversas apreensões de edições publicadas e, principalmente na virada da década, com os atentados em bancas promovidos pela direita radical. Num momento crucial para as finanças da empresa, muitos jornaleiros deixaram de vender o jornal.

Virou um chavão, dentro da história do Pasquim, comentar que a patota reuniu ótimos humoristas e jornalistas e péssimos administradores. Quase sempre, em sua trajetória, suas finanças foram mal equilibradas, e o sucesso nunca foi sinônimo de estabilidade. Entrava muito dinheiro e saía muito dinheiro. Até que o dinheiro parou de entrar. As vendas foram caindo. Os grandes anunciantes foram abandonando o jornal — muitos pressionados pela ditadura —, afetando a sua receita.

Houve um desgaste natural do tempo. A vida leva as pessoas para outros rumos. Muitos nomes que fizeram o nome do Pasquim não figuravam mais em suas páginas. O jornal foi uma entidade mutante, com várias fases, diversas equipes, pessoas saindo e pessoas entrando... Até que o saldo das saídas foi maior e dos soldados originais restou apenas o Jaguar, tocando o barco, incrivelmente, por quase uma década de subsistência.

Mesmo assim, o Pasquim persistiu por muitos anos, permitindo que uma nova geração de leitores conhecesse o seu humor ferino e que continuasse como escola para novos talentos.
Em 1978, o Pasquim estava bem, na sua trincheira de resistência à ditadura e como veículo importante para a vida cultural do país. O Brasil vivia o final do governo Geisel, que promovia uma distensão (sempre tensa) e uma abertura segura, lenta e gradual (mais lenta que gradual). Crescia uma pressão popular — e uma oposição política — por mais liberdades, e essa mobilização teve como foco principal a Campanha pela Anistia, pedindo a volta dos exilados que tiveram de deixar sua pátria.

O Pasquim foi o porta-voz principal dessa campanha. O jornal sempre tivera uma relação especial com os exilados políticos e a comunidade brasileira vivendo no exterior. Era a principal leitura brasileira com informações sobre o que acontecia aqui. Alguns deles foram inclusive colaboradores do jornal. Nelma Quadros, secretária de fé do Pasquim — aliás, pessoa da maior importância na história do jornal, tomando conta daqueles malucos todos —, participava de um esquema clandestino que fazia chegar aos exilados não só exemplares do jornal como elementos típicos da nostalgia expatriada (café, feijão, farinha e tal).

Entre 1976 e 1980, o Pasquim entrevistou todos os grandes nomes entre os exilados, além dar destaque a diversos desterrados desconhecidos. As entrevistas eram feitas no exterior, ou na redação, à medida que eles voltavam, concedendo ao jornal depoimentos que amplificavam o impacto de sua volta. A cada vez que um exilado chegava ao Rio, o Pasquim organizava uma caravana de faixas e apoiadores para recebê-lo no aeroporto.

Com essa mobilização, o Pasca mantinha prestígio e — coisa rara — vivia uma solidez financeira, com um quinto de suas páginas ocupado por anúncios. Não havia o glamour do período festivo, das musas, das festas de arromba, num olimpo mítico, quando era um jornal de costumes lançando modas por todo o país. Mas a tiragem estava em 60 mil exemplares, número representativo para a época. Os livros com As anedotas do Pasquim eram best-sellers e a Editora Codecri começava a publicar escritores de renome.

Por outro lado, o enfoque na politização alienou uma faixa de leitores que gostava do Pasquim por ser um jornal humorístico. E a essa altura, vários nomes de peso tinham deixado a patota. A redação era tocada por Jaguar, Ziraldo e Ivan Lessa, além da tropa que produzia o jornal (Haroldo Zager, Miro, Toninho, Beto, Rafael e Alfredo Gonçalves), o fotógrafo Walter Ghelman, Ricky Goodwin nas entrevistas e o pessoal do administrativo. Claro, com a anja-da-guarda dona Nelma. E o imenso faz-tudo Luiz Rosa.

O final de 1978 foi marcado por uma entrevista retumbante com Fernando Gabeira, feita em Paris, dentro da série de conversas com exilados. A repercussão da entrevista foi tamanha que foi publicada em livro pela Codecri, acrescida de textos sobre a Anistia e considerações sobre 1968. No ano seguinte, 1979, Gabeira retomaria essas memórias em O que é isso, companheiro?, um sucesso instantâneo, o maior fenômeno editorial entre os livros da Codecri (atualmente passa das 40 edições).

Em 1979, com o boom dos livros do Gabeira, a editora explodiu, figurando entre as mais importantes do país. Por várias semanas em 1980, na lista dos dez livros de maior vendagem publicada pela Veja, oito eram da Codecri. A grana da Codecri foi o que sustentou o jornal nos anos de dificuldades financeiras que descreveremos a seguir. Se não fosse o sucesso da editora, o Pasquim teria naufragado em algum ponto do início da década de 1980.

A mobilização pela volta dos exilados culminou na decretação da Lei da Anistia, em agosto de 1979. Antes disso, em 1978, a censura prévia foi abolida em todos os veículos de comunicação, o AI-5 foi extinto (substituído pela Lei de Segurança Nacional) e o general Figueiredo assumiu a presidência. Veio uma nova fase da ditadura e o conteúdo do Pasquim se beneficiou com a possibilidade de maiores liberdades. Figueiredo, que prendia e arrebentava, e preferia o cheiro de cavalo ao do povo, foi o primeiro presidente desde 1964 do qual se podiam fazer caricaturas.
Os desenhistas não se fizeram de rogado. Nessa época Reinaldo passou a ter uma participação cada vez maior na redação, valorizando os espaços para o humor gráfico. As artes de Chico Caruso ocuparam diversas páginas duplas centrais. Nani passou a ter uma seção fixa, a Imprensa Nanica. Surgiu uma terceira leva de cartunistas, com nomes como Hubert e Cláudio Paiva, que mais tarde revolucionariam o humor brasileiro. Sedimentou-se também na equipe uma pessoa que seria uma presença forte nos próximos anos: Fausto Wolff.

Esgotado o ciclo dos exilados, as entrevistas do jornal voltaram-se para depoimentos coletivos, com representantes de sindicatos, grupos de estudantes e entidades de classe, refletindo como a sociedade estava se organizando naquele momento. Um tema que atravessou o ano de 1979 foi a série sobre os desmandos médicos e hospitalares da Máfia de Branco.
Com tudo isso, as vendas aumentaram e a tiragem chegou aos 87 mil exemplares. Esse ambiente onde se podia respirar um pouco mais livremente, contudo, não deixou de ter seus percalços. A edição nº 559, em março de 1980, comemorando um ano de governo Figueiredo, foi apreendida, perdendo-se toda a sua vendagem, um grande prejuízo financeiro. Interessante é que, no número anterior, Ivan Lessa publicara uma fotonovela (fictícia) em que o Pasquim era apreendido nas bancas.

Foi um prenúncio do restante de 1980 (e 1981 e 1982), quando outras edições foram apreendidas. Aos dizeres publicados no expediente desde o nº 300 — “Enquanto você encontrar este selo, o Pasquim continua sem censura prévia” — foi acrescentado “mas sujeito a apreensões”.

Essa forma de estrangulamento econômico fazia efeito nas finanças da empresa. Mas o pior nem era isso. O governo perdia o controle sobre os grupos radicais de direita, os militares linha-dura, convictos de que a ditadura estava dando mole e que passaram a fazer injustiça com as próprias mãos. Ou pior, com as próprias bombas. Se for preciso marcar um momento preciso em que começou a derrocada financeira do Pasquim, seria quando, a partir de março de 1980, esses terroristas passaram a ameaçar os jornaleiros que vendessem jornais “subversivos”, entre eles o nosso semanário.

Bancas foram incendiadas em algumas cidades, principalmente no Rio e em São Paulo. Calcula-se que metade dos jornaleiros no Brasil parou de vender o Pasquim. Alguns passavam o jornal escondido. A frase-lema da edição 560 dizia tudo: “Quem tem jornal tem medo”. As vendas caíram em 40%. Isso quebrou a espinha econômica do Pasquim, um aleijado financeiro capengando atrás das dívidas.

A crise econômica no país também não ajudou, pelo contrário. Era a realidade apresentando a conta ao milagre econômico do Brasil Grande. A inflação disparou e os custos gráficos durante o ano de 1980 aumentaram 250%. Além do preço do papel, o governo havia imposto uma limitação de cotas que cada empresa poderia adquirir (forma de controlar a imprensa). Entre 1980 e 1981, o jornal teve de aumentar quatro vezes o seu preço nas bancas, afastando ainda mais o seu público.

Os pagamentos aos colaboradores começaram a sair atrasados, às vezes por semanas. Os salários dos funcionários, idem. Colaboradores foram deixando o jornal (Redi, Félix de Athayde, Armindo Blanco, Ricardo Bueno e outros). Sérgio Augusto já saíra, no final de 1979, passando para a IstoÉ. Aliás, trabalhar em outros veículos agora era um fato geral entre a turma do Pasquim. Ziraldo estava no Jornal do Brasil. Ivan na BBC. Henfil na Globo, fazendo a TV Homem dentro da TV Mulher. E assim por diante.

A impossibilidade de uma dedicação exclusiva por parte da cúpula deixava o jornal um tanto à deriva, algo sentido pelos leitores, o que levou a algumas modificações. Primeiro, Ziraldo chamou o grande jornalista Alberto Dines — que fora despedido da Folha — para fazer parte da redação. A entrada do Dines deu um bom gás ao Pasquim. Além de contribuir com sugestões de pauta, o prestígio do Dines possibilitou que convocasse bons jornalistas para reforçar o conteúdo, como o economista Aloysio Biondi, ou promovendo o retorno de Newton Carlos.

Segundo, três funcionários da redação foram promovidos a editores, ficando Jaguar e Ziraldo mais como supervisores do jornal (oficialmente “diretores”). Reinaldo virou uma espécie de “editor dos desenhos”. Ricky, um “editor dos textos”. E Haroldo Zager comandava a produção do jornal: paginação e a parte gráfica, além de participar da edição de conteúdo. Temas pouco (ou nada) abordados nos últimos anos ganharam espaço nas páginas: questões das drogas, do meio ambiente, de transar o corpo, das minorias, da cultura alternativa...

Liberados do dia a dia da redação e das tensões dos fechamentos, Ziraldo e Jaguar puderam produzir mais material para o Pasquim. Ziraldo voltou a fazer páginas inteiras — às vezes duas páginas — de desenhos, Jaguar voltou a participar de muitas entrevistas e criou seções e personagens novos. As entrevistas, que nos últimos meses estiveram ligadas à política ou às lutas sociais, passaram — como nos anos iniciais — a enfocar principalmente personalidades da vida cultural (tanto da “alta” quanto da “baixa” cultura).

O sucesso de Gabeira no Pasquim abriu espaço para que outros recém-retornados, e de uma geração mais nova, como Alfredo Sirkis, Herbert Daniel e Liszt Vieira, se tornassem colunistas do jornal. Algumas de suas colocações geraram ruídos com os leitores tradicionais do semanário, replicando as dissonâncias que ocorriam no mundo fora do jornal, em que a esquerda tradicional se arrepiava diante de novas formas de vivência desses militantes comportamentais.

Reinaldo incrementou bastante a contribuição dos desenhistas nesse período dos novos editores. Organizou páginas (às vezes duplas) temáticas, nas quais vários colaboradores desenhavam sobre o mesmo assunto, geralmente o tema geral da edição. Com ênfase no humorismo (sem abandonar a militância política), o jornal estava mais alegre. Mais leve inclusive no visual, que teve mudanças, principalmente na seção de Dicas. O Pasquim passou a ter algumas páginas (inclusive a capa e contracapa) impressas a quatro cores.

O fato marcante de 1981, para o Brasil e para o Pasquim, foi o atentado a bomba ao Riocentro, local onde se realizava um grande show musical. A ideia era explodir bombas no palco e na plateia, causando caos e mortandade entre as 20 mil pessoas presentes, e pôr a culpa nos subversivos. Um espetáculo promovido pelo mesmo grupo que bombardeara bancas. O plano fracassou quando uma das bombas explodiu antes, no estacionamento, no colo de um sargento quando ainda estava no seu carro, um Puma.

A maior parte da imprensa tradicional teve medo de noticiar o que aconteceu, mas o Pasquim foi às bancas com uma de suas melhores capas: à la revista Quatro Rodas, apresentou o Carro do Ano — um Puma explodido. Foi praticamente uma edição especial satirizando os fatos. Não deu outra: foi recolhida. O assunto ocupou vários números do jornal e quando saiu o resultado (fajuto) do inquérito, deu uma capa ainda mais corajosa: sob o título “O Pênis do Ano”, publicou a foto do sargento estilhaçado (embora com tarja). E novamente uma edição foi apreendida.

As sucessivas apreensões detonaram mais ainda as finanças da empresa e a situação nos meses seguintes foi se tornando bem crítica, até Ziraldo conseguir um aporte com Miro Teixeira, deputado pelo MDB, que permitiu ao Pasquim respirar. Cacifado pelo socorro financeiro, em dezembro Ziraldo assumiu o comando único da empresa e pôs em prática uma de suas ideias mirabolantes: aumentar o tamanho do jornal. Veio o jornalão, num formato equivalente ao dos jornais diários, como O Globo e JB.

Ziraldo estava cansado de ser alternativo e queria que o Pasquim fizesse parte da grande imprensa. Mantendo o humor, mas sendo levado mais a sério. Ocorre que o Pasquim sempre foi um jornal autoral, de colaboradores, opinativo, e embora tenha publicado eventualmente grandes reportagens, essa não era sua tônica, como na imprensa tradicional. Não tinha estrutura nem fôlego financeiro para ir a campo e cobrir os acontecimentos.

Dos pasquineiros, Ziraldo foi o único entusiasmado com o projeto do jornalão. Jaguar se refugiou no seu covil (paginona inteira com o nome Covil do Jaguar), onde criou o BIP (Busca Insaciável do Prazer) — dicas e cartuns sobre lugares interessantes que frequentava ou recomendava — e publicava cartas de leitores detonando o Pasquinzão.

Quem mais chiou com as mudanças foram os leitores (principalmente os colecionadores, que tiveram de alterar suas estantes). Achavam o jornal confuso, difícil de ler, com várias matérias numa mesma página. Sentiam falta de cartas e cartuns. As vendas do jornal caíram mais ainda...

Diante dos números, Ziraldo deu o braço a torcer e em maio de 1982 o Pasquim voltou a ser tabloide. Um Sig gigantesco na capa derradeira do jornalão anunciou: “ESTE É O ÚLTIMO NÚMERO”. Para complementar num balão pequeno: “... deste tamanho”. (Para marcar bem a diminuição do formato, a primeira entrevista da próxima fase foi com um anão.)

Algumas coisas, porém, não voltaram a ser as mesmas. As Dicas continuaram com o espaço reduzido. As entrevistas eram curtas, com poucos entrevistadores (ou um entrevistador). As cartas continuaram de fora. E parte dos leitores que deixou de ler o Pasquim quando ele passou a ser jornalão ficaram pelo caminho na volta ao tabloide.

O trio anterior voltou a tocar o jornal, mas agora com uma participação mais direta de Jaguar e de Ziraldo, cada qual disputando espaços e primazias na linha editorial. A turma do Pasquim se dividiu em três facções: PMDB (Ziraldo), PDT (Jaguar) e PT (Henfil). Nas páginas, Dines apoiou o MDB, Henfil e Edílson Martins o PT, e Fausto, Aldir, Iza Freaza, Moacir Werneck o PDT. O brizolismo trabalhista contou também com um reforço considerável na redação: Nelma Quadros, amiga de Brizola (trabalhara com ele nos anos 1960) e uma das fundadoras do PDT. Embora minoritária, a linha do Ziraldo prevaleceu, principalmente na escolha dos entrevistados. Além de Ziraldo ter mais contatos no mundo político, tinha mais ímpeto, era o mais empenhado em fazer campanhas, convencido de que o MDB, com sua estrutura nacional, é que poderia fazer frente ao PDS (ex-Arena) e o governo militar. O único ponto em comum entre todos foi a candidatura de Sérgio Cabral (o pai) a vereador (pelo MDB).

Além da disputa partidária, o racha no Pasquim entre Ziraldo e Jaguar tinha a ver com concepções distintas para o jornal. Um queria um veículo mais engajado e politizado. Outro, um jornal mais humorístico e satírico. Por esses anos todos, o Pasquim tinha se equilibrado entre as duas esferas, mas agora as diferenças tornavam-se inconciliáveis.

Na redação, Haroldo, Reinaldo e Ricky (assim como Ivan e Edélsio) não tomavam partido, tentando costurar as dissidências e manter o dia a dia funcionando. Com a politização e a polarização, os esforços em renovar os temas abordados pelo jornal foram limitados. Para contrabalançar a quantidade de artigos e cartuns políticos, Ricky passou a fazer entrevistas avulsas de uma página com artistas, enfatizando os novos nomes surgindo no cenário cultural. Aldir Blanc continuou com suas crônicas suburbanas e Edílson, com suas páginas verdes. E, também alheio às disputas, Ivan criou o JET (Jornal do Edélsio Tavares).

Além da campanha eleitoral, a Copa de 1982 pautou algumas edições do jornal durante aquele ano, com uma cobertura humorística bem politizada, contrária à Copa, frustrando os leitores-torcedores entusiasmados com a brilhante Seleção de Sócrates, Zico e Falcão.

Outro destaque no ano de 1982 foi a volta do Disco de Bolso. Recapitulando: o Disco de Bolso foi um projeto desenvolvido em 1972 pelo Pasquim e o compositor Sérgio Ricardo, uma série de compactos em que de um lado vinha um compositor célebre e de outro uma revelação. Foram discos históricos, lançando nomes como João Bosco, Aldir Blanc, Belchior e Fagner, e músicas como “Águas de Março”, de Tom Jobim. Como sói acontecer com as coisas no Pasquim, não foi para a frente e terminou antes de lançar os planejados Alceu Valença e Geraldo Azevedo.

Pois bem. Dez anos depois, Belchior procurou o Pasquim com a ideia de relançar o projeto, desta vez em formato LP e com uma revista-encarte. A ideia era mostrar as faixas dos compactos originais e abrir espaços para músicos atuais que produziam à margem das gravadoras (daí o nome “MPB Independente”). Jaguar ficou à frente do projeto, Belchior como diretor artístico e Ricky como editor da revista, junto com Haroldo. Esse lançamento foi mais um exemplo da dicotomia da época entre o novo e o anterior. Quando se esperava um disco de MPB tradicional, ao gosto do pessoal do Pasquim, Belchior abriu para a turma de vanguarda que surgia em São Paulo (Itamar Assumpção, Banda Performática) e até um roqueiro. O público fiel ao Pasquim não gostou. Jaguar e outros da patota detestaram. Quem curtia uma parte do álbum não curtia a outra parte. O primeiro disco foi mal de vendas e o projeto — mesmo com patrocínio da Shell — ficou por isso mesmo.

À medida que as eleições se aproximavam (em novembro), o clima no Pasquim foi se intensificando em torno da disputa entre Miro Teixeira e Brizola para governador do Rio. Um correlato disso foi que o jornal voltou-se para assuntos locais. A fim de abranger também o público de São Paulo, criou-se então a seção Rumores Paulistas, com duas a três páginas de textos, desenhos e potocas de Laerte, Angeli e Glauco. Estava ali (e na seção Vira-Lata da Folha) a semente da explosão criativa que seriam a revista Chiclete com Banana e a Editora Circo nos anos 1980.

Ziraldo dizia que a salvação do Pasquim seria a vitória do Miro, que continuaria a investir no jornal. Jaguar dizia que a salvação do Pasquim seria a vitória do Brizola e de Darcy, com quem havia combinado uma parceria financeira e editorial. Fizeram então uma aposta. Aquele cujo candidato ganhasse continuaria à frente da empresa, bancada pelo novo governo. Aquele cujo candidato perdesse sairia. Ziraldo alardeava que era quase impossível perder e que caso isso acontecesse, ele comeria o jornal.

Ganhou Brizola. E o PDT assumiu o Pasquim. Numa cerimônia fotografada para a capa foi servido um bolo cujas camadas continham folhas do jornal e Ziraldo o comeu. Duas edições depois deu uma longa entrevista para o jornal em que dizia “saio do Pasquim para entrar para a história” e deixou a Codecri.

O esquema brizolista botou grana e botou também o seu próprio editor: José Maria Rabelo, jornalista conceituado, criador do Binômio, semanário de oposição que circulou em BH nos anos 1950 e 1960, um precursor da imprensa alternativa. Após 16 anos de exílio, Rabelo voltara ao Brasil, ajudando a formar o novo partido PDT.

Na prática, o editor era praticamente um interventor. Dispensou alguns colaboradores por serem peemedebistas — entre eles, o Dines —, outros por motivos indiretos. Haroldo Zager, por exemplo, um esteio da redação desde os primórdios do jornal, foi demitido porque trabalhava também no caderno cultural do Última Hora, veículo inimigo do Brizola. Outros colaboradores antigos, como Roberto Moura, saíram por conta própria. O Pasquim virou um órgão oficial do PDT. Podia-se esculachar o governo dos militares quanto fosse, mas críticas a Brizola ou ao governo estadual eram proibidas. Ou seja, adotou-se o humorismo mais sem graça que existe: o humor a favor.

As páginas se encheram de anúncios do Banerj, da Loterj e de estatais estaduais, maneira de o governo dar uma força para o semanário. As entrevistas variavam entre as escolhas de Jaguar — artistas e figuras do submundo carioca — e uma sucessão de políticos e autoridades do PDT. E o jornal chegou a fazer uma edição comemorativa dos seis meses de governo Brizola...

O conteúdo do Pasquim quase só abordava política e economia. Até Fausto Wolff largou o colunismo antissocial do personagem Jebão e passou a escrever análises políticas. As exceções eram Edílson Martins, escrevendo sobre ecologia e cultura alternativa, e a seção RickyShake, condensando artigos da imprensa alternativa estrangeira e entrevistando novos nomes musicais, com ênfase em grupos mesclando música e humor (Rumo, Língua de Trapo, Premeditando o Breque...).

O desinteresse do público pelo Pasquim do Socialismo Moreno se refletiu na queda de vendas e na ausência de repercussão do que ele publicava. Jaguar foi se desencantando com esse esquema. Rabelo, por sua vez, nomeado vice-diretor do Banerj e editando o Cadernos do Terceiro Mundo, não tinha mais tempo para ficar na redação diariamente. Pediu demissão. Reinaldo e Ricky voltaram a assumir mais tarefas e o conteúdo teve alguns arejamentos. Conseguiram-se capas com temas como Circo Voador — um fenômeno cultural no Rio —, feministas, prostitutas militantes e a questão do aborto. Muito pouco, muito tarde.

E assim transcorreu 1983. No início do ano, um exemplar do Pasquim custava Cr$ 100. No final, CR$ 400. A tiragem no início do ano era de somente 17 mil exemplares. No final, 5 mil.
O aporte estatal-partidário era insuficiente para estancar tamanha crise. Colaboradores não eram pagos, os salários atrasavam e as dívidas aumentavam. A Editora Codecri, que fora fonte de renda, também entrou em parafuso — inexplicavelmente, pela qualidade de seus autores e a quantidade de best-sellers. Algumas hipóteses possíveis de tamanho passivo são as mesmas aplicáveis ao histórico do jornal: má administração e gastos excessivos. Com seus direitos autorais em atraso — ou não sendo pagos —, a maioria dos escritores trocou a Codecri por editoras mais sólidas.
Medidas drásticas eram necessárias. Uma delas foi hipotecar a mansão da Saint Roman, 142 — a casa icônica do Pasquim por tantos anos — e todos (os que sobraram) se mudarem, em abril de 1984, para uma sede alugada na Rua da Carioca, centro do Rio. Era um prédio estreito, sombrio, com cinco andares acessados por um elevador de porta pantográfica e funcionamento irregular. Sua única qualidade talvez fosse a de ficar ao lado do histórico Bar Luiz.

Em 1984 o Pasquim deu a sua última grande contribuição histórica, à frente da campanha nacional das Diretas Já. Esse nome, inclusive, surgiu numa entrevista de Henfil com Teotônio Vilela, publicada no jornal. Grande parte do conteúdo no primeiro semestre foi dedicada a esse tema, e nas semanas dos grandes comícios foram publicadas edições especiais. No megacomício da Candelária, a turma do Pasquim estava no palanque ao lado dos líderes políticos. Por alguns meses, o jornal teve um sentido. E embora fosse uma campanha política, o jornal se engajou com muito humor, aumentando o espaço dos cartuns.

As eleições diretas não foram aprovadas, a ditadura continuou nos seus estertores, e o Pasquim seguiu. Passada a euforia das campanhas, era hora de cair na real. A mudança de casa deu uma concretude ao fato de que o Pasquim não era mais o mesmo. Foi um divisor de águas estagnadas. Descendo do alto de Copacabana para o Centro, o jornal desandou, a rolar ladeira abaixo.

Vários colaboradores não acompanharam o caminhão de mudanças, inclusive um nome de peso: Ivan Lessa. Fora Aldir, Edílson, outros, todos de fora. Entrou outra turma: João Antônio, Ilmar Carvalho, Hermínio Bello, Sylvio Abreu e o mestre do traço Nássara. Mas o jornal — com 16 páginas — estava ralinho, ralentando. Cartuns? Saíam poucos. Entrevistas? No máximo duas páginas.
Para sobreviver, a empresa foi promovendo eventos de rua: as Corridas Gay (com fantasias), a Maratoma, de resistência etílica (vencida por Fausto, é claro). Lançou uma revista de sacanagem, Zéfiro, com os velhos catecismos zefirescos acompanhados de material atual dos pasquineiros (durou um número). No setor financeiro, a Codecri virou sociedade anônima, confiando na boa ação de apoiadores adquirindo suas ações. Foi criada a Sapa (Sociedade dos Amigos do Pasquim).

No segundo semestre, diante da falta de pagamentos, Ricky despediu-se do jornal, que deixou de ter entrevistas. Em seguida, Fausto parou de escrever. No seu lugar, passou-se a publicar o tijolaço semanal do Brizola. Henfil brigou com o Pasquim por este, além de louvar Brizola, apoiar Tancredo Neves (contra Maluf) nas eleições indiretas para a presidência (achava que o jornal deveria boicotar a eleição). Reinaldo também estava prestes a sair, para fundar com Hubert e Cláudio Paiva o Planeta Diário, jornal de humor com grande sucesso. E antes de o ano acabar, Nelma Quadros deixou a redação — marcando o fim de uma era — para ser assessora da deputada pedetista Yara Vargas.

O Pasquim ia se esvaziando quando, na virada de 1984 para 1985, Jaguar foi ao Baixo Leblon e encheu a cara. O rebuliço do Baixo era um tititi cultural, o point dos artistas e da garotada, em pleno verão carioca. Numa conversa de bar conheceu três sujeitos, entusiasmou-se com as suas ideias e convidou os três para fazer então o Pasquim. Passado o porre, esqueceu o papo e não comentou isso com ninguém. Num belo dia, adentraram a redação esses três desconhecidos que vieram para ser os novos editores do Pasquim. Para pasmo dos presentes.

Jaguar explicaria depois que não foi um rompante tão despropositado. Frequentando os bares do Baixo Leblon, ficara animado com a pulsação daquele caldeirão e enxergou paralelos com a Ipanema efervescente de onde surgiu o Pasquim. Quis recriar um pouco daquele espírito no velho jornal.

Formavam o trio Tavinho Paes, poeta, autor de sucessos radiofônicos, Torquato de Mendonça, poeta e artista plástico (ex-editor do jornal underground Flor do Mal), e Walter Queiroz, cantor e compositor baiano. Receberam carta branca do Jaguar e viraram o jornal de cabeça para baixo, inventando seções, diagramações ousadas e textos mirabolantes.

Com as mudanças, Ricky retornou, organizando as entrevistas. A primeira projetou nacionalmente o cantor de uma banda local: Cazuza. Outro retorno às páginas, depois de anos, foi o das fotonovelas com convidados especiais.

Por um breve momento, o Pasquim teve contato com uma juventude que se liberava (em vários sentidos) com o fim da ditadura e a abertura esperançosa de novos tempos. As vendas deram uma oscilada para cima. Acontece que enquanto cresciam de um lado, caíam de outro. Os poucos leitores tradicionais que restaram fugiam do jornal, horrorizados.

O Pasquim virara outra coisa. Quase não tinha cartuns. Os caras não tinham cancha jornalística. Era muito oba-oba e pouca informação. E ficou um jornal esquizofrênico, o anárquico convivendo com o tijolaço do Brizola e anúncios de estatais. A porra-louquice começou a incomodar. Acima de tudo, irritava o esquema brizolista, que era quem estava bancando essa festa toda.

Jaguar interveio e botou ordem no galinheiro. Foi um delírio de umas noites de verão. Com Tancredo morto, e o morto-vivo Sarney na presidência, começava uma nova fase para o país. E mais uma fase do Pasquim.

Embora o primeiro número da nova fase trouxesse uma entrevista com Darcy Ribeiro, Jaguar articulava para sair um pouco da tutela brizolista. Convidou para dirigir o jornal Oliveira Bastos, jornalista veterano que havia deixado o comando do Correio Braziliense. Escritor e crítico literário, participara do JB em sua fase mais criativa — a do Suplemento Dominical — e fundara o Politika, jornal alternativo de oposição à ditadura.

Oliveira Bastos tinha fama de ser difícil, com um temperamento explosivo, mas com seu prestígio montou um time contendo Dines, Gabeira, Ferreira Gullar, João Saldanha e outros de renome. Conseguiu alguns grandes anunciantes. E situado em Brasília, próximo ao poder, tinha acesso aos políticos e informações de cocheira. Jaguar convenceu Maciel a voltar a escrever e Henfil, Fortuna e Redi a voltarem a desenhar para o Pasca. O aumento de páginas para um total de 24 deu mais espaço também para outros cartunistas. Jaguar convocou Haroldo Zager para voltar a tocar a redação.

Mas, como num casamento em que o amor termina, o público havia se divorciado do Pasquim. À melhora de conteúdo não correspondeu um acréscimo de vendas. As tiragens giraram em torno de 8 mil exemplares. Nesse país em transformação, o Pasquim não conseguia se livrar da imagem de ultrapassado e chapa-branca.

Oliveira logo deu um basta na sua experiência com o Pasquim. Quando os pagamentos começaram a atrasar, Haroldo, que já tinha visto esse filme, pulou fora. César Tartáglia, jornalista especializado em samba e que vinha trabalhando ali como fotógrafo, assumiu a redação, um grupo de funcionários que estava há algum tempo no Pasquim: Beto, Toninho, Pacheco e Luizão Rosa. Com as finanças fracas, as vacas eram magras e outros nomes foram saindo de fininho...

Em setembro de 1985, o Pasquim acertou que este passaria a sair encartado semanalmente no Jornal de Santa Catarina. Foi uma ideia ótima. O semanário ganhava tiragem e visibilidade e o diário, um caderno interessante. Os números do Pasquim ganharam um zero a mais — a tiragem pulou para 80 mil — e com isso conseguiram atrair novos anunciantes.

O esquema dos encartes deu certo e foi ampliado no decorrer do ano de 1986. O Pasquim circulou em jornais do Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Acre, Amazonas e Bahia. Com isso, a tiragem do jornal chegou a impressionantes 200 mil exemplares, patamar equivalente aos dos seus primeiros anos de sucesso.

A expansão geográfica mais significativa, porém, foi a criação de uma sucursal do Pasquim em São Paulo: o Pasquim SP (em junho de 1986), iniciativa dos jornalistas Paulo Markun e Dante Mattiussi. Algum tempo depois, jornalistas gaúchos organizaram o Pasquim Sul, em Porto Alegre.

Lançado com a brincadeira de que seria uma vingança pelos anos em que o Pasquim fez piada com os paulistas, o Pasquim SP, com 30 mil de tiragem, refletia o fato de que o eixo cultural do país agora pendia também para o lado da pauliceia. Markun & Dante buscaram fazer um jornal pluralista, englobando gente tanto da situação quanto da oposição. O Pasquim Sul, sob o comando de Roque Callage Neto, na terra natal de Brizola, apoiava totalmente esse líder político, como o jornal homônimo carioca.

Enquanto isso, na Rua da Carioca, no prédio com o nome agora de Edifício Leila Diniz, 1986 entrou sem grandes modificações. A Codecri sobrevivia com os aportes do governo estadual e em troca o jornal publicava de três a quatro páginas de anúncios estatais.

Mara Teresa, esposa do Jaguar, passou a ser editora. Além de escrever artigos, fazia a maioria das entrevistas (sozinha ou com Jaguar). O cartunista Amorim começou a trabalhar na redação, no papel que Reinaldo outrora desempenhava.

O Brasil caminhava pela Nova (Velha) República aos trancos, com a economia caindo pelos barrancos. Plano Cruzado I, Plano Cruzado II... O Pasquim se engajou na campanha pela Assembleia Constituinte. Para a Copa de 1986, o jornal publicou edições esportivas, com o reforço de João Saldanha e Sandro Moreyra.

Em junho, celebrando seu 17º aniversário, para mostrar que mais uma vez estava mudando, o jornal ganhou uma reforma visual, criada pelo designer e desenhista Miran, editor da revista Gráfica. Mudou até o logotipo PASQUIM, que passou a ter letras arredondadas.

Aproximando-se as eleições para governador do Rio, em novembro, o Pasquim mergulhou fundo na campanha, exaltando Darcy Ribeiro, candidato à sucessão de Brizola, e espinafrando Moreira Franco, candidato do PMDB. Darcy foi entrevistado três vezes naquele ano. Nas semanas de outubro/novembro, foram publicadas cinco capas seguidas com esse tema.

Quando se anunciou o vencedor da eleição, o nome dele era Moreira. O PDT deu adeus ao Palácio das Laranjeiras. E a base do apoio financeiro do Pasquim murchou.

Não era um bom momento para uma empresa estar em crise — o caos financeiro devorava o país inteiro, com sua fome de inflação. Os preços pulavam feito pipoca, estourando todos os orçamentos. O Pasquim dormiu um dia custando 6 cruzados e acordou no seguinte custando 10. (Isso na primeira semana no ano. No fim do ano o preço na capa já era 30 cruzados.) As finanças do Pasquim estavam abaixo de zero. E a repercussão do jornal em termos nacionais era um zero à esquerda.

Mesmo assim, Jaguar não desanimava, consciente do legado histórico de manter o Pasquim vivo. O jornal subsistia em parte porque seus custos eram baixos. Tinha pouquíssimos colaboradores, recebendo pagamentos quase simbólicos. Amorim ilustrava praticamente todas as matérias, além de desenhar diversas capas.

O Pasquim SP deixou de circular em setembro de 1987. A versão gaúcha duraria um pouco mais, parando em maio de 1988. O projeto dos encartes foi definhando e em meados de 1988 o Pasquim não circulava mais entre as páginas de outros jornais.

Enquanto o jornal agonizava, algumas mortes reais desfalcaram o panteão da mitologia pasquineira. Em maio de 1987 partiu Luizão, Luiz Rosa, o doce mamute que, como o Sig, era um dos símbolos do jornal. Com sua figura enorme, negrona, protagonizou diversas fotonovelas, piadas e capas do Pasquim. Nessa fase da Rua da Carioca, comandava a distribuição do jornal e era o braço direito do Jaguar, cuidando de seus afazeres.

O enterro do Luizão foi um típico episódio humorístico, digno do Pasquim. Não encontraram caixão em que ele coubesse, e Jaguar e Tartáglia, que lidavam com a funerária, tiveram de improvisar. E foi sepultado em outro lugar, pois ninguém conseguiu carregá-lo até o túmulo da família, que ficava no alto do cemitério.

O ano de 1988 nem tinha começado direito e veio com uma das notícias mais trágicas da história do Pasquim: a morte do Henfil. Hemofílico, Henfil fazia constantes transfusões de sangue e numa dessas foi contaminado com o vírus da Aids, uma doença terrível na época, sugadora voraz da saúde e carregada de preconceitos e terror. O iconoclasta, o sarcástico, criador do Fradim e do Cumprido, da Graúna e de Zeferino, do Cabôco Mamadô e de Ubaldo, o Paranoico, o menino mineiro que tascou pimenta no conteúdo do Pasquim faleceu em 4 de janeiro de 1988, em meio a uma revolta pela ausência de controle nos bancos de sangue, permitindo tais contaminações.

Ainda em 1988, mais para o fim, em outubro, faleceu o diretor de teatro Flávio Rangel, colaborador do Pasquim em seus primeiros momentos, o colega solidário que em 1970, mesmo não tendo a prisão decretada, fez questão de se juntar aos companheiros do jornal e lhes fazer companhia nas celas da Vila Militar.

No primeiro semestre de 1988, sem Tartáglia na redação, sem os recursos minguados dos anúncios pedetistas — e custando 60 cruzados —, o Pasquim chegou à tiragem mais baixa de sua história, com 3 mil exemplares por edição.

Em maio, o Jornal do Brasil publicou matéria de página inteira anunciando o fim do Pasquim. O obituário, se para o grande público deixou aquela sensação de “ué-nem-sabia-que-estava-vivo”, entre alguns participantes da história do jornal causou consternação suficiente para que Jaguar, sempre em sua busca insaciável por manter o Pasquim de pé, lançasse uma campanha “Salve o Pasquim”, atraindo à CTI da Rua da Carioca antigos colaboradores.

Com uma capa em que o Sig dava uma banana para os “papa-defuntos do Pasquim”, nomes como Tarso, Ziraldo, Sérgio Cabral, Aldir, Fausto, Ferdy Carneiro, Nani, Chico Caruso e Ricardo Bueno voltaram a publicar (gratuitamente) no ex-hebdomadário (pois agora não saía semanalmente, mas em intervalos irregulares). Para celebrar o 19º aniversário do jornal, Jaguar montou uma edição especial reproduzindo material do primeiro ano do Pasquim.

Não adiantou. As dívidas continuaram vorazes e as vendas continuaram anêmicas. Processos trabalhistas batiam à porta do jornal. Como num roteiro de romance, Jaguar percebeu que a única maneira de permitir que seu amado Pasquim sobrevivesse seria abrir mão dele.

Em agosto, no número 984, um Sig de capa inteira proclamava “ESTE É O ÚLTIMO PASQUIM”. E em letras minúsculas, “Antes da Nova Fase”.

João Carlos Rabello era um jornalista, empresário e agitador cultural em Angra dos Reis, onde tinha uma estação de rádio e publicava, desde 1980, o jornal Maré. Amigo do Jaguar, ele acompanhava o drama do Pasquim, conseguindo anúncios por meio de sua agência, a Tráfego, e publicando artigos esporadicamente. Rabello propôs ao Jaguar assumir as dívidas da Codecri em troca de ele lhe passar o comando da empresa e os direitos sobre o título Pasquim. Em suma, compraria o jornal.

O Pasquim sumiu por dois meses e voltou em outubro de 1988, sob nova direção. A Editora Codecri, que tinha perdido seu elenco de autores e mesmo seu estoque de livros, foi extinta, sendo criada a Editora Siguim, com uma visão empresarial e um esquema profissionalizante. Contratou uma empresa, Lawel Consultoria de Assessoria de Comunicação, para fazer um projeto gráfico, criar uma redação e passar a editar o jornal.

À frente da reforma editorial, foi chamado o jornalista e professor Nilson Lage, que por seu renome no meio conseguiu trazer bons jornalistas para reforçar o conteúdo. A característica principal de sua editoria foi manter poucos colaboradores fixos e promover uma rotatividade para os demais artigos, com articulistas diferentes a cada semana, criando uma variedade. A seção Vale a Pena Ler de Novo republicou material dos primórdios excelentes do jornal.

Jaguar, assessorado por Amorim, continuou à frente da porção humorística do Pasquim. Redigiu um editorial otimista, “Por que continuo no Pasquim”, comparando-se a John Wayne, nas últimas, num forte apache cercado por todos os lados e acabando a munição, quando eis que chega a cavalaria salvadora (no caso, Rabello e sua equipe). Realmente, com as finanças mais sanadas, podendo-se remunerar os desenhistas — pouco, mas regularmente, e em dia (pelo menos no início) —, alguns deles, como os veteranos Nani, Mariano, Nássara, voltaram a colocar seus cartuns no jornal, além dos novos nomes que surgiam.

No início, a fase mais profissional deu frutos. Uma administração eficiente, cuidados com a distribuição, buscando maior alcance nacional, campanhas de marketing e interações com jornaleiros ajudaram num acréscimo das vendas. Houve um momento em que a tiragem do jornal chegou a atingir o bom marco de 80 mil exemplares por edição. A questão é que os frutos não eram tão saborosos, não tinham gosto de Pasquim.

Nilson Lage, embora fosse um excelente profissional, um grande teórico da Comunicação, não tinha experiência com humor, não era essa a sua praia. E começou a entrar areia no projeto. Os artigos de seus convidados eram muito sérios e, por mais que fossem entremeados por cartuns, o jornal foi ficando sem graça. E sem personagens marcantes, sem a presença de uma patota, perdeu personalidade.

Seis meses depois, em março de 1990, viu-se que não dava certo, saíram os profissionais da Lawel e a redação voltou à avacalhação de sempre, com uma equipe mínima (Amorim, Toninho, Pacheco e Inácio), em que cada um desdobrava-se em diversas funções.

As dificuldades financeiras continuaram. Era difícil administrar uma quitanda com o preço dos produtos disparando diariamente. O final do governo Sarney vivia uma hiperinflação galopante e o dólar delirava fora de controle. Um dos custos principais de um jornal é o papel para impressão, que é cotado em dólar. No ano de 1989 o dólar subiu 1.513% e no ano de 1990 subiu 623%! Para economizar, em julho de 1990 o jornal passou a ser quinzenal.

O Pasquim foi apreendido mais uma vez, e pela última vez, em setembro de 1989, em pleno governo democrático. Baque financeiro num momento em que o jornal vivia na lona de tanto apanhar no ringue das finanças. O político Paulo Maluf (herdeiro do slogan adhemariano “rouba, mas faz”) havia proferido mais uma de suas frases infelizes: “Estupra, mas não mata”. O Pasquim fez então uma página dupla central com uma montagem em que um homem de calças arriadas (e cabeça de Maluf), encoxado por trás por um negro, repete essa frase. Com o título “Vale tudo na caça ao voto”. O prócere paulista procurou o ministro da Justiça, o qual ordenou que a edição do jornal fosse recolhida e incinerada, demonstrando que não só o Pasquim continuava existindo como também os arroubos autoritários.

Enquanto isso, valia tudo também na caça aos leitores. Rabello (que anos mais tarde criaria o bem-sucedido Festival Internacional de Teatro de Angra, o Fita) mantinha a confiança de que o Pasquim poderia dar certo, mas o dinheiro não entrava tanto, as vendas despencavam novamente e uma saída foi apelar para uma linha editorial popularesca, buscando impulsionar as tiragens na base da baixaria. Onde antes reinaram Leila Diniz, Odete Lara e Dina Sfat, a musa do Pasquim era Enoli Lara e sua bunda retumbante.

O tresloucado governo Collor, que entrou arrombando em março de 1990, seria um prato cheio para um jornal satírico forte, contundente, com fome de traçar os escândalos e desmandos. Embora o anêmico Pasquim continuasse arreganhando os dentes — quando Collor confiscou a poupança dos brasileiros, publicou a capa “Votaram neLLe? Fodam-se!” —, de um modo geral pedia arrego.

Um vislumbre do passado ocorreu no carnaval de 1990, quando o Pasquim virou enredo de escola de samba, “Os Heróis da Resistência”, homenageado pela Acadêmicos de Santa Cruz no desfile do Grupo Especial. Puxado por Carlinhos de Pilares, o samba cantava as glórias do Pasquim (“o pequenino imortal, simbolizado pelo ratinho sacana, mesmo bombardeado virou paixão nacional”) para se inspirar em Ivan Lessa no refrão “gip gip nheco nheco / por favor apague a luz”.

Nos preparativos para o desfile, nos ensaios e visitas ao barracão, a Turma do Pasquim se reencontrou, numa de suas últimas vivências em conjunto (só apareceriam juntos publicamente quase 20 anos depois, nas celebrações dos 40 anos). Ao porem os pés no Sambódromo, na Comissão de Frente, excitados como crianças, deslumbrados pelas luzes, ovacionados pelo povo, era como se fossem novamente os porra-loucas sonhadores, estivessem numa Ipanema mítica criando uma revolução na imprensa e nos costumes brasileiros. Mas o Pasquim agora realmente não dava sorte: a Acadêmicos foi rebaixada (a evolução dos passistas pasquineiros na avenida também deve ter contribuído para isso).

Tarso não foi ao desfile. Brigado com todo mundo, como do feitio do seu temperamento irrequieto, nos últimos tempos tinha ficado de bem apenas com Jaguar, chegando a escrever alguns artigos para o Pasquim. Em maio de 1991, aos 49 anos, ele faleceu, de tanto beber. Gastou sua vida como viveu a gastança de quando o Pasquim era cornucópia sem fundo: sem freios e sem arrependimentos. Nos áureos tempos, Tarso de Castro deu a cara do que seria o Pasquim, com o charme que encantou tantas mulheres e leitores — e se ele não existia mais, seria impossível existirem aqueles tempos.

Quem partiu em seguida foi dona Nelma. Secretária de fé e medianeira. A mãe do Pasquim, a mulher que resolvia os problemas, que apartava as brigas, babá, confidente e amiga dos marmanjos endiabrados. Foi subir num ônibus e arranhou a perna numa ponta de lataria enferrujada. Deu tétano. O hospital que a atendeu não tinha vacina antitetânica e dias depois ela morreu. Morte besta.

Quem morreu bestamente também foi o Pasquim. O poeta Elliot escreveu que era assim que acabava o mundo, não com um estrondo, mas com um gemido. Com o Pasquim não houve nem gemido. Nem nada. Simplesmente acabou. Numa semana existia, na outra não existia mais. Ninguém foi avisado de que deixaria de circular, não houve edição de despedida, não teve Sig anunciando “ESTE É O ÚLTIMO NÚMERO”. Assim como muitas das inovações do Pasquim foram por acaso, sem planejamento, o Pasquim acabou sem que se programasse o seu final.

Quando o número 1072 ficou pronto e foi para as bancas, em outubro de 1991, Rabello decidiu que não fariam o 1073. Não houve nenhum motivo específico. Só o cansaço. E a falta total de grana. Anos depois ele explicaria a matemática. A inflação estava em 80% ao mês. O jornal era impresso e distribuído para jornaleiros Brasil afora. A distribuidora recolhia o dinheiro das vendas e repassava à Siguim 45 dias depois. Às vezes demorava até três meses para entrar tudo. Quando aquele dinheiro chegava não valia mais nada.

Jaguar também estava cansado, 21 anos depois. Num primeiro momento, ficou aliviado com o fim. Como quando desligam os tubos de um parente e dizem: descansou. Depois, claro, sentiu a ausência: lutara tanto para continuar mantendo aceso o sonho do humor...
Jaguar estava lá nos primeiríssimos momentos, quando Tarso assumiu A Carapuça depois da morte do humorista Sérgio Porto e ele (Jaguar) achou melhor fazerem logo outro jornal, chamado O Pasquim. E estava lá no apito final da prorrogação. Foi o único que atravessou toda a longa jornada. O Pasquim foi o Jaguar. E Jaguar era O Pasquim. Ele e o mascote Sig: e aí, ao contrário dos dizeres, o rato foi o último a abandonar o navio. Um dia, Jaguar fechou a redação e nem teve que apagar a luz.

Ricky Goodwin

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