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O Pasquim

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Luiz Carlos Maciel

COMEÇO DO PASQUIM

“Se as más línguas dizem que O PASQUIM nasceu numa mesa de bar, eu pelo menos, não tenho a menor autoridade moral para desmentir. No que me diz respeito, é a pura verdade. Mais: o jornal nasceu, para mim, não apenas numa mesa de bar mas em várias mesas de vários bares. É fácil encontrar o Tarso de Castro nesses lugares. E a mim também. De modo que nos encontrávamos com frequência, sem precisar combinar pelo telefone nem nada. e o Tarso me dizia no seu melhor estilo de profeta escocês — se é que vocês entendem o que quero dizer:

— Olha, vamos fazer um jornal para a gente trabalhar pouco e ganhar muito.

A profecia realizou-se ao contrário: a gente está trabalhando muito e ganhando pouco. Eu não perdoaria essa falta de vocação do Tarso para Nostradamus e congêneres, se ele não a compensasse com a escolha de entrevistados, esses sim, proféticos. Vejam que o Ibrahim disse quem ia ser o próximo presidente da República: o general Garrastazu Médici. Pois não deu outra coisa. A Elis Regina também disse que, em pouco tempo, ia passar a onda do Martinho da Vila. E não é isso mesmo que está acontecendo, apesar de todo o desespêro do Sérgio Cabral?

Pois é. O PASQUIM publica hoje a notícia de amanhã. Não admira que esteja imprimindo cem mil exemplares.

Deixem-me, porém, voltar à mesa de bar que é um de meus lugares favoritos, nessa amarga vida. Depois dos encontros com o Tarso, nas madrugadas e botequins dessa amarga vi O PASQUIM nascer de num barzinho da Cinelândia, um barzinho que eu não conhecia, discreto e meio escondido, que o Jaguar havia descoberto em suas infatigáveis pesquisas pela cidade à procura da melhor caipirinha e do uísque mais puro. Tarso, Jaguar, Sérgio Cabral, Claudius e Prósperi sofriam de fazer gosto porque não conseguiam escolher um nome para o novo semanário. O jeito era mesmo afogar as mágoas. E. para contar a verdade, nós a deixamos submersas tanto tempo que acabei chegando tarde em casa e levando a maior bronca da minha mulher. Mas deixa isso pra Ia.
Winston Churchill pediu sangue, suor e. lágrimas para que a vitória pudesse ser alcançada. O PASQUIM também.

Não me lembro quem sugeriu o nome O PASQUIM, nem quem lutou por ele. Lembro que fui contra: parecia-me um lugar-comum que minha indiscutível atração pelo sofisticado, o sutil e o original, rejeitava com certo constrangimento. Aí já estávamos, Tarso, Jaguar e eu em outro bar, na Avenida Rio Branco tomando uma excelente caipirinha, quando eu disse, pensando que sabotava mortalmente a ideia:

— Esse nome de O PASQUIM é coisa que a gente bolou para o jornalzinho do colégio, quando a gente era criança.
Para minha surpresa, Tarso e Jaguar exultaram.

— Perfeito! É isso mesmo que a gente quer? --- disse o Jaguar.

— Genial! O nome só pode ser esse mesmo: O PASQUIM — o Tarso falou. Fiquei perplexo. Continuo perplexo até hoje.

Com nome de jornalzinho de colégio e tudo, O PASQUIM começou a vender adoidado, virou um sucesso jornalístico indiscutível e passou a ser uma espécie de questão existencial para quase todo mundo.

É, isso mesmo, uma questão existencial. Não estou exagerando, não. Hoje, pelo menos nos chamados grandes centros urbanos, as pessoas tomam posição em relação ao PASQUIM. São contra ou a favor, discutem, inventam teorias, etc. e tal. Já se viu uma coisa dessas? Pelo que tenho que tenho observado, as pessoas não ficam discutindo os órgãos de imprensa: eIas os leem ou não; compram-nos ou não; gostam deles ou não. E fim de papo. Para O PASQUIM todo mundo tem uma teoria de como deveria ser, mais corajoso ou mais covarde, mais agressivo ou mais tático, mais isso ou mais aquilo. Tenho a impressão que cada um tem no projeto deste despretensioso hebdomadário algumas de suas mais profundas necessidades pessoais, Ele as satisfaz ou as frustra — o que talvez seja até mais frequente. É claro que O PASQUIM jamais desejou uma responsabilidade tão incômoda. Mas os leitores que, afinal, sempre têm razão, atribuíram-no a tarefa sagrada. Quer dizer: é uma questão existencial.
Quanto à minha própria experiência pessoal com O PASOUIM, não tenho muito a contar. “É um jornal de humoristas” --- disseram-me. Como sou sujeito a periódicos ataques de curiosidade intelectual, eu experimentei a mão no género.

Acho que não me dei bem, não. Acho que não tenho vocação para a coisa, embora a minha amiga Ítala Nandi ache que a gente. sempre pode ter a vocação que bem entender. E espero ter caído fora a tempo. Um dos lemas que inspiram meu comportamento nesta amarga vida é aquele velho ditado inglês (ou americano): When the things get black, I take my body out. Essa é velha, eu sei, mas é cheia de verdade.
E como temo que esse depoimento esteja descambando para o perigoso terreno da confissão pessoal, tiro o corpo fora. Vejo-os de novo quando O PASQUIM atingir os duzentos mil exemplares. Até lá! “

OPÇÃO POLÍTICA

“A opção política foi entre a caretice dos velhos e o desbunde. O Pasquim não foi feito para ação política contra a ditadura. Ninguém tinha isso na cabeça.”

“Claro. Quem fazia isso era o Opinião, o Movimento, mas não o Pasquim. O que era O Pasquim? O Pasquim era a oportunidade para um grupo de vedetes do jornalismo brasileiro ter a liberdade de escrever o que bem entendesse.”

“Sem serem submetidos às determinações dos chefes de redação, das reuniões de pauta, etc. De vez em quando chega uma garota dos jornais: “Onde eram as reuniões de pauta do Pasquim?”. Não existia isso. Cada um ali era estrela, fazia o que bem entendia. Alguns gostavam um pouco mais de mim. Por exemplo, o Paulo Francis simpatizava comigo, não sei por quê.”

EDIÇÃO DO PASQUIM

E tem uma coisa que a Flor do Mal herdou d’O Pasquim, que é uma coisa positiva, talvez a coisa mais positiva que aconteceu lá n’O Pasquim para o jornalismo, e que foi o motivo pelo qual O Pasquim teve a repercussão que ele teve, que foi o seguinte: de vez em quando, ao longo dos anos, eu recebo visitas de estudantes de comunicação, principalmente as moças, chegam pra mim e dizem: “Ah, meu deus do céu, como eu queria ter visto uma reunião de pauta de vocês d’O Pasquim”. Aí eu respondo assim: “Nunca houve isso. Nunca houve uma reunião de pauta n’O Pasquim”. O Pasquim era um semanário feito para e por estrelas do jornalismo que estavam insatisfeitos, porque não tinham liberdade nos órgãos da grande imprensa. Então, essa foi a ideia fundamental do Tarso. O Tarso bolou isso. Ele percebeu naquele momento, no fim dos anos 1960, que havia uma insatisfação total entre os jornalistas mais interessantes em atuação no Rio de Janeiro. O Paulo Francis estava insatisfeito porque não escrevia o que queria, o Millôr estava insatisfeito também, o Jaguar não podia fazer o cartum que ele queria… O Tarso percebeu que daria para juntar esse pessoal todo num mesmo jornal. “Vamos fazer um jornal, e cada um faz o que quer”. Então, se a ideia era essa, para quê reunião de pauta? Não tinha reunião de pauta. Cada um fazia o que bem queria, no dia marcado para o fechamento entregava o que tinha feito para o Tarso. O Tarso nem discutia, pegava e ia editar. Todos faziam isso. E o Tarso não ia discutir com o Jô Soares, com o Paulo Francis, nem com ninguém sobre o que ele devia fazer ou não devia fazer. Eu considero o Tarso um gênio do jornalismo e o verdadeiro responsável pelo sucesso d’O Pasquim. Porque ele pegava o que viesse, olhava e matutava, e armava a edição do jornal. “Esse negócio que o Francis escreveu vai na página três, o quadrinho do Ziraldo na cinco…” E depois preparava as chamadas, as capas, resolvia o resto para formar o conjunto do jornal.

A edição, o resultado final era o Tarso que fazia, era o Tarso quem dizia como tinha que ser feito. O que cada um fazia sua contribuição em casa, fazia como bem entendia e entregava pro Tarso. Aquilo era texto pro Tarso se divertir.

Aí era a hora do Tarso mostrar o seu talento de editor. E tudo n’O Pasquim foi ele que fez. Underground, quem fez foi o Tarso. O Underground, o Tarso sabia que eu era ligado nessas maluquices que estavam acontecendo nos Estados Unidos, contracultura, textos. O Tarso sabia que eu curtia essa coisas. Então, um dia chegou pra mim assim: “Maciel, quero que você edite duas páginas deste assunto, que não tem na imprensa brasileira. As notícias chegam e são jogadas nos cestos de lixo. Então você vai fazer, tem autonomia completa pra fazer o que você quiser nessas duas páginas”. E ainda batizou: “Vai se chamar Underground”. Então ele fazia o jornal, resolvia todo material que chegava. Agora, antes cada um tinha total liberdade. A gente não fazia reunião de pauta pra decidir o que ia ser importante ou não.

AS ENTREVISTAS

“Olha, no começo do ‘Pasquim’ eu era o encarregado de tirar as entrevistas da fita gravada e botar no papel. Dava um trabalhão danado!!! As entrevistas variavam de, digamos, seis páginas até duas ou três fitas, como foi o caso de uma famosa entrevista com o Tom Jobim em que todo mundo ficou muito bêbado e, quando fui tirar do gravador, não entendi nada porque todo mundo falava ao mesmo tempo. Mas se eu tiver de escolher uma daquelas entrevistas, voto na da Leila Diniz. Foi um barato!”

A ENTREVISTA LEILA DINIZ

“Cheguei mais pro fim, mas cheguei. Foi na casa alugada do Tarso com a Bárbara, em Ipanema, rua Paul Redefern, perto da praia. A entrevista de Leila foi parecida com a maioria das entrevistas do Pasquim da época, principalmente com a liderança do Tarso. O ambiente era alegre, a gente bebia um pouco (em algumas muito, como a do Tom), ria muito, etc. Leila era uma gracinha, era professora de crianças e tinha uma visão libertária de sua profissão, uma pessoa de vanguarda e uma mulher adorável. Mas olha sem querer ser velho, cansado e chato, o fato é que me chamam pro almoço.

Será que não dá pra fazer uma pausa? A gente continua depois. Daqui a uma hora por exemplo. Sorry. Claro, eu ia dizer a mesma coisa, ainda nem lavei os pratos hoje... te chamo daqui a uma hora...”

COLUNA UNDERGROUND

“Quem inventou a coluna Underground foi o Tarso. O Tarso disse: ‘Te dou duas páginas pra você editar com essas maluquices que você gosta’. Foi assim que eu virei o guru da contracultura. Graças ao Tarso.”

A VITÓRIA DO UPPERGROUND

“No artigo “A vitória do Upperground”, publicado no jornal por Millôr, em março de 1972 (nº 141) –, texto cujo título marca simbolicamente o fim da coluna Underground, de Luiz Carlos Maciel, a saída do editor Tarso de Castro e o abandono do caráter contracultural que O Pasquim havia adquirido – o autor fornece ao leitor um mapa legendado os principais pontos de Ipanema (pelo menos para os círculos de amizade da esquerda festiva), desenhado pelo cartunista Miguel Paiva.

Destacando um prédio na orla de Ipanema, Millôr revela: “Aqui moro eu (Millôr) desde o tempo em que viver em Ipanema era um prazer lúdico e não uma busca de status. Duzentos e cinquenta metros quadrados comprados por 3.000 cruzeiros, quem quiser que morra de inveja”

CAETANO NO PASQUIM

“Convidei Caetano, em nome do Pasquim. Tarso me pediu: “Escreva pro Caetano, já que você o conhece… Peça pra ele escrever no Pasquim”. Para desgosto do Millôr e sua turma, o Caetano aceitou e começou a escrever.”

BRIGA DE MILLÔR E TARSO I

“As brigas internas do "Pasquim" eram pessoais, no fundo eram uma só, essa que você citou, entre Tarso e Millôr. Era uma briga pessoal, pelo poder, simplesmente. Uma briga pelo poder que o Millôr acabou ganhando porque influenciava mais a maioria dos colaboradores, cartunistas como ele, ou intelectuais como o Francis, que era aliado dele. Poder-se-ia dizer que era direita contra esquerda porque o Millôr era de direita e o Tarso de esquerda. Mas não foi isso, foi pessoal, havia apoiadores do Millôr que eram de esquerda, o próprio Francis mesmo, que ainda não tinha tido a cabeça feita pelo Delfim. Era pessoal, os santos não combinavam.”

BRIGA DE MILLÔR E TARSO II

“O Tarso era meio autoritário: é claro que ele não ia dizer pra nenhum desses colaboradores o que deviam fazer, mas no geral a concepção do jornal ficava inteiramente com ele. Agora, o Tarso teve desde o começo um antagonista poderoso, e que acabou derrubando ele, que foi o Millôr. Porque o Millôr tinha uma ascendência intelectual muito grande sobre os outros, principalmente os cartunistas. Os cartunistas, Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Henfil, todos eles, achavam o Millôr um gênio. E eles eram só cartunistas, eles não eram intelectuais. O Millôr era cartunista respeitado pela sua arte, e ao mesmo tempo era um intelectual, um escritor, um dramaturgo. Escrevia peças, escrevia a coisa que quisesse. E o Millôr tinha uma personalidade forte, ele era praticamente intimidador na relação com os outros. Paulo Francis não se meteu com ele. Mesmo o Francis que é todo metido a valentão… Paulo Francis bombava com todo mundo, mas não bombava com o Millôr não. Preferia apoiar o Millôr, ou seja, ser aliado do Millôr. Aí uma frente de Millôr e Paulo Francis, quem é que vai encarar? O Tarso e o Maciel? E eu ainda estava ali porque fui levado pelo Tarso, porque na realidade quando O Pasquim começou ninguém sabia quem eu era. Eu era um ilustre desconhecido. Eu era um amigo do Tarso lá de Porto Alegre. E ele me botou lá dentro junto com os “estrelos” todos. E numa circunstância em que a concepção do jornal e a vida do jornal dependia do Tarso, eles não iam fazer nada pra me expulsar, me engoliram.

O Tarso desculpava o Henfil, porque ele era hemofílico e tal… Mas ele não desculpava o Millôr. Ele dizia: “Isso aí é malandragem do Millôr, daquele irmão dele, que transita pelo poder, pela Tribuna da Imprensa, que é do Carlos Lacerda”. Engraçado que depois o Tarso trabalhou na Tribuna da Imprensa e me levou, porque o Tarso ficou amigo do Helinho…

A saída d’O Pasquim foi por isso, porque depois da volta da prisão, a briga entre o Tarso e o Millôr se acirrou. Porque o Tarso passou a abertamente a levantar suspeitas sobre o Millôr, porque ele não tinha sido preso. Nem ele nem o Henfil. Ele não desculpava o Millôr. E o Millôr tinha muita influência, muita ascendência sobre os cartunistas todos.

Porque todos eram admiradores do Millôr, como eu disse. Então o Millôr tinha muita autoridade. Então o Millôr disse que o Tarso estava roubando O Pasquim. A velha acusação da corrupção quanto ao poder, porque o Tarso era o diretor-geral, então ele disse que o Tarso era um corrupto que estava mamando, e que devia ser despachado. E aí os dois outros, o Jaguar e o Ziraldo, concordaram e despacharam o Tarso. Eu ainda fiquei colaborando, mas me chamaram na diretoria e disseram assim: “Olha, Maciel, você pode parar de escrever porque o Millôr já deu ordem de que a você ele não paga, O Pasquim não paga nem um tostão”. E eu disse: “Não faz mal, eu vou escrever de graça pr’O Pasquim”. Aí eu ainda escrevi de graça por algumas semanas, depois enchi o saco e parei.”

BRIGA DE MILLÔR E TARSO III

“Sentia que ele [Paulo Francis] era amigo, simpatizava comigo. Outros me detestavam. Millôr detestava, achava um horror. Millôr era muito influente em cima dos cartunistas. Lá tinha intelectual e cartunista. Paulo Francis era um intelectual, Jaguar era um cartunista, Millôr era um gênio, porque ele era intelectual e cartunista. Millôr era primus inter pares, chefe, comandava tudo. Quem chutou o Tarso do Pasquim foi o Millôr, porque o Tarso disputava com o Millôr. Tarso queria se assegurar como o grande chefão do Pasquim. Millôr não suportava isso, então um dos dois tinha que dançar.”

A PRISÃO

“Estive preso com eles dois meses na Vila Militar. O Paulo Francis tinha acessos de depressão, ficava lá recolhido, não falava com ninguém. Millôr nunca foi preso. Era a grande acusação que o Tarso fazia pro Millôr: “Por que o Millôr nunca foi preso? Por que os milicos pouparam o Millôr?” Até hoje não sei. Sei que Millôr era irmão de Hélio Fernandes, que fazia negócios com Lúcifer, com os milicos.”

A PRISÃO II

“O exército, baseado na lei de segurança nacional da época, pegou a redação d’O Pasquim inteira, com uma ou duas exceções, e botou tudo em cana na Vila Militar. Inicialmente nós ficamos todos em duas celas da brigada aeroterrestre, que era dos paraquedistas. Depois que começaram os interrogatórios, fomos divididos. Quem começou os interrogatórios foi um capitão que era o chefe da comissão do inquérito sobre O Pasquim. Ele nos interrogava individualmente no prédio do quartel-general da vila militar. Havia uma sala lá onde eles nos recebiam muito bem, e ficavam querendo saber como é que chegava o ouro de Moscou, ou seja, o dinheiro da União Soviética, que segundo o responsável pelo inquérito era o que subvencionava O Pasquim para preparar a revolução comunista no Brasil e derrubar o governo militar.

Essas coisas de milico. Lembro até que eu virei pra um capitão e disse assim: “Se esses viados desses filhos da puta do Jaguar, Tarso de Castro, Sergio Cabral, que são os donos do jornal, se eles tão ganhando grana de Moscou, eu vou dar porrada neles, porque não me deram nem um tostão, porra!”

Então estávamos presos. Depois que a gente prestava esse depoimento, não voltava mais para aquela cela da brigada aeroterrestre, porque lá a gente iria encontrar todos os companheiros. Senão eles iam perguntar como foram os inquéritos, saber as questões colocadas, nós íamos dizer, e eles poderiam preparar respostas mentirosas para quando fosse a vez deles. Então nos mandavam para outro lugar. Aí, eu fui parar no batalhão de manutenção de armamentos. Quando eu cheguei lá tinham duas fileiras de soldados. Eu fui, passei no corredor polonês para entrar numa cela onde eu fui trancafiado logo, e quem estava lá eram aqueles que já haviam sido interrogados. Era o falecido Fortuna, o José Grossi, que era diretor do Jornal, e o Sergio Cabral, que era o editor-chefe. O Sergio Cabral era praticamente quem mandava n’O Pasquim naquele momento. Então eu fiquei lá na cela com eles, e depois recebi uma visita do comandante do quartel, que era o coronel Chacrinha. Esse era o apelido do coronel, os soldados o chamavam assim porque ele era parecido com o apresentador de televisão. Era um vovô. Ele invocou logo com o meu cabelo, porque eu era da contracultura e tinha um cabelo até as costas. E ele disse assim: “Ih, porque é que você usa esse cabelo”? Ai eu disse: “Coronel, uso porque acho bonito”. E ele: “Bonito? Uma coisa feia dessas”? Para você ver a diferença de gosto estético entre o preso e o seu carcereiro…

Nós ficamos vários dias, semanas, naquele quartel. Estava o Ziraldo também, na mesma cela. Ziraldo, Sergio Cabral, Grossi e eu. Os outros, Paulo Francis, Jaguar, Flavio Rangel, Tarso de Castro, tinham ido para outros paradeiros. Então, num momento… Eu acho que isso aconteceu depois que cortaram meus cabelos, porque teve um momento em que a gente estava na cela e chegou um cabo com dois soldados armados de fuzil, apontaram pra mim e me fizeram sair da cela. E eu fui sendo escoltado pelo pátio do quartel, sendo conduzido não sabia para onde. Provavelmente para ser fuzilado, era o que me passava pela cabeça. Mas logo esse medo saiu da minha cabeça quando, atravessando o pátio, eu vi que nós estávamos indo na direção da barbearia do quartel. Para o salão de barbeiros, onde já me esperava o barbeiro, civil. E aí, ele me sentou na cadeira de barbeiro, chegou assim no meu ouvido: “Como é que o senhor quer que eu faça o seu cabelo?” E eu: “Pode cortar de qualquer jeito, já que está sendo cortado à força mesmo.

Eu não quero cortar o cabelo, passa uma máquina zero”. Aí ele chegou e disse assim: “Olha, então vou fazer para o senhor o corte social para oficiais”, que não era o corte dos recrutas, com a cabeça raspada. Aliás, a certa distância, ficava transitando um tenente, que eu fui saber depois que era o oficial do dia, e que tinha ficado tomando conta do quartel durante o fim de semana. Ele que tinha dado a ordem para me cortarem o cabelo. E aí foi engraçado, porque o barbeiro terminou, trouxe um espelho pra me mostrar como ficou o corte atrás, se eu aprovava, e eu fiz um choro, não quis olhar. De repente, olhei para o espelho, olhei para o cabelo do tenente, e estava igual! Era o mesmo sujeito, evidentemente, que tinha cortado o cabelo do tenente.

Nisso aconteceu que os subversivos sequestram o embaixador norte-americano. Antes, já tinham sequestrado o embaixador alemão. Aí, à noite, estamos todos na cela, e entra um tenente paraquedista – fortinho, bonitinho, bem jovem – dizendo assim: “Ah, eu sou admirador de vocês, estou sempre em Ipanema, frequento os bares de Ipanema, tomo chope nos bares de Ipanema igual a vocês”, dando uma de avançadinho, na concepção dele. E ele nos passou uma porção de folhas de papel almaço e canetinhas BIC e disse: “É o seguinte: vocês têm que escrever de próprio punho que vocês rejeitam a ação desses terroristas que estão fazendo essas guerrilhas e querem derrubar o governo, e que vocês são contra isso, porque isso pode ajudar a libertação de vocês”. Aí, cada um pegou o seu papel e foi escrever sua declaração. O Fortuna escreveu a dele e morreu de rir, porque a declaração dele era uma frase só. O Ziraldo talvez não goste que eu conte isso, mas ele foi escrever a dele no banheiro, porque estava se borrando. Eu sentei lá e escrevi a minha. E disse assim: “Eu repudio a ação dos terroristas, confio na justiça do Brasil, e sou inocente e isso será reconhecido na justiça” e tal, essa conversa fiada, mas no final botei assim: “Agora, eu tive meus cabelos cortados à força dentro do quartel. Não sei de lei nenhuma que autorize a que cortem o cabelo de um preso que não foi sequer julgado, muito menos condenado. Então, eu quero deixar claro meu protesto contra essa decisão arbitrária de terem cortado meu cabelo”. Chega no outro dia e vem lá um sargento e diz: “Preso Luiz Carlos Maciel, venha comigo, o senhor foi chamado”. Aí foi e me levou lá no QG da Vila Militar, na sala onde tinha o capitão que era o encarregado do nosso inquérito. Toda vez que eu ia lá depor, ele levantava sorridente, estendia a mão, apertava, mandava eu sentar, tudo assim supercivilizado, sabe? Mas nesse dia ele estava uma fera: não sorriu pra mim, não me apertou a mão, e disse assim: “Mandaram mexer nos seus cabelos?” Eu disse: “Pois é, capitão”… E ele: “Você fez uma denúncia na sua declaração por causa dos seus cabelos”. E eu: “Pois é, capitão, são os meus direitos, não dei permissão para ninguém cortar meus cabelos, cortaram”. E contei a história. Aí entrou uma ajudante dele e disse qualquer coisa baixinho no ouvido dele, e ele disse: “Manda ele entrar”, e me disse: “Você vai pra outra sala”. Eu fui pra outra sala e quem entrou foi o tenente que tinha mandado me cortarem os cabelos. Aí, eu não vi a cena, mas eu ouvi, porque o capitão estava puto, e dizia assim: “Quem o senhor pensa que é pra ficar cortando cabelo de preso sem autorização? O senhor não tem autonomia pra isso, pra tomar uma decisão dessas… Vai ficar detido dentro do quartel durante o fim de semana”!

Mas foi antes disso que aconteceu o que é importante contar aqui: quando eu voltei para a cela tosado das minhas madeixas, todo mundo ficou chocado. Sergio Cabral ficou chocado. O Sergio Cabral que era, lembrem, o editor-chefe, mandava n’O Pasquim. E essa coisa de você ficar preso dentro de uma cela com outros caras, você cria um vínculo estranho com as pessoas que participam da mesma desgraça que você, se fortalece uma amizade. Mesmo que depois quando é solto se separem, e acabou aquilo, no momento em que você está lá dentro da cela há uma identificação misteriosa entre os colegas de cana. Já era algo sabido que quem fica na mesma cela cria um laço. Porque nós éramos presos políticos, né? Numa época em que a gente ficou incomunicável, sem receber visitas, sem receber jornal. Ficamos só nós. Aí, o Sergio Cabral disse: “Maciel, eu quero assumir com você um compromisso, uma promessa, um acordo: quando a gente sair daqui, você me pede o que você quiser lá n’O Pasquim, que eu dou”. Fiquei pensando: “Vou pedir o que? Ser sub-diretor?

Quero mandar e desmandar n’O Pasquim?” Eu não pensei nada disso. A primeira coisa que me veio na cabeça, foi a que eu falei imediatamente: “Eu quero que O Pasquim produza um jornal pra mim. Um semanário, em que eu possa expandir as páginas do Underground. Um semanário dedicado à contracultura. Você topa que O Pasquim faça isso?” E ele: “Claro, claro, vamos fazer, nós vamos fazer isso, você vai ter seu semanário de contracultura”. E eu: “Então tá fechado”. Foi assim que nasceu a “Flor do Mal.”

A PRISÃO III

“Tocaram a campainha do meu apartamento, eu olhei, tinha um rapaz assim, adornado, forte, que pegou uma carteira e botou a carteira no olho mágico, viu que tinha alguém olhando, A carteira dizia "Brigada Aeroterrestre", Aí eu vi que ele era um milico, abri a porta e ele entrou, era tenente paraquedista, acompanhado de sargento paraquedista e de um cabo, todos os três em trajes civis, e aí me falaram que eu estava intimado a prestar esclarecimento, aí eu perguntei assim: – Para prestar esses esclarecimentos, eu devo levar minha escova de dentes ou não? Aí ele disse – Leva! (risos)
Eu vi que eu estava em cana mesmo.

A lei de segurança nacional vigente na época previa detenção de qualquer cidadão brasileiro sem notificação judicial de espécie nenhuma, para averiguações. Essa lei é que possibilitou os assassinatos todos que foram cometidos durante a vigência dela, porque oficialmente ninguém estava preso, aí pegava qualquer um na rua, botavam num avião e jogavam lá de cima, como fizeram. E pronto, ficava por isso mesmo, ninguém sabia quem tinha sido.”

CENSURA COM O GENERAL JUAREZ

“Eu escrevi um poema, e o poema que tinha uma certa tradição de geração de 45, uma poesia mais hermética, era um poema hermético, e aí chegou lá pro general censurar e pegou o lápis vermelho no meu poema e riscou um X vermelho no meu poema e escreveu vetando, mas aí o Ziraldo falou:

– Mas general, por que o senhor vai vetou o poema do Maciel? Que mal pode fazer isso? Não tem nada, isso aí é uma coisa que não tem pé nem cabeça, nem se entende o que tá escrito aí, por que que vai ser vetado?

Aí o general disse:

– Exatamente isso. Porque não se entende. Porque que o Maciel está botando um poema que não se entende no Pasquim? Pelo seguinte, porque o Maciel está passando para o leitor a seguinte mensagem subliminar: como eu não posso escrever aquilo que eu quero, porque tem censura de imprensa no Brasil, eu escrevo uma coisa pra ninguém entender! Bom, se o Maciel pensa isso, que ele não pode escrever porque tem censura no Brasil, é uma mentira, ele está mentindo, e portanto eu censuro. Isso é uma lógica repreensiva (risos)”

COLUNA UNDERGROUND

“Quem inventou a coluna Underground foi o Tarso. O Tarso disse: ‘Te dou duas páginas pra você editar com essas maluquices que você gosta’. Foi assim que eu virei o guru da contracultura. Graças ao Tarso.”

TARSO E AS MULHERES

“Tarso gostava da filosofia de um personagem de Jorge Amado que dizia que naturalmente não se pode comer todas as mulheres que se quer, mas que se deve "fazer um esforço".

Tarso fazia esse esforço o tempo todo. Me lembro que uma bela tarde, estou em casa e a campainha toca. Abro a porta e me deparo com o Tarso... com quem? A Candice Bergen. Ela entrou, sorriu, elogiou uma árvore que quase entrava pela janela da sala... Fiquei besta. Foi atrás dela em Nova York. Na primeira noite na Big Apple, saiu para jantar com Candice que convidou também a sua grande amiga Ali McGraw. Foram a um restaurante escolhido pelas duas. Tarso pagou a conta e, assim, acabou todo o dinheiro que tinha levado! No dia seguinte, não teve outro jeito, pegou o avião de volta ao Rio. E comentou comigo: ‘Mulher muito cara, pra mim não dá...’”

TARSO E MACIEL

“Nós éramos os enfants terribles dentro do Pasquim [Tarso e Maciel], por isso eles não gostavam. A gente tinha uma outra visão das coisas. Aliás, quem tinha uma outra visão das coisas era eu. O Tarso ia na minha, porque o Tarso que me inventou. Eu não era pra entrar no Pasquim, eu não era famoso como eles, não tinha motivo nenhum pra estar naquela turma.

Quem chegou e determinou, porque ele tinha ascendência ditatorial e autoritária, foi o Tarso. Quando vou com maluquice pro Tarso, ele diz: ótimo, Maciel, essa maluquice sua é bacana. Me dava força. Tarso nunca foi a favor da contracultura. Tarso detestava maconha.”

“Era machão, só gostava de uísque. Quer dizer, era igual aos outros, mas me dava força. Eu levava os malucos pra lá. Mautner, Caetano, Antonio Bivar, todos esses caras. Levava com a aprovação do Tarso. Na Underground, Tarso deixava eu botar o que quisesse.”


(Seleção de entrevistas, O Pasquim, Planeta do Brasil, Bravo, Brasil 247, Arquivo Geral da Cidade do RJ,blog IMS, TV Câmara)

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