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O Pasquim

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Sérgio Augusto

O nanico que deu certo

O Pasquim foi o maior fenômeno editorial da imprensa brasileira. A bancá-lo, só um punhado de porras-loucas. Assumidamente nanico, moleque, paroquial e abusado, nasceu sob a suspeita de que duraria pouco tempo. Durou, afinal, 1.072 números — o equivalente a 22 anos de vida. Aos trancos e barrancos, é verdade, mas durou até mais que o regime militar, sob o qual nasceu e floresceu.

As suspeitas iniciais tinham sua razão de ser. Onde já se viu um jornal sem patrão, em que todos os colaboradores podiam escrever o que e como bem entendessem? Pois a velha utopia de dez em cada dez jornalistas revelou-se, mais do que factível, um sucesso — fulminante. A tal ponto que o cético Millôr, que no segundo número previra menos de três meses de vida para o solerte hebdomadário, admitiu, já no quarto número, que se equivocara.

Foi, sem dúvida, um risco; quase uma bravata. Entre setembro de 1968, quando a ideia do jornal não era mais que um brilho nos olhos de Jaguar e Tarso de Castro, e 26 de junho de 1969, quando o primeiro número chegou às bancas, os generais haviam “legalizado” a ditadura com o AI-5 e a censura apertara as cravelhas nas redações menos dóceis ao novo regime. O Pasquim não pagou barato pela audácia de nascer já do contra (sobretudo contra as babaquices da classe média) e “livre como um táxi”, “equilibrado como um pingente”, “incômodo como um folião num velório”. E ainda que nos primeiros tempos fosse mais folgazão, gozador, festivo e atento a questões de comportamento, aos poucos se deixou contaminar pelo inevitável: a indignação política. Sem, contudo, abrir mão do velho preceito de Horácio: o riso é a melhor arma contra todas as imposturas.

No começo, deu-se muito espaço a futebol, amenidades, música, cinema, teatro, ao direito de as mulheres tomarem cafezinho no balcão sem ser molestadas (uma das bandeiras de Martha Alencar, a primeira diva da redação, ao lado de Olga Savary, editora inicial das Dicas). O mercurial Tarso de Castro, dínamo do veículo, debochava de tudo, gozava amigos e desafetos, fazia o humor mais petulante do grupo. Luiz Carlos Maciel encontrou de cara o seu nicho: a contracultura. Salvo engano, foi ele quem inventou (ou pelo menos popularizou) expressões condenadas à imortalidade como “barato”, “curtir”, “sarro”, que ao lado de outras gírias, ressuscitadas (“balaco”, “balacobaco”) e liberadas (“bicha”) pelos demais pasquinenses, caíram na boca do povo e nos verbetes do Aurélio.

Ao núcleo fundador agregaram-se, paulatinamente, cinco cabeças privilegiadas: Ziraldo, Fortuna, Henfil, Paulo Francis e Ivan Lessa (que vivia em Londres e só estreou no número 23). Entre os astros convidados, a fina flor da intelectualidade e da boemia ipanemense: Vinicius de Moraes, Otto Maria Carpeaux, Ferreira Gullar, Glauber Rocha, Chico Buarque (autoexilado em Roma), Caetano Veloso (idem em Londres), Chico Anísio, Jô Soares, Flávio Rangel, Fernando Sabino, Antonio Callado, Luís Fernando Verissimo, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Ruy Castro, Fausto Wolff, Reynaldo Jardim, Newton Carlos, Luís Garcia (fugaz correspondente em Nova York). Sem contar os bambas adventícios, como Jules Feiffer, James Thurber, André François, Wolinski, Copi, Tomi Ungerer, o português Santos Fernando etc.

Quando o jornal estourou (“De tanto ver triunfar as nulidades, o Pasquim acabou dando certo”, proclamava um de seus dísticos semanais), quem mais se surpreendeu com aquele imprevisto foram os seus próprios redatores e cartunistas. Mas já que os deuses, para frustração dos milicos, pareciam estar do lado da gente, o jeito foi relaxar e aproveitar o sucesso até a última gota de uísque e o último rabo de saia.
Tamanho era o prestígio do jornaleco, que se desse na telha de seus editores imprimirem uma edição toda em grego, a vendagem seria a mesma e não faltaria quem achasse a ideia “duca” (ou seja, do cacete). Isso nunca aconteceu, mas é fato comprovado que um dia, com a página do Tarso em branco, ele sumido da redação, o prazo de entrega esgotado e a gráfica em pânico, Jaguar fez valer sua autoridade e sua porra-louquice, enchendo todo o espaço com a palavra “blablablá”, mantendo a assinatura do Tarso, que afinal levou a fama pela original ideia. Os leitores acharam o máximo, inventivo, o escambau — especialmente aqueles que entenderam a brincadeira como uma dissimulada cutucada na Censura, não pelo que de fato era: um inconsequente sarro dadaísta.

O leitor padrão do jornal (70% do total) tinha entre 18 e 30 anos, o filé-mignon do mercado. Em circunstâncias normais, vendendo (já no número 16) 80 mil exemplares e aumentando a tiragem, em dez semanas, para 200 mil, em sete meses teria se transformado numa mina de ouro. Mas, apesar de todos esses números, os anunciantes fugiam do jornal, a maioria por medo de uma prensa do governo, que muitos deles, aliás, levaram. A ditadura e seus apóstolos não achavam a menor graça no Pasquim e tentaram, por todos os meios, destruí-lo. Para eles, “aquilo” era um antro de comunistas, bêbados, pervertidos e drogados, empenhados em difundir ideologias exóticas e subversivas, desencaminhar a juventude e destruir a família brasileira.

No fundo, o Pasquim não passava de um alternativo anarquista, misto de Harakiri e Village Voice. Muitas outras gerações de jornalistas boêmios animaram o Rio, mas nenhuma delas pôde dar-se ao luxo de estender suas farras ao batente na redação como a turma do Pasquim. Suas reuniões de pauta, quando havia, eram uma festa — ou melhor, uma esbórnia. Ainda mais zoneadas eram as entrevistas, sempre coletivas e regadas a Buchanan’s, e cujo inusitado clima de descontração outros tentaram em vão imitar.

Cabia tudo no Pasquim. Até artigos sérios. Os de Paulo Francis só eram sérios nos temas, na aparência, e às vezes nem isso. Francis foi um dos fenômenos mais intrigantes do jornal: um intelectual cujo rompimento com a sisudez e a linguagem engomada do jornalismo político e cultural abriu-lhe as portas para a popularidade.

Outro fenômeno foi Ivan Lessa, cuja frenética inventividade invadia quase todas as páginas do jornal, a começar pela seção de cartas dos leitores, que a partir de uma época ele passou a responder, oculto pelo pseudônimo de Edélsio Tavares, um consumado cafajeste que tratava os leitores aos pontapés. Os iniciados e os masoquistas adoravam. Ivan também reinou absoluto como autor de fotonovelas debochadas e surrealistas, volta e meia estreladas por gente famosa (até Fernanda Montenegro protagonizou uma), da coluna “Gip-Gip, Nheco-Nheco”, um mosaico de desaforismos de fazer Groucho Marx e o Barão de Itararé babarem de inveja: “No Brasil morre-se muito de médico”; “Num país onde o futuro a Deus pertence, os agnósticos perguntam: ‘E o passado? Quem vai se responsabilizar por ele?”; “Todo homem tem o sagrado direito de ser imbecil por conta própria”; “O brasileiro é um povo com os pés no chão — e as mãos também”. Um deles (“A cada 15 anos os brasileiros esquecem o que aconteceu nos últimos 15 anos”) até virou epígrafe de um filme.

Millôr gostava de dizer que nenhum humorista atira para matar. Os milicos da ditadura, incrédulos e paranoicos, não foram nessa e vigiaram com crescente rigor as gracinhas do jornal. Seu 39º número chegou às bancas, em 19 de março de 1970, com o seguinte aviso: “Este número foi submetido à censura e liberado”. Com vários cortes. Mas disso o leitor não podia ser informado. Na capa, Sig fantasiado de Estátua da Liberdade, suando de medo e empunhando, à guisa de tocha, um Pasquim em chamas. Dias antes, uma bomba fora colocada na sede do jornal, na Rua Clarisse Índio do Brasil, que só não explodiu por incompetência dos terroristas, gente da própria polícia.

Como se vê, a censura prévia não liberava o jornal de outros tipos de agressão. Algumas edições, não obstante “aprovadas” e “liberadas”, foram inopinadamente recolhidas nas bancas por ordem de alguma “autoridade” que não se dera por satisfeita com os cortes executados por dona Marina, o primeiro censor (ou a primeira censora) do Pasquim, que caiu em desgraça ao deixar passar um cartum feito em cima do famoso quadro de Pedro Américo sobre o Grito do Ipiranga, com D. Pedro I gritando “Eu quero é mocotó!”, em vez de “Independência ou Morte!”.

Em substituição a dona Marina entrou o general da reserva Juarez Paes Pinto, até então apenas conhecido como “o pai de Helô Pinheiro”, a Garota de Ipanema original. Depois que o general foi afastado de suas funções por ter aprovado uma entrevista com a antropóloga americana Angela Gillian, que afirmava haver racismo no Brasil, constatação desde sempre tabu para os militares, o jornal passou a ser censurado em Brasília, no próprio covil da repressão, o Centro de Informações do Exército, por canetas Pilot anônimas, implacáveis e vingativas. E assim foi até 1975, quando a censura acabou.

No dia 1º de novembro de 1970, com o número 72 já na gráfica, Cabral e Fortuna estavam em Campos, no interior do estado do Rio, quando foram avisados de que Ziraldo, Francis, Maciel, o fotógrafo Paulo Garcez (em plena lua de mel!) e Haroldo Zager Tinoco (na época, boy do jornal) haviam sido presos. Fortuna foi agregado ao grupo ao chegar de volta ao Rio, no dia 3. Na companhia de Jaguar, Cabral foi à polícia para depor e tentar libertar os companheiros. De lá saíram para juntar-se aos amigos nas celas da Vila Militar, para onde Tarso também foi levado. As duas semanas de prisão, inicialmente previstas, acabaram esticadas para dois meses. Por que motivo foram presos? Nunca souberam.

Do número 74 ao 80, o Pasquim se transfigurou. Para todos os efeitos, baixara um surto de gripe na redação, atingindo nove integrantes da patota. A metafórica gripe foi a maneira cifrada que Martha, Millôr, Henfil e Miguel Paiva encontraram para informar aos leitores o que acontecera.

Pouco depois, Paulo Francis mandou-se para Nova York. Pressionado pela Censura, cada vez mais perseguido por terroristas de direita (daí o slogan “Um jornal mais verde de susto que de esperança”), boicotado pelas agências de publicidade e imerso em dívidas, o Pasquim viu-se num beco sem saída e obrigado a experimentar novas formas de sobrevivência. Foi nesse período que surgiram algumas das seções e brincadeiras pelas quais até hoje o Pasquim costuma ser lembrado. E festejado, como nesta exposição.

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