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A Justiça: journal des très mauvais augure

por Irineu E. Jones Corrêa (FBN), Luzia Ribeiro de Carvalho (IC Faperj – bolsista)
A Justiça: jornal des très mauvais augure é um periódico original, a começar pelo endereço inusitado da tipografia, redação e administração: celas 103 e 106, da 5ª Galeria, de uma casa de detenção que, no caso, seria a prisão da rua frei Caneca, demolida no século XXI. O mau augúrio, do subtítulo, refere-se ao fato de ser uma publicação de indivíduos de destino incerto, posto ser produzida por presos políticos, suspeitos de participação na Segunda Revolta da Armada, movimento contrário ao governo Floriano Peixoto. Um dos registros mais dramáticos dos acontecimentos é a imagem do encouraçado Aquidaban trocando tiros com a fortaleza de Villegagnon. Com as letras do título principal escritas de cabeça para baixo, o periódico trata de assuntos do dia a dia da prisão e registra notícias que chegam de fora. Alusões e referências eruditas, textos curtos, irônicos e tragicômicos contam os casos e os acontecimentos da prisão e dos prisioneiros, criticando e denunciando os desmandos e as violências cometidos pelas autoridades do presídio e do país. O ano é o de 1894.

Jornal manuscrito, cada número é composto em uma folha de papel almaço, de quatro páginas. Quando faltou espaço para notícias, saiu um suplemento, com mais quatro páginas. Se ainda havia notícias a serem divulgadas, um segundo suplemento, em mais uma folha de almaço. A máscara gráfica mimetiza os jornais impressos: divisão em colunas, títulos com letras variando em relação ao texto. As matérias são ilustradas, os espaços vazios são ocupados por calhaus. Com uma capa no mesmo papel, a coleção da Biblioteca Nacional é formada pelos números II, IV, VI, VIII, XI e XIII, alguns deles com suplementos. Da capa à contracapa são 50 páginas. Suas medidas são 35 x 23 cm.

Os títulos das seções também seguem o modelo comum aos periódicos da época, que, nestes comentários, vão reproduzidos na grafia original. A seção “Aos Leitores” e uma matéria encimada com o nome da publicação explicam os objetivos e as intenções dos editores. As seções “Annuncios”, “Objectos Perdidos” e “Telegrammas” imitam a forma dos impressos, embora o que apareça anunciado, dado como perdido ou telegrafado seja casos trágico ou violento apresentados sempre num tom irônico. A partir do n. IV aparece a coluna “Expediente”, abrindo espaço para mais uma piada tragicômica. Em cada número e em cada suplemento, títulos originais indicam o conteúdo das matérias: “Interrogation” e “Exercicio diário” denunciam as seções de interrogatórios e as humilhações cotidianas. “Conto do vigário”, “Notícia oficial”, “Ao meu amigo R. Bouças”, “Assigna ou não?”, “Café delicioso”, “Uma conversa fiada” são cabeçalhos de textos que registram os medos, as frustrações e a dura vida de prisioneiros submetidos a carcereiros militares.

A primeira matéria assinada aparece no n. IV: um pedido de subscrição “Aos Leitores”. Seu autor é O Thesoureiro (Libra Sterling). A partir dali os pseudônimos se sucedem: L. S.; Cosmos; Licio; Malvado; Reporter; L.C.B.; B.L.C.; Cilio; L.B.C.; C.L.B.; Residiu; Não-fiati; Oasis; Blanc-seing; Sauvage; Poudre-des-sensations; Juris; Teryel; Bric; E.R.; Consciencia; Má; Bisnuto; Lafayette; O Irmão mais velho; Telephone; Sentinella; Oicil. Nomes e sobrenomes dos redatores e colaboradores aparecem apenas no Suplemento extraordinário “d” A Sentinela, referente ao nº XIII, quando Licio Climaco Barboza se identifica como redator-chefe na matéria “Arlequinada Fúnebre”. Texto forte, denunciando a pena de morte recebida por 11 prisioneiros submetidos a um tribunal de guerra. Licio Barboza é sobrinho de Rui Barboza, que advogaria por ele. Sobre ele, a Revista de Engenharia, de nº 138, de 1886, informa haver se formado como agrimensor naquele ano.

A caricatura e a charge são largamente utilizadas. Algumas vezes elas ilustram os textos, noutras são o principal elemento da informação, como no caso da charge que dá conta da fuga de Olavo Bilac (1865-1918) de Ouro Preto, cidade em que o poeta se refugiara, por conta da perseguição florianista. O desenho mostra um cidadão paramentado de terno, chapéu e mala, correndo com um batalhão de policiais em seu encalço – de texto há apenas uma legenda “Incidente Ouro-Pretano: pobre Olavo!!!” (n.II, p. 1). Outra charge trata do término da circulação d’A Justiça e a ocupação do espaço por O Busca-pé (n.XIII, suplemento, p. 4), assunto tratado largamente em outros textos do pasquim. A maioria das ilustrações aparece com as iniciais L.M., que, provavelmente, seriam as iniciais de um certo Luiz Moreau, que aparece na lista de prisioneiros como agrimensor, portanto, familiarizado com formas e proporções, que bem poderia saber desenhar. Algumas ilustrações aparecem sem referencias ao autor, mas, o estilo do traço de todas elas sugere que o jornaleco teve apenas um ilustrador.

A Justiça: jornal des três mauvais augure, principalmente, ousado. O último suplemento apresenta uma lista, nomeando e qualificando, todos os prisioneiros que passaram por aquela prisão entre novembro de 1893 e junho de 1894. Ao fazer isso, torna-se um documento da história, exatamente num momento em que a república era marcada por disputas sangrentas e atitudes ditatoriais à margem da lei e do direito: em abril de 1894, soldados do governo fuzilaram, sem direito a julgamento nem defesa, prisioneiros no Sul do país, na fortaleza de Inhatomirim, em Santa Catarina.

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